Se na cerimónia de acolhimento aos jovens no Parque Eduardo VII, na passada quinta-feira, mais de 70% do discurso escrito não foi proferido pelo Sumo Pontífice; já na via-sacra para os jovens, na mesma colina de Lisboa, na sexta-feira, ao final do dia, Francisco quase podia ter enviado para a papeleira as palavras que lhe entregaram para ler, porque, à exceção de uma outra palavra ou sentido, foi tudo dito de improviso.
Este sábado, no Santuário de Fátima, na recitação do terço, também não evitou fazer grandes alterações, ao ponto de – mais uma vez – trocar as voltas aos tradutores, a quem é entregue um texto sob embargo, antes das cerimónias, com aquilo que supostamente vai ler. As mudanças foram tão flagrantes, que não leu sequer a oração da Virgem, que estava programada. Este gesto levou, inclusive, nesta tarde de sábado, o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, a admitir que o Papa adaptou as suas intervenções de acordo com as pessoas que o ouviam.
No Alto da Serafina, onde se deslocou a um bairro social, ainda chegou a alegar que não estava a ler bem as folhas que tinha na mão, devido à alegada luminosidade que lhe incidia nos óculos. Será que foi mesmo isso? Ou foi mais um gesto, visto por alguns como de revolucionário, de um Papa que se adapta (e ao seu discurso) aos momentos e aos locais?
“Amigos, quero ser claro convosco, que sois alérgicos à falsidade e às palavras vazias: na Igreja há espaço para todos”. Ao lado de cardeal de Lisboa, Manuel Clemente – que teve uma intervenção habitual naquele que é o seu registo (mais institucional) – na passada quinta-feira, quando esteve no Parque Eduardo VII, o Papa enviou aquele que pareceu um recado mais para dentro da máquina do Vaticano, do que para os milhares de jovens que ali estavam ao final do dia.
No discurso da cerimónia de acolhimento, que a Sala de Imprensa da Santa Sé fez chegar sob embargo, como tem acontecido todos os dias, aos jornalistas e tradutores simultâneos (principalmente de televisões), instalados no Pavilhão Carlos Lopes – o “quartel-general” dos órgãos de comunicação social -, o Papa leu um primeiro parágrafo; depois um segundo, o terceiro e um quarto – no qual se reteve e enfatizou. Mas a partir daí descartou, na íntegra, todo um enorme texto que – a ser lido – teria sido considerado palavroso, por demais evangelizador (dado o tom catequista) e provocado, eventualmente, muito bocejo na multidão.
Gestos substituem tom entediante
Nesse dia já tinha estado com jovens de manhã e ao início da tarde, ainda que em grupos restritos. Mas ali, no Parque Eduardo VII, mudou o registo e, numa espécie de reação a notícias que davam conta de alguns movimentos mais conservadores – críticos do seu pontificado -, insistiu que a Igreja “é de todos” e não só de “alguns”.

“Quando [Jesus] manda os apóstolos chamar para o banquete daquele senhor que o preparara, diz: ‘Ide e trazei todos’, jovens e idosos, sãos, doentes, justos e pecadores. Todos, todos, todos! Na Igreja, há lugar para todos. ‘Padre, mas para mim que sou um desgraçado, que sou uma desgraçada, também há lugar?’ Há espaço para todos! Todos juntos… Peço a cada um que, na própria língua, repita comigo: ‘Todos, todos, todos’. Não se ouve; outra vez! ‘Todos, todos, todos’. E esta é a Igreja, a Mãe de todos. Há lugar para todos. O Senhor não aponta o dedo, mas abre os braços. É curioso! O Senhor não sabe fazer isto [aponta com o dedo em riste], mas isto sim [faz o gesto de abraçar]. Abraça a todos”, disse, entrando depois num diálogo com os jovens, em sequência do que tinha acontecido de manhã.
“Nesta tarde, vós também me fizestes perguntas, muitas perguntas. Nunca vos canseis de perguntar… Perguntar, é bom; aliás muitas vezes é melhor que dar respostas, porque quem pergunta permanece ‘inquieto’ e a inquietude é o melhor remédio contra a rotina, que às vezes se torna uma espécie de normalidade que anestesia a alma“, defendeu, cortando de cruz um pesado texto, com muitas passagens da Bíblia.
Do quase ao tudo
Contudo, na sexta-feira, perante as 800 mil pessoas que acorreram à Via Sacra, Francisco foi ainda mais longe – e isso foi muito notório na cara dos jornalistas que, por muito que tentassem acompanhar quais as frases que o Papa estaria a proferir, perceberam o que iria sair dali. O Sumo Pontífice foi ao encontro da leve cerimónia da via-sacra que foi realizada, com cânticos pop e muitos testemunhos de jovens nas telas de vídeo, e apostou em palavras simples, com uma mensagem direta. Mas mais do que isso: o discurso improvisado foi rápido.
Provavelmente sensibilizado por testemunhos de vários jovens, entre eles um português, que contaram as suas vivências, os seus problemas pessoais, os estados depressivos por que passaram na pandemia ou até a adição de drogas, o Papa foi muito direto: “Agora faço-vos uma pergunta, mas não deveis responder em voz alta; cada um responda dentro de si mesmo. Choro eu de vez em quando? Há coisas na vida que me fazem chorar? Todos nós na vida já choramos, e continuamos ainda a chorar”.

Dito isto. O que foi lido daquele que estava sinalizado pela Sala de Imprensa do Vaticano como o sétimo discurso em Portuga? Nada. Nada de longos parágrafos que falavam da “cruz de Cristo”, do “calvário de Cristo” ou das “tormentas” da via-sacra.
Ora, este sábado de manhã, no santuário na Cova da Iria, não foi diferente. Apesar de se tratar de um discurso na oração do terço com jovens enfermos, em Fátima. As mudanças entre as palavras previstas e as proferidas foram tantas que um dos tradutores, que estava em direto num dos canais da televisão portuguesa, admitiria que mais uma vez o Papa não estava a ler o que estava à sua frente.
Na capelinha das aparições, junto ao bispo de Fátima, José Ornelas, e na presença de Marcelo Rebelo de Sousa, Francisco voltou a insistir na não discriminação: “A pequena capela em que nos encontramos é como uma bela imagem da Igreja: acolhedora, sem portas. A Igreja não tem portas, para que todos possam entrar. E aqui também podemos insistir para que todos possam entrar, porque esta é a casa da Mãe, e uma mãe tem sempre o coração aberto para todos os seus filhos, todos, todos, todos, sem exclusão.”
Políticos e bispos com orelhas a arder
O Papa só se conteve no primeiro dia em Portugal. Logo na manhã de quarta-feira, no Centro Cultural de Belém, onde se dirigiu aos governantes, políticos e corpo diplomático; tendo ali deixado vários apelos, entre eles a uma aposta no Estado Social europeu e ao fim da atitude beligerante do ocidente na guerra da Ucrânia, com uma aposta em negociações de paz. Nesse discurso, citou vários autores portugueses, dos mais populares (como Amália Rodrigues) aos eruditos, e até ateus, como José Saramago. E, depois, ao fim da tarde, no Mosteiro dos Jerónimos, onde, perante todo o clero português, pediu uma outra forma de estar à Igreja nacional, principalmente na forma como lidou com o apuramento da realidade dos abusos sexuais dentro da instituição.
“A interpelação que o Senhor dirige hoje à Igreja é esta: Queres descer do barco e afundar na desilusão, ou fazer-me subir permitindo que seja mais uma vez a novidade da minha palavra a tomar na mão o leme? Digo a ti, sacerdote, consagrado, consagrada, bispo: Queres apenas conservar o passado que ficou para trás ou lançar de novo e com entusiasmo as redes para a pesca?”, apontou, num dia em que viria a receber, ao início da noite, na Nunciatura Apostólica, as vítimas de abusos sexuais na Igreja.
Numa homilia onde citou Padre António Vieira, o Papa acentuou o apelo aos bispos portugueses para que mudem de postura em relação às vítimas da Igreja: “Vê-se, com frequência, acentuado pela desilusão ou a aversão que alguns nutrem face à Igreja, devido às vezes ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma purificação humilde, constante, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar“.