Com o objetivo de combater o preconceito, o estigma e promover o conhecimento sobre saúde mental, a Federação Mundial da Saúde Mental criou, em 1992, o Dia Mundial da Saúde Mental, uma data que se assinala a 10 de outubro.
O tema deste ano é “Saúde mental no trabalho” e pretende destacar o papel essencial de um bom ambiente profissional, defendendo locais de trabalho onde a saúde mental é priorizada, protegida e promovida.
A psicóloga Diana Costa Gomes, autora do livro “Fala-me do que sentes”, salienta no a importância de não termos medo que falar sobre os nossos sentimentos e de pedir ajuda profissional sempre que a nossa mental esteja em “perigo”.
A especialista explica processo psicoterapêutico não é um “penso rápido”. “É um trabalho de auto-conhecimento. É sermos detetives de nós mesmos. Quando iniciamos um processo psicoterapêutico trazemos um pedido, que é, na sua génese, idiossincrático, ou seja, não há duas depressões iguais. A motivação iniciar um processo terapêutico parte, muitas vezes, do próprio”.
No seu novo livro, a autora conta episódios de pacientes que tentam tratar os mais diversos problemas: ansiedade, depressão, trauma, luto e burnout. “Os temas são quadros diagnósticos que vejo frequentemente em consulta. São temas recorrentes e, por isso mesmo, tocarão várias pessoas. Para além disso, são temas que estão na ordem do dia. Todavia, o foco foi para a vivência individual da pessoa que cumpre os critérios diagnósticos de cada um deles”, analisa.
Leia um excerto do livro:
Madalena: “Às vezes só me apetece desaparecer…”- Burnout. Arder e renascer
(…)
Comecei por me orientar através de alguns dados: idade, estado civil, profissão. A Madalena tem quarenta e dois anos, é divorciada e trabalha, a partir de casa, no departamento de marketing de uma empresa de renome que integrara havia apenas seis meses. Diz não se sentir realizada no que faz e vê no trabalho a principal fonte do seu stress. Tem a seu cargo uma enorme responsabilidade, uma chefe workaholic, e não tem relações de amizade no trabalho, fazendo uma alusão a «conflitos de egos». Enfrenta constantemente
prazos apertados e a sensação de que está permanentemente atrasada, em falta e em reuniões que, na prática, se traduzem em «pura perda de tempo».
Os meus radares acenderam. Naqueles primeiros minutos, Madalena dera‑me já alguns dos que eram reconhecidos como fatores de risco pessoais para o desenvolvimento de um quadro de burnout: idade jovem;
género feminino; habilitações literárias elevadas. Identifiquei também fatores de risco relacionados com o trabalho: menor tempo na instituição (é sabido que o quadro afeta pessoas que estão há menos ou mais tempo no exercício das funções); sobrecarga de trabalho; relação conflitual com colegas e clientes e chefias hostis; elevada exigência e responsabilidade; elevada pressão; insatisfação profissional.
A Madalena referira ainda stress. Aquela era uma narrativa frequente em quadros de burnout. Muitas pessoas dizem‑se «cansadas» e «em stress». Mas quem está em burnout não está cansado. Está exausto. E o burnout não é stress. O stress é um processo adaptativo. Todos nós, em algum momento da nossa vida, já experimentámos stress. O stress refere‑se a uma exposição intensa a stressores diversos e pode ter efeitos benéficos ou prejudiciais, sendo conhecida a relação entre stress e desempenho. Enquanto o stress é um processo de adaptação, o burnout é um processo de inadaptação. É tipicamente vivenciado por indivíduos motivados, com elevadas expectativas e com efeitos prejudiciais que afetam largamente o desempenho
(distress). O conceito de eustress refere‑se a uma forma positiva de stress, onde um nível moderado de pressão ou de tensão pode ser benéfico e até mesmo motivador para o desempenho e crescimento pessoal. Enquanto o termo distress se associa a um stress negativo e prejudicial à saúde e ao desempenho, o eustress descreve uma tensão que é percebida como desafiadora, mas que ainda é administrável e estimulante. O eustress pode ser experimentado em situações desafiadoras que exigem um esforço extra, como iniciar um novo emprego, realizar uma apresentação importante, competir num evento desportivo ou enfrentar prazos de entrega apertados. Nessas circunstâncias, o stress moderado pode resultar num aumento temporário da energia, motivação e foco, levando a um desempenho melhorado.
Debrucei‑me sobre o inventário, constituído por vinte e dois itens classificados numa escala de 0 a 6, e comecei por ler a Madalena a primeira questão:
– «Com que frequência se sente cansada?» – A Madalena soltou um riso carregado de ironia que denotava quase uma amargura.
– Não sei o que é não sentir cansaço – disse com um suspiro contido.
Não estava em terapia. Tinha de me cingir ao instrumento de avaliação:
– Deve responder com uma destas opções: sempre; frequentemente; às vezes; raramente; quase nunca ou nunca.
– Sempre. É como se o cansaço fizesse parte de mim, uma sombra constante que me acompanha, quase uma companheira inseparável. – O seu riso não continha traços de leveza, mas sim uma manifestação do peso
esmagador que o tal «cansaço» exercia sobre ela. Era um riso marcado pela exaustão e pela procura de uma saída.
Lembrei‑me de uma passagem do Livro do Desassossego , de Fernando Pessoa: «O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gémeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo.» Era como se Madalena «estivesse sendo».
Sem que tivesse hipótese de passar para a questão seguinte do inventário, Madalena continuou a narrativa:
– Estou sempre a pensar no que tenho de fazer e parece que não estou verdadeiramente em lugar nenhum.
O seu telemóvel coleciona grupos de WhatsApp e a sua cabeça listas to do referentes quer ao trabalho quer aos filhos e/ou à gestão doméstica. – Parece que estou meio apática. Às vezes só me apetece desaparecer!
«Fuguir!» – disparou em madeirense puro.
O facto de Madalena estar em crise causou‑me ambivalência. Se, por um lado, começava a ser claro que beneficiaria de um processo terapêutico, não havia a mínima hipótese de o iniciarmos. Não tinha espaço na agenda para aceitar novos pacientes e estava a concluir a formação em (mais uma!) sociedade de psicoterapia. Era a minha prioridade absoluta. Estávamos em junho e tinha, como era habitual, um período de férias marcado para agosto. Acresce que obtivera finalmente o sim no teste de gravidez e fora surpreendida por uma gravidez gemelar. Exatamente por ser uma gravidez gemelar (e, por isso, de risco), entraria de baixa muito possivelmente ainda no primeiro trimestre de gestação.
Nunca aceitava pacientes novos com a aproximação de um período de interregno. Aprendera que o efeito da interrupção podia ser profundamente disruptivo e gerar no paciente um sentimento abandónico contraproducente.
Por isto, e bem vistas as coisas, não sei bem se por mim ou se por Madalena, senti necessidade de esclarecer esta situação para evitar qualquer equívoco e dissipar qualquer possibilidade de indefinição do nosso espaço.
– Madalena, deixe‑me agradecer‑lhe, uma vez mais, a disponibilidade e o interesse demonstrados em participar neste estudo. Este nosso tempo cumpre o propósito de investigação, isto é, estaremos juntas durante o tempo que decorrer a entrevista, que é de caráter de investigação e não terapêutico. É importante estarmos ambas cientes disto. No entanto, se, no final, concluirmos que beneficiaria de psicoterapia, terei todo o gosto em encaminhá‑la para alguém da minha confiança. Parece‑lhe bem?
Estava satisfeita com a assertividade que acabara de demonstrar. Havia delimitado cuidadosamente o terreno com as minhas palavras, escolhendo com confiança aquelas que acreditava serem as corretas, não deixando qualquer espaço para ambiguidades. Convencia‑me de que, desta maneira, estaria protegida, resguardada das sombras cinzentas que poderiam ameaçar a segurança daquele espaço que era, afinal, de investigação.
Madalena anuiu com um aceno de cabeça.
– Estou compreendendo – disse em bom madeirense.
Estávamos em sintonia.
Madalena é recém‑divorciada de Miguel, com quem manteve um casamento de dez anos e com quem consegue preservar hoje uma relação de amizade. «Chamemos‑lhe antes cordialidade», corrigiu.
Se estivéssemos em contexto terapêutico, pararia ali e debruçar‑me‑ia sobre a vivência psicológica do divórcio recente. Recordei as palavras do professor Daniel Sampaio: «Não há divórcios felizes.» Afinal, o divórcio envolve lidar com sentimentos de perda, tristeza, raiva, culpa e incerteza em relação ao futuro. Implica mudanças drásticas na vida e um natural processo de reajustamento a essas mudanças. Mais,
mexe com questões identitárias (lembro‑me a este propósito de uma paciente que dissera ter recebido com alívio a chegada do cartão de cidadão por nele não constar o «DIV» escarrapachado do antigo bilhete de identidade) e não deixa de ser um projeto de vida que falha. Afinal, ninguém casa «até quando».
– Quando casamos é para sempre, mas o problema não é o «para sempre». O problema é o «todos os dias». Sentia que dava mais do que recebia no meu casamento… – Madalena pareceu refletir por um momento. Os seus olhos, antes fixos no horizonte, pareciam procurar algo indefinível enquanto ponderava as suas próprias palavras. Um misto de tristeza e de aceitação tornou‑se visível no seu semblante.
O problema não é o «para sempre», o problema é o «todos os dias», repeti para comigo. Nos casais que me passavam pela consulta, via isso mesmo. O problema é o outro criticar demais ou fazer de menos; o problema é o outro ressonar, esquecer‑se de levar o lixo, não substituir o rolo de papel ou insistir em deixar aquele parco resto de leite no pacote. O problema não é o «para sempre». O problema é o «todos os dias». E no alvoroço das obrigações do trabalho, das birras das crianças, das compras da semana, da natação e do
ballet, os casais esquecem‑se de casar um bocadinho todos os dias e todos os dias se divorciam devagarinho. Nos casais que via, havia, regra geral, um que sentia dar mais do que o outro. Mas a reciprocidade é necessária nas relações amorosas. «Amar pelos dois» é bonito, mas só na canção. O problema não
é o «para sempre». O problema é o «todos os dias». E a dificuldade não está tanto em encontrar alguém com quem ficar até velhinhos, mas alguém com quem consigamos ser crianças. Todos os dias, um bocadinho.
Depois de ver tantos casais em clínica, tenho para mim que o casamento mais duradouro é muito mais apaixonante do que a mais tórrida das paixões. Qualquer um se apaixona. O difícil é fazer perdurar no tempo e no espaço os «sins» inteiros e multiplicados. Recordo, a este propósito, Miguel Esteves Cardoso, que escreveu que há poucos verbos mais difíceis de conjugar do que o «salvaguardar».
Madalena não estava num processo psicoterapêutico, pelo que não fazia sentido explorar o domínio do divórcio. Limitei‑me, por isso, a sublinhar o estado civil como mais um fator de risco para o quadro de burnout. A literatura apontava para uma maior prevalência do quadro em solteiros, divorciados e viúvos.
Preparava‑me para lhe lançar a segunda questão do inventário. Contudo, Madalena mostrou vontade (ou talvez necessidade) de desenvolver o tema do divórcio.
– Há já muito tempo que não estávamos bem. Já estávamos «separados de facto». – Fez o gesto de aspas com as mãos e soltou um riso que carregava consigo a complexidade das emoções acumuladas ao longo do tempo, uma mistura de tristeza pelo que se perdeu e um leve alívio por reconhecer a realidade da situação. – Passámos a ser gestores depois de os miúdos nascerem. Já não éramos um casal. E foi preciso coragem para assumir, para mudar. É preciso coragem para mudar, não é, doutora?
É! E o que Madalena trazia sobre a necessidade de mudança fazia particular ressonância em mim. Às vezes, muitas vezes, ficamos presos demasiado tempo no que nos faz mal. O meu próprio processo na luta contra a infertilidade durara tempo demais. Precisei de dizer «chega» aos injetáveis, aos exames e aos cálculos. Chegava! E precisei, a dada altura, de uma mudança.
Vejo muitas vezes em consulta pessoas que, de alguma forma, preferem assegurar o mal que já conhecem do que correr o risco de pisar terreno desconhecido. Afinal, não há mudança sem perda. É por isso que tantas
vezes dizemos querer mudar e ficamos exatamente no mesmo lugar. A verdade é que há relações que nos subtraem e nada nos acrescentam, há trabalhos que nos consomem e há formas de viver que (já) não o são. Nem todas as mudanças pressupõem um nascer de novo. A maioria faz‑se (apenas) com o fim de algo que se demora há tempo demais. Eu própria pusera um fim. Após dois anos de manhãs que se fundiam com tardes nos corredores do hospital, ecografias, cálculos, contagens, comprimidos e injeções, decidi que era hora de ver o fim e fazer uma pausa nesta jornada contínua e continuada de gestão de expectativas e adiares sucessivos. E fizera também eu uma mudança. Mudara o rumo. Procurara uma médica especialista, Ana Paula de seu nome, que me fora recomendada por quem tinha lutado (e vencido) a mesma luta. E, tal como acontecera com outros testemunhos, também o meu sonho ganhara já corpo (dois corpos, sendo precisa), que crescia dentro de mim. E, tal como acontecera com Madalena, tivera a sobriedade de pressentir a necessidade da mudança a tempo do tempo que precisava para mim.
– E depois assumir que tinha chegado a hora de pôr um fim. Foi muito «dificilhe». – O sotaque madeirense acentuou‑se. – Mas, ao mesmo tempo, foi um certo alívio tomar essa decisão.
As frequentes ausências e a indefinição de horários inerentes à profissão de piloto de aviões de Miguel criaram, segundo ela, um terreno fértil aos conflitos conjugais, que se tornaram constantes depois da chegada dos filhos.
– Depois de os miúdos nascerem, começámos a discutir. As nossas discussões eram sempre sobre os miúdos. Eu fiz assim, ele fez assado. Eu fiz «aquilho», ele não fez.
Era uma dinâmica que via muito em consulta. Não apenas em psicoterapia individual, mas também em terapia familiar/conjugal. «Agora que temos um bebé é que começamos a discutir?» Dou conta de que muitos
casais têm dificuldade em reajustar‑se a esta, de somar. Baby clash é o nome que se dá ao impacto da chegada de um filho nos casais. Para muitos, ser «pais» é uma verdadeira bênção e rapidamente agarram o substantivo, sem, no entanto, acolherem o conceito. Os números falam por si: grande parte das separações/divórcios acontece nos dois primeiros anos de vida do bebé. A par de toda a carga positiva, a chegada de um bebé implica um considerável processo de adaptação para o casal. Para muitos casais, a parentalidade é um conceito abstrato até se confrontarem com choros madrugada fora e o ombro da camisola permanentemente ensopado. Junte‑se a esta equação as alterações hormonais da gravidez e pós‑parto, a privação de sono, as exigências do trabalho lá fora e dentro de casa, que aumentam agora exponencialmente. As canções não falam nisto. Os livros não falam nisto. Têm para lá um subcapítulo que aborda na diagonal qualquer coisa
sobre o impacto da falta de tempo, da importância do suporte familiar, mas ninguém nos prepara. O declínio da vida sexual e a falta de comunicação são as razões mais apontadas pelos casais. Sem que disso se dê conta, os diálogos dão lugar a trocas monossilábicas de pergunta/resposta: «Arrotou?», «Fez cocó?», «Vais buscar tu ou eu?». É importante o casal ser e estar devidamente estruturado antes da chegada de um bebé. É um acontecimento maravilhoso, mas, contrariamente àquilo que se vende como sendo uma época cor‑de‑rosa, não deixa de ser uma altura de crise para o casal e jamais poderá ser depositada nela a expectativa de um salvar de relação quando os problemas já existem.
A Madalena trouxera também a discordância de visões. Recebo muitos pais divergentes em relação à educação dos filhos. A terapia familiar trouxera‑me uma sensibilidade aguçada para as questões da transgeracionalidade e herança familiar. A verdade é que aquela mãe e aquele pai já foram filha e filho e, muitas vezes, estes filhos que outrora foram são carregados e transportados para o exercício da sua parentalidade. Claro que as discordâncias são muito naturais. Afinal de contas, estes pais têm eles próprios,
e na maioria das vezes, percursos de vida muito distintos. O desafio está em conseguir alinhamento, mesmo com a discordância. Também não é raro ver‑se os casais entrarem numa espécie de jogo de culpa aquando da chegada dos filhos. Uma espécie de competição nefasta sobre qual dos dois abdica mais das «suas coisas» em prol dos cuidados com os filhos. A verdade é que este jogo de culpa é retroalimentado pela sensação de não serem vistos, de não estarem inteiros, o que muitas vezes se traduz em «birras de
crescidos».
Estávamos a desviar‑nos largamente das questões do inventário em particular e do burnout, largo espectro. Apesar do meu interesse e da necessidade de Madalena em explorar o domínio mais pessoal, tinha um guião
de entrevista que me propunha cumprir. Debrucei‑me então sobre a questão seguinte que compunha o inventário.
– Voltemos então ao nosso inventário: «Com que frequência pensa: “Eu não aguento mais isto?”» Sempre, frequentemente… – Madalena interrompe‑me.
– Todos os dias. Várias vezes por dia. Às vezes só me apetece desaparecer! Se lhe fizesse uma descrição de um «dia normal» percebia.
Os seus dias são passados entre trocas de emails e telefonemas com clientes, o resfriamento das expectativas de uma chefe pouco flexível e a gestão rigorosa da logística doméstica e familiar.
Devido aos horários incertos de Miguel, o regime da guarda partilhada previamente acordado estava longe de ser medido à régua ou tampouco equilibrado.
Cada movimento de Madalena era marcado por uma inquietação constante, como se estivesse sempre um passo à frente ou um passo atrás do
ritmo do mundo ao seu redor. Cruzava os braços de forma subtil, como se quisesse esconder a gordura corporal localizada no abdómen e nos quadris. No entanto, apesar desse gesto de autodefesa, Madalena mantinha uma postura ereta e confiante.
– Não há um regime preestabelecido. Combinámos que ele ficava com os pequenos quando não estivesse voando. Mas depois há o simulador. E depois há as assistências em que pode ser chamado a qualquer altura.
Já aconteceu estar com os miúdos e ser chamado às onze da noite para ir voar! E com isto acaba por ser menos desorganizador para eles ficarem comigo – disse, encolhendo os ombros em jeito de resignação. – Quando nos separámos, quis mudar‑me para o Funchal com os miúdos. – Pareceu alheia ao leve som do telemóvel proveniente da sua mala. – Lá sempre tínhamos o meu pai e os meus irmãos para darem uma mãozinha, mas ele opôs‑se.
Funchal. Eu sabia.
A Madalena era uma mulher como tantas outras que via em consulta. Muitas sentem‑se assoberbadas entre as exigências da maternidade, os deveres de uma profissão exigente e as demandas que uma relação sustentável requer. Desdobram‑se em papéis e funções e lutam diariamente para equilibrar todas essas facetas das suas vidas. A Madalena não era exceção. Também ela enfrentava esse desafio constante de conciliar múltiplos papéis. No entanto, por mais que se esforçasse para manter esse equilíbrio, Madalena sentia‑se permanentemente em falta ou em falha em algum dos domínios da sua vida. A pressão, as expectativas e a procura por excelência em todas as áreas pesavam sobre os seus ombros como uma carga pesada.
Madalena era, também ela, como uma ilha solitária no vasto oceano de si, procurando avidamente a conexão entre terras e um porto seguro onde atracar e partilhar o peso dos seus desafios e anseios.
– Tenho a sensação de que já estou saindo de casa atrasada para voltar. Não tenho tempo para mim, para ir ao ginásio, para jantar com uma amiga. Também não tenho muitas aqui no continente. Nem oiço as músicas que eu gosto de ouvir. Só toca o Panda ou a banda sonora do Encanto no meu carro. Não tenho tempo para ler um livro.
«Desmaiei um bocado da minha própria vida.» A frase de Fernando Pessoa chegou‑me como um flash.
Madalena até tentava, mas quando a noite condescendia ao seu turno de mãe e as crianças, por fim, sucumbiam ao cansaço, dava‑se rapidamente por vencida no duelo que travava com os seus olhos.
– E é ali, quando os vejo dormindo e lhes aconchego as mantas, que parece que caio em mim. – Fez um breve silêncio. – Estão respirando tão profundamente… Ali prometo‑lhes que vou tentar fazer melhor. Que vou
ser mais paciente, que não vou gritar, que vou respirar à enésima vez que oiço «mããããe!» e vou estar mais disponível. Mas depois o dia seguinte vem e começa tudo outra vez!
– O que é o tudo, Madalena?
– É a correria. O ritmo desenfreado. As mil e uma coisas que tenho de fazer. Os prazos que tenho de cumprir, o email que tenho de enviar, a reunião a que tenho de ir. Mas o que é tonto é que parece que não consigo estar de outra maneira. Lá estava de novo a linguagem madeirense: o «tonto» como sinónimo de nonsense.
As pessoas com burnout têm muito a narrativa do «ter de». É‑lhes difícil discernir o que são escolhas, o que são decisões, do que são obrigações. Têm, regra geral, dificuldade em dizer não e em estabelecer limites, até que o limite deixa de ser um limite e passa a ser uma limitação.
(…)