Aos 22 anos, Noland Arbaugh teve um acidente num lago, enquanto monitorizava um campo de férias. Depois de ter sido empurrado por um dos colegas e ter sofrido uma forte pancada na cabeça, veio a si, mal podendo respirar e sem conseguir mexer-se. Percebeu imediatamente que estava paralisado, sem poder imaginar que iria ficar preso a uma cadeira de rodas – e totalmente dependente de cuidadores – para o resto da sua vida. Este episódio passou-se em 2016, perto de Nova Iorque.
Hoje, ele vive com a mãe, o padrasto e o meio-irmão, numa cidade perto do deserto de Sonora, no Arizona, a sua terra natal. Viu-se obrigado a largar os desportos que praticava, a deixar de tocar música e a abandonar os estudos na Universidade do Texas, pois perdeu a autonomia.
Noland teve um bocadinho de sorte neste azar todo. Em vez de, no embate, ter partido o pescoço, deslocou-o, tendo as suas vértebras regressado ao lugar rapidamente. Só que a espinal medula ficou seriamente afetada. No entanto, quanto mais baixo é esse estrago, menos extensa é a paralisia – no caso de Noland, ele situa-se entre a quarta e a quinta vértebra, o que lhe permite mexer a cabeça e os ombros.
Esta seria apenas mais uma dramática história de um jovem que viu a sua vida virada de pernas para o ar quando tinha toda a agilidade da vida à sua frente, não fora Elon Musk cruzar-se na sua existência. Como?
Há pouco mais de um ano, e apenas quatro meses depois de Noland ouvir falar, pela primeira vez, de um BCI, a sigla para brain-computer interface, que em português pode traduzir-se por um interface entre o cérebro e o computador, entrou numa sala de operações para, em menos de duas horas, lhe ser implantado, por um robot, um chip desenvolvido pela empresa de Musk, a Neuralink, em 3,5 milímetros do seu córtex motor. Trata-se do mais pequeno e poderoso dispositivo do género.
Se a coisa continuar a correr bem, tal como tem vindo a acontecer nos últimos meses, isso permitir-lhe-á, enquanto primeiro ser humano a usar esta tecnologia específica, ter controlo sobre um computador, usando apenas o poder da sua mente. O sucesso da Neuralink realiza o delírio do homem mais rico do mundo: o de fundir mentes com máquinas e assim controlá-las facilmente.
Isto não é ficção
Parece ficção científica, mas já é uma realidade. E nasceu de forma prosaica. A história está contada na biografia autorizada de Elon Musk, da autoria do jornalista Walter Isaacson. Curiosamente, sem o saber, o multimilionário começou a pensar em implantar chips no cérebro no mesmo ano em que Noland teve o acidente no lago.
O interlocutor deste embrião foi o diretor de recursos humanos, Sam Teller, durante uma viagem de carro, lado a lado. O dono da Tesla confessou a sua frustração pelo tempo que se demorava a enviar uma mensagem no iPhone. “Imagine se conseguíssemos pensar para o telemóvel, com uma ligação direta de alta velocidade entre a mente e a máquina”, terá comentado.
Daí a consumar o facto passaram-se apenas oito anos, os mesmos em que Noland se viu impedido de jogar os seus jogos favoritos ou de consultar a internet a seu bel-prazer, sem depender de cuidadores.
Noland não é o primeiro indivíduo a usufruir de um BCI. Existem outros casos, com histórias parecidas (ver caixa). No entanto, é o primeiro a tornar-se numa espécie de ratinho de laboratório humano do polémico Elon Musk, indiferente aos perigos que isso acarretará para ele e, de uma forma geral, para a Humanidade, tal a felicidade de, atualmente, mexer num computador com a mesma destreza que qualquer um de nós, ou até com mais. E sem ter de usar os dedos.
Antes dele, o detentor da rede social X já mostrara, em duas apresentações públicas, uma porquinha e um macaco a fazerem habilidades proporcionadas pelo implante do chip da Neuralink. Em 2023, a Food and Drug Administration (FDA) deu à empresa tecnológica a possibilidade de recrutar participantes para o primeiro ensaio com humanos. Noland inscreveu-se assim que pôde, alertado sobre a possibilidade por um amigo, fã de Elon Musk. Só depois de várias entrevistas, avaliações, análises, testes de memória e despistes psicológicos, que demoraram três meses, é que se tornou o primeiro homem a experimentar fazer parte de um cenário de filme de ficção científica durante, pelo menos, seis anos.
Leitura de sinais
“Às vezes, até me esqueço de quão impressionante isto é, por ser tão natural para mim”, confessou ao jornalista do The Guardian, que o visitou em sua casa. Mas nem sempre foi assim, pois a adaptação entre o cérebro e a máquina exige alguma persistência. Ao ser humano cabe-lhe criar os melhores sinais com a mente, ao computador, descodificá-los corretamente. Ainda hoje, a cobaia humana faz quatro horas diárias de exercícios com a Neuralink.
Ao princípio, Noland ficava frustrado de cada vez que tinha de parar de usufruir das maravilhas do chip – com o nome técnico de N1 –, sempre que a bateria se ia, ao fim de cinco ou seis horas de uso. Entretanto, a equipa de técnicos da Neuralink tratou desse problema e agora o dispositivo é de utilização contínua, através de um boné de beisebol, equipado com uma bobina que carrega a bateria sempre que ela está fraca.
Até para um leigo é simples perceber como funciona um BCI. Ele lê os sinais elétricos produzidos pelos neurónios – que num tetraplégico continuam a funcionar, embora não consigam viajar pela espinal medula – e transforma-os em comandos de computador. Apesar de estes dispositivos poderem estar conectados ao cérebro através de chapéus especialmente concebidos para o efeito, a pessoa que os usa beneficiará da proximidade do chip com o tecido cerebral, daí que seja aconselhável o implante, tal como fez Noland há um ano. Depois dele, já mais dois tetraplégicos entraram neste desafio e com chips mais desenvolvidos. Entretanto, Elon Musk vaticinou que nos próximos 20 anos centenas de milhares de pessoas terão este chip no cérebro.
Tratar a depressão?
Há mais de 60 anos que se estuda a possibilidade de se implantarem chips no cérebro para melhorar a vida de quem não pode mexer-se. Hoje, a investigação quer ir ainda mais longe
As primeiras experiências que envolveram este tipo de dispositivos e animais aconteceram em 1960. No entanto, o primeiro BCI com possibilidade de ser implantado num cérebro humano – chamava-se Utah Array – foi desenvolvido em 1992. Mas só em 2004, um homem tetraplégico de nome Matthew Nagle se tornou a primeira pessoa em quem se colocou um chip dentro do crânio.
Atualmente, a investigação científica já avançou e diversificou a área de atuação dos dispositivos. Um ensaio inovador, no Reino Unido, está a tentar melhorar o humor dos pacientes, usando este tipo de interface entre o cérebro e o computador, através de um ultrassom. O dispositivo, projetado para ser implantado no crânio, mas fora do cérebro, mapeia a atividade deste órgão e manda impulsos para os neurónios. A segurança e a tolerabilidade estão, neste momento, a ser testadas em cerca de 30 pacientes. Se este BCI passar nos testes, os cientistas apostam que a tecnologia revolucione o tratamento de doenças como depressão, dependência, transtorno obsessivo-compulsivo e epilepsia. No entanto, também neste campo de atuação as tecnologias levantam dúvidas éticas e discussão, como a questão da privacidade de dados e a possibilidade da chamada neurodiscriminação, que acontece quando, por exemplo, os dados cerebrais são utilizados para definir a adequação de uma pessoa a um emprego.