Viciados, isolados e deprimidos: O que os telemóveis estão a fazer às nossas crianças

Viciados, isolados e deprimidos: O que os telemóveis estão a fazer às nossas crianças

Visao 1593
A capa da VISÃO de 14 de setembro de 2023

A mudança do quarto para o quinto ano é abissal. Dentro da sala de aula, já se sabe, muda tudo quando se deixa a “escola primária”, mas nos recreios também. Começa o silêncio. Isolados ou em pequenos grupos, todos convergem para o pequeno ecrã. Para muitos miúdos, é a primeira vez que têm um telemóvel só seu e, aos 10 anos, tudo é obsessão e vertigem. Os grupos de WhatsApp correm à solta (a idade mínima para se entrar nesta rede social é 16 anos), e as “aves raras”, a quem os pais não deram um telemóvel, ficam sem amigos para brincar.

A partir desta quinta-feira, 14, os cerca de três mil alunos das nove escolas de Almeirim, no concelho de Santarém, terão grandes limitações ao uso do telemóvel – para as crianças do 1.º, 2.º e 3.º ciclos, a proibição é total, nem durante as aulas nem nos tempos livres; no Secundário, os adolescentes colocam os dispositivos em suportes, nas salas de aula, e a sua utilização nos intervalos está a ser ponderada.

“A situação mais crítica passa-se no 2.º Ciclo: os alunos, no recreio, não estão preocupados em comer, brincar ou ir à casa de banho, só pensam em jogar”, descreve José Carreira, diretor de um dos dois agrupamentos de escolas de Almeirim. “Se fosse só para telefonar… Filmam coisas que não deviam filmar, publicam no Instagram [idade mínima exigida é 13 anos], e é uma ótima ferramenta para fazer bullying”, acrescenta.

Entre os riscos mencionados pela UNESCO, no seu relatório A tecnologia na Educação (2023), está precisamente o bullying digital, com dados de 32 países a mostrarem que, em média, pelo menos 20% dos estudantes do 8.º ano já foram vítimas.

Mas não é só. O documento mostra que o fascínio pela tecnologia não é assim tão benéfico em termos educativos, recordando dados de avaliações internacionais em larga escala, que sugerem uma correlação negativa entre o uso excessivo das tecnologias de informação e comunicação e o desempenho académico. “Temos de ensinar as crianças a viver com e sem tecnologia; a tirar o que precisam da abundância de informação, mas a ignorar o que não é necessário; a deixar a tecnologia apoiar, mas nunca suplantar as interações humanas no ensino e na aprendizagem”, referiu Manos Antoninis, diretor da equipa que elaborou o relatório.

Eles vão estrebuchar, e ainda bem, é normal, mas o papel dos pais e das escolas é proteger

Graça Milheiro, Pedopsiquiatra

Ao nível europeu, há países que começam a reavaliar a utilização dos manuais digitais, como a Noruega e a Suécia, e por cá também há novidades, como pode ler a seguir, na entrevista com o ministro da Educação.

A E-READ, rede europeia de pesquisa de leitura, chegou à conclusão de que o uso de ecrãs para a leitura, na área da educação, afetava a compreensão e a profundidade de processamento da informação. Uma preocupação acompanhada por Filipe Palavra, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia: “Do ponto de vista clínico, os manuais digitais não deviam avançar. Quando as crianças ainda estão a adquirir competências de motricidade fina, é pernicioso colocar-lhes um computador à frente”.

A brutalidade do “cyberbullying”

Segundo um inquérito feito a crianças e jovens portugueses, entre os 9 e os 17 anos, conduzido pela rede EU Kids Online e divulgado em 2020, 90% usam o telemóvel todos os dias e 87% têm acesso frequente à internet por smartphone. A maioria (80%) utiliza a internet para ouvir música e ver vídeos, assim como para comunicar com familiares e amigos e consultar as redes sociais (75%). Já 24% das crianças e jovens portugueses admitiram ter sofrido bullying (online e offline), sendo o cyberbullying mais referido do que o bullying cara a cara.

“A permanência e a recorrência deste tipo de episódios são altamente fragilizantes e desafiadores”, aponta a psicóloga Diana Alves. No online, acrescenta, “há um palco com um risco maior, porque há reações e palavras que presencialmente não se era capaz de ter. Esta ausência de rosto deixa-nos libertos de alguns filtros, que nos tornam menos sensíveis ao impacto que vamos ter nos outros, porque faltam-nos a presença física e a sua reação”.

Recreio Na mudança para o 5.º ano, as crianças a quem os pais ainda não deram um telemóvel queixam-se: “Não tenho amigos com quem brincar”

Já existe investigação extensa a demonstrar que o bullying (incluindo o cyberbullying) na escola pode ter consequências graves, a curto e a longo prazos, para os alunos: insegurança na escola, sofrimento psicológico, níveis mais baixos de desempenho académico e de frequência escolar. Alguns estudos também associam o cyberbullying a sintomas depressivos, de moderados a graves, ao uso de substâncias, à ideação suicida e a tentativas de suicídio. Com a utilização constante dos telemóveis, há inevitavelmente mais portas de entrada para situações de risco.

A medida radical agora adotada em Almeirim já leva seis anos de execução em Santa Maria da Feira. Em 2017, uma mudança ponderada pela direção do agrupamento António Alves Amorim, em Lourosa, foi aprovada num Conselho Geral, do qual também fizeram parte encarregados de educação e representantes dos alunos dos vários ciclos de ensino.

A possibilidade de se poder fotografar ou filmar dentro da sala de aula e nos balneários, deixando professores, crianças e adolescentes expostos nas redes sociais, foi um “bom” argumento para se validar a proibição de telemóveis nos oito estabelecimentos de ensino do agrupamento, com cerca de 1 500 estudantes, dos 3 aos 16 anos.

“Se, sem telemóveis, o bullying existe em pequenos grupos; com fotografias e vídeos, esse ato é multiplicado numa escala muito maior na comunidade escolar”, alerta Mónica Almeida, diretora do agrupamento.

Proibir ou não: o que os outros países andam a fazer

Portugal não está sozinho na discussão sobre o uso de smartphones nas escolas, dentro e fora de aulas. Outros países já tomaram uma posição

A UNESCO estima que um em cada quatro países proibiu smartphones nas escolas. O problema é global, mas as soluções adotadas foram variadas.

França foi dos primeiros a banir o uso de telemóveis, tablets e smartwatches nas escolas por menores de 15 anos, a qualquer hora do dia e inclusive nos recreios. A medida, adotada em setembro de 2018, tinha sido um dos motes de Emmanuel Macron durante a campanha presidencial, face às dependências e perturbações na aprendizagem. A lei francesa estabelece que são as escolas a determinar toda a logística. 

Neste ano letivo, os três tipos de aparelhos foram igualmente banidos das salas de aula dos Países Baixos, por serem considerados disruptivos para a aprendizagem. Mas o governo holandês deixou para as escolas a definição das regras exatas, entre professores, pais e alunos.

Já em 2015, Taiwan proibiu que crianças menores de 2 anos usem dispositivos eletrónicos como iPads, televisões e smartphones. Os pais que permitem que os seus filhos brinquem com estes gadgets terão de pagar uma multa. A lei também estabelece que os pais devem garantir que os menores de 18 anos só utilizem aparelhos eletrónicos durante um período “razoável”.

Recentemente, a administração do ciberespaço na China propôs a regulação do uso de telemóveis por menores: até aos 16 anos, só poderiam ser usados uma hora por dia; dos 16 aos 18 anos, durante duas horas. Isto exigirá que os fabricantes de dispositivos, sistemas operativos, aplicações e lojas de aplicações introduzam o chamado “modo menor” para limitar o tempo gasto nos ecrãs. De acordo com o plano, os dispositivos com este modo ativado ficariam praticamente inutilizáveis ​​entre as 22h e as 6h. Além do mais, mensagens pop-up lembrariam as crianças da necessidade de descansar após usarem os telefones por 30 minutos. Estas regras ainda não entraram em vigor, mas já provocaram a queda das ações das empresas tecnológicas chinesas na bolsa. O governo chinês já tinha imposto restrições aos jogos online para crianças e jovens, limitando o uso a apenas três horas por semana.

Na Finlândia, berço dos Nokia, o governo de extrema-direita anunciou que fará as alterações legislativas necessárias para permitir restrições mais eficientes ao uso de dispositivos móveis durante o dia escolar, para que os alunos possam concentrar-se melhor no ensino.

Nos Estados Unidos, um relatório de 2020 do Centro Nacional de Estatísticas da Educação afirmava que 76% das escolas já proibiam o uso de telemóveis.

Sustentada pelo Estatuto do Aluno, na Lei 51/2012, no seu Artigo 10.º, alínea r), em que se diz: “Não utilizar quaisquer equipamentos tecnológicos, designadamente telemóveis, equipamentos, programas ou aplicações informáticas, nos locais onde decorram aulas ou outras atividades formativas (…)”, a direção do agrupamento António Alves Amorim entende que os intervalos integram as “outras atividades formativas”. “Para nós, o que se passa no intervalo é englobado no tempo total que se passa na escola. Ali, os alunos também estão a formar-se. É muito importante que desenvolvam as capacidades de socialização, de resolução de problemas cara a cara, sem se esconderem atrás do pequeno ecrã”, justifica a docente.

Ideias partilhadas pelos autores da petição Viver o recreio escolar, sem ecrãs de smartphones!, com mais de 19 mil signatários e a caminho de discussão na Assembleia da República. “Se o Estatuto do Aluno peca na sua alínea r), por não mencionar o recreio, o local específico de lazer nos intervalos, e se a sua alínea s) já proíbe a captação de sons e imagens de atividades letivas e não letivas, sem autorização prévia da direção escolar, porque não avançar com a revisão da lei?”, questiona Mónica Pereira, uma das primeiras peticionárias. “A petição também serve para os pais se questionarem se é preciso dar um telefone. E, se é só para fazer chamadas, porque têm de ter acesso à internet?”, acrescenta.

Tradicional ou digital?

São precisos mais joelhos esfolados e recreios menos silenciosos. “É uma mais-valia as crianças não terem os telemóveis no recreio. Os jovens estão a maior parte do tempo em contexto de sala de aula, em aprendizagem, num ambiente mais formal. Mas nos intervalos existe outro tipo de aprendizagem, a aprendizagem das relações, em que eles interagem com os pares, trabalham a empatia e as competências sociais, que só se desenvolvem cara a cara. Ganham a capacidade de demonstrar afetos; os jovens precisam de se tocar. O telemóvel vai bloquear a capacidade de brincar, correr, rir e de estimular a sua criatividade”, defende Graça Milheiro, pedopsiquiatra e diretora do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência, do Centro Hospitalar de Leiria.

Nas salas de aula de Lourosa, o professor da primeira hora guarda os telefones numa caixa e o do último tempo devolve-os à saída. Se os alunos permanecerem na escola, em atividades de desporto ou de apoio escolar, mantêm-se sem telefone. A única exceção contemplada passa por atividades curriculares na aula, que incluam algum tipo de jogo ou o uso da Kahoot!, plataforma com atividades de múltipla resposta.

Mundo de problemas Filmagens não autorizadas, cyberbullying, o vício dos videojogos e a grande distração na sala de aula, os jovens não estão preparados para resistir ao fascínio do telemóvel (nem muitos adultos)

“Somos completamente a favor do uso dos vários recursos digitais na sala de aula. Há disciplinas que utilizam o computador como recurso privilegiado. O ideal é existir a combinação entre os métodos tradicionais e as abordagens digitais. No Ensino Básico, não devemos descartar nenhum deles”, esclarece Mónica Almeida.

E acrescenta: “Temos o projeto Robótica no Pré-escolar; no 1.º Ciclo há, pelo menos, um dia em que as crianças utilizam o computador como recurso pedagógico; para o 7.º e 8.º anos, na disciplina STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática), com recurso aos mais diversos meios tecnológicos, desenvolvem projetos nessas áreas.”

Enquanto Portugal, neste ano letivo, terá 21 260 alunos de 160 escolas a estudar com manuais digitais, a quarta fase do projeto-piloto lançado pelo Governo e que abrange turmas do 3.º ao 12.º anos de escolaridade, na Suécia os professores estão a voltar a usar os tradicionais livros em papel. Ao mesmo tempo que a Agência Nacional de Educação sueca fala na introdução de tablets logo nos jardins de infância – medida que a ministra da Educação quer reverter –, os docentes estão a privilegiar o tempo dedicado à leitura silenciosa e à prática da caligrafia.

“Analfabetos motores”

A Ciência ainda não chegou a conclusões definitivas sobre os efeitos do tempo passado à frente dos ecrãs. A inovação constante dos dispositivos torna difícil seguir o rasto do impacto. Onde começa a surgir informação mais credível é no que diz respeito às idades precoces, de tal forma que a Organização Mundial da Saúde já lançou diretrizes quanto a tempos-limite para crianças com menos de 5 anos (ver infografia).

Apesar de existirem no mercado inúmeros produtos digitais, que prometem estimular e educar, há cada vez mais evidências de que os ecrãs não são uma ferramenta eficaz para bebés e crianças. Há estudos a associar mais tempo passado nestes dispositivos a um pior desempenho em testes de triagem comportamentais, cognitivos e de desenvolvimento social ou a mostrar que assistir a programas educativos de televisão, para menores de 2 anos, não era tão eficaz quanto a interação ao vivo, por exemplo em tarefas simples de imitação, na aprendizagem de línguas e na aprendizagem emocional.

Vida “offline” Correr, brincar em grupo, jogar à macaca, à bola, às escondidas, saltar à corda, ao elástico… recreios barulhentos e cheios de energia

Filipe Palavra, neurologista e neuropediatra, é perentório: “Em crianças pequenas, abaixo dos 2 anos, a utilização de tecnologias e de ecrãs devia ser proscrita, porque pode contribuir para amputar aquisições importantíssimas do desenvolvimento, como as competências sociais. É imprescindível a interação olhos nos olhos, com os pares e não só; não podem estar concentradas num ecrã”. Consequências na linguagem, na memória, na capacidade de concentração e no desenvolvimento da empatia também têm sido registadas.

Dezenas de investigações mostram um padrão comum: as crianças aprendem melhor cara a cara do que a olhar para uma tela e, normalmente, consideram os conteúdos digitais confusos, a não ser que tenham a presença de um adulto por perto a ajudar.

Para Carlos Neto, um dos maiores especialistas na área da brincadeira e do jogo, “até aos 6 anos, as crianças precisam de experiências multivariadas, de uma multiplicidade de contactos do ponto de vista sensorial, motor, percetivo, social, emocional, para criarem uma relação com os próprios corpos, os outros, os objetos, o mundo. Os ecrãs convergem para uma estimulação unilateral. É urgente redescobrir o corpo nesta revolução digital que estamos a viver”.

O professor jubilado da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa fala de uma “tragédia” do ponto de vista do sedentarismo. “Estamos a criar analfabetos motores.” Vários estudos comprovam-no, associando o uso elevado de smartphones e de redes sociais a um menor envolvimento em atividades físicas, assim como a um aumento do consumo de comida não saudável.

Os dispositivos digitais, a que Carlos Neto reconhece algumas vantagens (desde que usados com moderação), não são os únicos culpados desta inatividade. “Os espaços exteriores das escolas são uma vergonha. Temos de valorizar, humanizar e naturalizar os recreios. Se tiverem, nestes espaços, grandes desafios, os miúdos largarão os telemóveis”, acredita o professor. O problema estende-se ao modelo de aprendizagem. “As crianças estão quietas, caladas, aparafusadas às cadeiras… Os adultos estão com dificuldades em tolerar a energia delas. Mas corpos ativos dão cérebros ativos. O corpo não pode ficar à porta da escola.”

Falamos em atividade física, mas também não nos podemos esquecer do repouso. “Há implicações no ritmo biológico do cérebro devido à exposição a este tipo de ecrãs, cuja radiação o cérebro interpreta como correspondente à luz do dia, provocando uma diminuição da melatonina, que faz com que o sono venha mais tardiamente. A criança adormece mais tarde e tem necessidade de acordar mais tarde, só que não pode fazê-lo, porque tem de ir para a escola. Então, vai cheia de sono, irritada, com dores de cabeça, não aprende tão bem… E isto é uma bola de neve difícil de gerir no seio familiar”, avisa Filipe Palavra.

Redes sociais: o inimigo?

A atratividade dos telemóveis é consensual. “A disponibilidade e a acessibilidade dos smartphones propiciam e exacerbam a dependência. A riqueza dos estímulos, a quantidade infinita de informação acessível, numa zona de conforto, difícil de alcançar noutras circunstâncias, pois não exige deslocações nem ajustes, permitem uma exploração muito autónoma, prazerosa e compensadora. Em muitos aspetos, as alternativas ficam aquém”, sublinha a psicóloga Diana Alves.

“É muito fácil ficar viciado nestes dispositivos”, aponta Filipe Palavra. “O nosso cérebro está preparado para responder de forma favorável a algo que lhe dá prazer. Estes circuitos positivos reforçam-se intrinsecamente: quanto mais os usamos, mais gostamos deles, mais dependentes ficamos e mais irritados também ficamos, se não tivermos acesso a este tipo de coisas. Ora, isto numa fase precoce do desenvolvimento é catastrófico”, alerta o neurologista, e daí a importância de se limitar e de se racionalizar a sua utilização.

O contexto pessoal e social das crianças e adolescentes pode tornar mais propício o vício na utilização de ecrãs. “Se tiverem poucos amigos, sem uma ocupação extracurricular, que os desafie e estimule, com relações menos marcadas com os elementos da família, a ponto de não sentirem ímpeto a realizarem atividades em conjunto, podem, por exemplo, ter mais tendência a se isolarem no quarto, na exclusiva companhia da tecnologia”, adianta Margarida Crujo, coordenadora da equipa de pedopsiquiatria do Centro da Criança e do Adolescente, do Hospital CUF Descobertas.

Tempos pandémicos O Estudo em Casa foi uma operação extraordinária; por outro lado, os miúdos ficaram mais agarrados aos ecrãs

Um inquérito, divulgado pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) – a mais de 70 mil jovens de 18 anos, que participaram em 2021 no Dia da Defesa Nacional –, revelou que seis em cada dez jovens passam mais de quatro horas por dia online (mais 8% do que em 2019). Cerca de 30% permanecem seis ou mais horas por dia nas redes sociais (usadas por 99% dos inquiridos) e 24%, quatro a cinco horas diárias. Além disso, 60% dos inquiridos jogam online (mais 6% do que em 2015) e, destes, 15% assumem passar aí seis horas ou mais. Preocupante é o facto de cerca de um terço reconhecer que o tempo passado online tem causado problemas: mal-estar emocional, diminuição do rendimento escolar e mau comportamento em casa.

Quando a psicóloga Jean Twenge, da Universidade de San Diego, publicou em 2017 o artigo Os smartphones destruíram uma geração, na revista The Atlantic, os alarmes soaram estridentemente. O crescimento nas taxas de depressão, nos suicídios e na solidão na Geração Z (nascidos nos finais da década de 1990 até ao início da década 2010) perspetiva uma crise mundial de saúde mental no horizonte, e Twenge culpava os smartphones.

Muitos críticos apontaram a fragilidade da tese. Uma delas foi Amy Orben, investigadora na Universidade de Cambridge, que chamou a atenção para o facto de o uso dos ecrãs ser muito diferenciado e, por isso, devia evitar-se uma correlação simplista com o bem-estar dos adolescentes. Procurou então ser mais específica. Num estudo publicado em 2022, Orben chegou à conclusão de que há uma maior sensibilidade às redes sociais e um menor índice de satisfação com a vida em certas faixas etárias: em raparigas, entre os 11 e os 13 anos; nos rapazes, entre os 14 e os 15 anos, e, em ambos os sexos, aos 19 anos.

As crianças estão quietas, caladas, aparafusadas às cadeiras… Os adultos estão com dificuldades em tolerar a energia delas. Mas corpos ativos dão cérebros ativos

Carlos Neto, Professor jubilado da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa

O psicólogo Jonathan Haidt tem reunido, analisado e tornado pública uma quantidade expressiva de informação sobre o tema, que aponta para o contributo das redes sociais no aumento das depressões e da ansiedade nos adolescentes. Para ir mais longe, a Ciência precisa de perceber o que os torna mais suscetíveis aos riscos e quais os conteúdos mais problemáticos.

Nem todos os miúdos são afetados negativamente pelas redes sociais. “Para uns, podem servir para exposição, na perspetiva de uma valorização, para se sentirem apreciados com comentários ou pelo número de visualizações ou de ‘gostos’. Para outros, o contacto com perfis encarados como perfeitos, que se idealizam, poderá contribuir para uma desvalorização do próprio, para a ideia de que ‘a minha vida é muito pior do que a dos outros’”, aponta Margarida Crujo.

Ter telemóvel é ser crescido

Enquanto alguns agrupamentos de Lisboa vão concretizar, neste início de ano letivo, a proibição dos telemóveis nas escolas, sem fazerem grande alarido e sem esperar julgamentos de estudantes e progenitores – caso do Gil Vicente, na Graça, em Lisboa, que acabou de anunciar a proibição em todos os ciclos –, outros mantêm o regime aberto, com algumas restrições. No Agrupamento de Escolas de Benfica, os telemóveis podem entrar na instituição escolar e na sala de aula: quando não leva o computador, o aluno pode usar o telemóvel para fazer pesquisa, caso isso seja necessário para a disciplina; os jovens de língua portuguesa não materna podem usar o tradutor do equipamento durante a aula. “Não existe proibição do uso de telemóvel, desde que este esteja enquadrado na atividade pedagógica”, explica Rosário Alves, diretora do coletivo, com cinco escolas e cerca de 2 700 alunos, dos 3 aos 18 anos.

Nos intervalos, nem todos se comportam da mesma maneira, como descreve a professora do 1.º Ciclo. Se entre os alunos mais novos a percentagem de utilizadores é muito reduzida, já no 2.º e 3.º ciclos abundam as crianças a jogar em rede, enquanto os mais velhos, do Secundário, vão trocando mensagens e convivendo em simultâneo.

Conta-me como foi Uma aula da Telescola nos anos 80. O ecrã era outro

Há dois anos, com o Plano de Ação de Desenvolvimento Digital da Escola, que está contemplada a atividade em sala de aula com computadores, “o que obriga a refletir também sobre o recurso ao telemóvel”. “O objetivo passa por usar menos os telemóveis no recreio. Sobretudo os alunos do 2.º Ciclo, entre os 10 e os 13 anos, que de repente passam para uma escola maior e, num contexto emocional, ter telemóvel é uma forma de se sentirem mais crescidos”, nota Rosário Alves.

Na base da motivação para Mónica Pereira e outros encarregados de educação terem feito a petição estiveram os relatos de crianças que, em 2022, ao irem para o 5.º ano e ao mudarem para uma escola maior, tendo mais disciplinas e novos colegas, chegavam a casa e se queixavam: “Não tenho amigos para brincar, estão sempre com o telemóvel.” Com a maioria das crianças no recreio distraídas em aplicações que modificam a sua aparência física, a jogarem online e a conseguirem ver alguns conteúdos de cariz sexual, “onde fica a inclusão quando os pais ainda não deram um telefone aos filhos?”, interroga Mónica Pereira.

São precisamente crianças como essas que Graça Milheiro acompanha em consulta. “Os pais não podem permitir que os filhos estejam até às três e quatro da manhã agarrados ao telemóvel. Eles vão estrebuchar, e ainda bem, é normal, mas o papel dos pais e das escolas é proteger, contribuindo para o desenvolvimento psicossocial dos jovens. Há quem chegue a casa e não tenha irmãos nem ninguém para brincar”, corrobora a médica.

Crianças com poucos amigos, sem uma ocupação extracurricular que as estimule, podem ter mais tendência a se isolar na companhia da tecnologia

Margarida Crujo, Pedopsiquiatra

No Agrupamento de Escolas D. Filipa de Lencastre, em Lisboa, com três escolas e quase 1 900 alunos, do jardim de infância até ao 12.º ano, a direção liderada por Ana Capitão também não é a favor da proibição total do uso dos telemóveis. “Preferimos o uso consciente em situações com autorização do professor na sala de aula. Em algumas disciplinas, este poderá ser usado para pesquisas, trabalhos de grupo e jogos didáticos”, exemplifica.

Por forma a promover o convívio nos tempos livres, nos recreios, é proibido usar o telemóvel no bar, em locais de refeições e nos corredores. Neste ano letivo, haverá um reforço dos temas na disciplina de Cidadania, incluindo a abordagem do uso consciente do telemóvel. Além disso, terá início um projeto de voluntariado, em que uma das propostas passa pelos alunos de o Secundário dinamizarem jogos coletivos nos intervalos. Sensibilizando os mais velhos, o exemplo ajudará os mais novos a não se tornarem tão dependentes do telemóvel.

Decidir com eles

Ninguém duvida de que é preciso estar atento aos efeitos negativos dos abusos dos telemóveis, mas há quem acredite que proibir não é a melhor forma de combatê-los. “É benéfico criar regras, mas estas deviam ser discutidas, analisadas e explicadas, junto das crianças e dos jovens. Se não os envolvermos na decisão, é só uma regulação externa, e o que queremos é desenvolver processos internos de autorregulação, porque isto não vai desaparecer, vai evoluir”, entende Eduarda Ferreira, psicóloga, membro das equipas de investigação Net Children Go Mobile e EU Kids Online Portugal. “Nem todos os pais têm competências de literacia digital para ajudar os filhos. A escola é o local que garante maior igualdade social e já tem autonomia e currículos para desenvolver estas estratégias”, acredita.

Há implicações no ritmo biológico do cérebro devido à exposição aos ecrãs, provocando uma diminuição da melatonina

Filipe PalavraVice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia

No Agarrados à Net – projeto criado por Tito de Morais e Cristiane Miranda, com o objetivo de promover o bem-estar digital, e não só o combate ao uso excessivo e problemático das tecnologias, mas o ciberbullying, o impacto negativo que as redes sociais têm na imagem corporal das crianças ou os abusos sexuais online –, costuma-se usar a analogia entre uma piscina e a tecnologia.

“Enquanto pais, falamos com os filhos sobre os perigos da água, ensinamo-los a nadar, não tiramos os olhos deles, colocamos cercas à volta da piscina para os proteger. Com as tecnologias, atiramos as crianças diretamente para alto-mar, sem lhes mostrarmos os perigos e ensinarmos a nadar.” Vamos deixá-las em águas abertas?

Artigo publicado na VISÃO de 13 de setembro de 2023

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