É uma história com 30 anos. Mas não aconteceu apenas há 30 anos. O primeiro caso de alegado assédio sexual ao padre José Nuno por D. Carlos Azevedo terá ocorrido nos anos 80, na zona centro, durante um acampamento do Movimento Oásis, com o qual o então diretor espiritual do Seminário do Porto ainda mantém fortes laços. Aquando da segunda tentativa, nos anos 90, na cidade Invicta, já o sacerdote deixara de ser seminarista, mas a suposta reincidência motivaria um corte de relações entre ambos, que duraria anos.

A última situação do género é situada no verão de 2009, em Lisboa, numa altura em que o coordenador nacional das capelanias hospitalares e o bispo responsável pela Pastoral Social se encontravam e reuniam com regularidade por causa dos dossiês legislativos pendentes que iam desgastando as relações entre o Governo de Sócrates e a Igreja.
«Conheço esse passado e as marcas que deixou no José Nuno. Por isso, quando, há quatro anos, ele teve de voltar a trabalhar e a relacionar-se de forma próxima com D. Carlos Azevedo, ficou muito perturbado e angustiado», recordou à VISÃO João Pedro Brito, dos serviços de humanização do Hospital de São João.
O médico, que foi padre durante 12 anos, testemunhou, de perto, o sofrimento do sacerdote e o seu dilema interior. «Ele fez a denúncia por dever de consciência e para defender a Igreja, pois considerou grave o que sucedera. Teve uma profunda depressão por causa do seu gesto de verdade e as feridas são difíceis de ultrapassar», reconhece o antigo sacerdote.
PREVENIR UM ESCÂNDALO
José Nuno não carregou pelos anos apenas a sua cruz. Tal como a VISÃO adiantou na última edição, os comportamentos que alegadamente envolvem o bispo e que podem ter relevância criminal, segundo as «leis» eclesiásticas e civis virão desde a década de 80 até anos mais recentes. Além do caso pessoal, o sacerdote que, em 2014, celebra as bodas de prata da sua ordenação, foi incansável na tentativa de perceber se a alegada conduta de D. Carlos fizera mais estragos.
Demanda que, segundo pessoas próximas, terá levado o padre a confirmar a existência de outras vítimas de assédios sexuais dentro da Igreja. «O José Nuno conhecerá outros casos. Com ele, houve reincidências. Contou-me tudo, quando fez a denúncia ao núncio apostólico», diz João Pedro Marques, padre em Santa Maria Madalena e São Miguel do Couto, em Santo Tirso.
Antes de se queixar a Rino Passigato, «embaixador do Papa», na primavera de 2010, o capelão ponderou a decisão durante meses, num silêncio dorido. «Foram momentos muito difíceis, viveu em desassossego. Tudo isto gerou crises que o têm abalado profundamente», descreve o vigário paroquial daquele concelho minhoto. «Ele nunca põe os seus interesses em primeiro lugar. Conheço a sua integridade, o seu enorme amor à Igreja e à verdade. Foi isso que o levou ao núncio», analisa João Pedro Marques.
Duas motivações, ambas preventivas, estarão na origem da denúncia do sacerdote ao representante do Papa. Por um lado, o receio de que o suposto comportamento de D. Carlos pudesse ser conhecido e dar origem a qualquer polémica, quando o Sumo Pontífice visitasse Portugal. Por outro, a constatação angustiante de que a alegada e reincidente conduta inapropriada do bispo não impedira que, mesmo assim, fosse considerado um sério candidato a patriarca.
«Ele quis proteger a Igreja de um possível escândalo, evitar que o seu rosto ficasse desfigurado. Por isso, recorreu às instâncias certas. Tudo poderia ter sido diferente e solucionado dentro das estruturas eclesiásticas. É uma pena ter chegado à praça pública», lamenta o padre Luciano Lagoa, de São Martinho de Bougado, na Trofa, que conhece o capelão do São João desde os tempos de seminário. «O padre José Nuno é sério e honesto. Em 2009, não aguentou ser de novo vítima de comportamentos que já vinham de trás e decidiu agir. É um homem que sofre pela Igreja. Deve estar a sofrer muito, neste momento», admite.
O padre Avelino Jorge, de Oliveira do Douro, é colega de José Nuno desde o seminário menor, onde descobriu «a retidão e inteligência» do colega. A dada altura, foi também depositário e cúmplice do drama por ele vivido, mas não sem espanto: «Conheço bem o senhor D. Carlos, foi meu diretor espiritual, e sempre me tratou corretamente. Por isso, a situação relatada pelo padre José Nuno criou-me algum desconforto», justifica.
Mas estando «a verdade acima de tudo», o sacerdote considera incompreensível o que se seguiu: «Ele fez a denúncia e ninguém foi ouvido? É estranho. Na prática, pode pensar-se que a ida do senhor D. Carlos para Roma é uma promoção e não um castigo», assinala o sacerdote, que até já promoveu uma conferência com a participação do bispo, na sua paróquia.
Foi igualmente «compungido e constrangido » que o padre Almiro Mendes soube da «situação crucificante» vivida, durante anos, pelo coordenador das capelanias. «Contou-me quando fez a denúncia e abordou os problemas com D. Carlos Azevedo.» Bispo que o pároco de Ramalde, no Porto, conhece bem. «Foi meu professor. Sempre o estimei, acompanhava e aconselhava os seus alunos.
Nunca me apercebi de algo que pusesse em causa a sua pessoa», admite, mesmo sendo amigo do padre José Nuno desde 1982. Já o antigo seminarista «é um homem com qualidades extraordinárias, com uma postura nobre e correta. Não assisti a qualquer das situações relatadas mas, por tudo o que ele me disse ter passado, compreendo que tenha entrado em pânico, antes da chegada do Santo Padre», observa Almiro Mendes.
PERDÃO E VERDADE, EM SILÊNCIO
Após a denúncia ao núncio apostólico, o padre José Nuno terá vivido um autêntico terramoto emocional. A catarse ainda dura. «Sentiu um imperativo categórico, mas imagino que, depois, tenham surgido os conflitos internos entre o que fez e o que deveria ter feito, deixando-o num enorme sofrimento», explica Rui Mota Cardoso, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
O psiquiatra, que não é religioso, conheceu o sacerdote no Hospital de São João, «um jovenzinho muito ativo e responsável, dedicado à humanização dos hospitais». Os anos de trabalho e projetos conjuntos permitiram a Rui Mota Cardoso observar «a obra notável na capelania ao serviço das pessoas», «a dedicação meritória aos estudantes de medicina católicos», episódios que foram revelando aos seus olhos «o homem de causas e missões que eu não estava habituado a ver nos padres». Ficaram amigos, cúmplices. «Ele é de uma integridade absoluta. Ponho as mãos no fogo», assume o professor catedrático, preparado, desde já, para as intrigas palacianas da Igreja. «Tentarão fazer dele o frágil, desqualificá-lo, dizer que é perturbado. Vão fazê-lo, não tenho dúvidas. Mas isso não o torna um representante menos digno da fé. Nunca o padre José Nuno faria a denúncia que fez se não tivesse acontecido algo de muito grave», assegura.
Avisada a Nunciatura, «após uma decisão muito ponderada e motivada por um grave problema de consciência», segundo o amigo João Pedro Brito, o padre José Nuno entrou num estado depressivo que o levaria a ir uns meses para o estrangeiro. «Ele ficou fora de tudo. Mais do que um conflito com o seu passado, doeu-lhe a decisão que tomou em defesa da Igreja.» A tese de doutoramento estava por terminar, mas os meses seguintes foram, sobretudo, tempo de recolhimento.
Em abril de 2012, o sacerdote viajou para Israel, instalando-se no convento de São Salvador, em Jerusalém, de onde relatou, quase diariamente, as vivências e celebrações da Semana Santa para um blogue da Ecclesia, a agência de notícias da Igreja Católica portuguesa. «Não é a presença de Cristo que, aqui, é mais real. É Cristo que, aqui, é mais realidade», escreveu.
Em maio desse ano, já de regresso, decidiu falar a sós com D. Carlos Azevedo, na primeira oportunidade. Procurou-o, então, em Fátima, e o bispo aceitou, no imediato, falar com ele em privado. «O José Nuno disse-me que queria enfrentar a situação, na maior crueza. Pelo que percebi, tratou-se de um encontro de perdão na verdade. Sem arrependimentos, terá pedido ao D. Carlos compreensão para o seu gesto junto do núncio. Para ele, foi uma libertação», conta o médico João Pedro Brito, do Hospital de São João.
As vivências dolorosas não foram, entretanto, esquecidas.
Mas seria objetivo do padre José Nuno mantê-las resguardadas no silêncio eclesiástico. «O que tinha a dizer sobre esta questão disse-o no tempo oportuno e necessário, nas instâncias certas, dentro da Igreja», declarou, seco, por e-mail, quando, há duas semanas, e após insistências, respondeu a uma única pergunta da VISÃO.
Nos dias que se seguiram à divulgação pública da história, o sacerdote manteve-se resguardado e incontactável.
Regressou ao escrutínio dos olhares públicos no último fim de semana mas de novo indisponível para prestar declarações.
No sábado, 23, apareceu em Fânzeres, Gondomar, numas jornadas promovidas pela diocese do Porto, com a presença do bispo D. Manuel Clemente, que fez questão de abraçá-lo e confortá–lo. Na manhã seguinte, seria a vez de cerca de 300 pessoas abarrotarem a capela do Hospital de São João, para a missa de domingo.
Nunca tal se viu, comentou-se.
Nas cadeiras e em pé, familiares, doentes, amigos e conhecidos que, mesmo ausentes de cerimónias religiosas há algum tempo, quiseram dizer presente, numa hora que reconhecem dura e difícil para o sacerdote. «Foi um momento fantástico! », reconhece João Arezes, cujas vivências nos escuteiros com o sacerdote, e os seus ensinamentos, permanecem na memória: «Foi muito marcante, um excelente pastor e defensor do seu rebanho.
Eu chamava-lhe mecânico da fé, porque quando alguém estava em baixo, derrotado, ele trazia as peças necessárias ao conserto das nossas vidas», assinala, realçando o caráter solidário, fraterno e íntegro de José Nuno. «Para ele, as convicções são para levar à prática», justifi ca João Arezes.
Na homília do último domingo, de improviso, o padre, emocionado, sublinhou, no entanto, o facto de, na Igreja, não haver justos nem pecadores. «Somos todos pecadores», reafi rmou, a partir dos ensinamentos bíblicos. Noutras circunstâncias, talvez pudesse ter citado São Mateus, um dos discípulos de Cristo, quando este terá proclamado: «O que vos digo às escuras dizei-o à luz do dia.» Mas José Nuno preferiu inspirar-se no exemplo de recolhimento de Bento XVI.
«A verdade precisa de silêncio.» Disse.
E voltou a desaparecer.
Ele fez a denúncia por dever de consciência e para defender a Igreja
João Pedro Brito, médico, padre durante 12 anos
Ele fez a denúncia e ninguém foi ouvido? É estranho. Na prática, pode pensar-se que a ida do senhor D. Carlos para Roma é uma promoção e não um castigo
Avelino Jorge, padre de Oliveira do Douro
[José Nuno] um homem com qualidades extraordinárias, com uma postura nobre e correta
Almiro Mendes, padre de Ramalde, Porto
Ele nunca põe os seus interesses em primeiro lugar. Conheço a sua integridade, o seu enorme amor à Igreja e à verdade. Foi isso que o levou ao núncio
João Pedro Marques, padre em Santa Maria Madalena e São Miguel do Couto, Santo Tirso
Foi muito marcante, um excelente pastor e defensor do seu rebanho. (…) Para ele, as convicções são para levar à prática
João Arezes, antigo escuteiro
Ele quis proteger a Igreja de um possível escândalo (…). Tudo poderia ter sido diferente e solucionado dentro das estruturas eclesiásticas
Luciano Lagoa, padre de São Martinho de Bougado, Trofa
É de uma integridade absoluta, não faz as coisas com leviandade. Ponho as mãos no fogo.’ ‘Tentarão fazer dele o frágil, desqualificá-lo, dizer que é perturbado. Vão fazê-lo, não tenho dúvidas
Rui Mota Cardoso, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Artigo publicado na VISÃO nº 1043 de fevereiro de 2013