Racismo: “Uma discriminação que não nos cansamos de repetir que não existe”

Figurante africano na Exposição do Mundo Português, em 1940 Foto: Coleção Casimiro Vinagre

Racismo: “Uma discriminação que não nos cansamos de repetir que não existe”

A 10 de março, ainda a noite eleitoral não terminara, Pedro Nuno Santos, secretário-geral do Partido Socialista, afirmou confiar que não há um milhão de “racistas” em Portugal, numa referência ao número de eleitores do Chega. A declaração prolonga um debate que se agudizou nos últimos anos em torno de várias questões: é Portugal racista? São-no os portugueses? Quem pode decidir quem o é de facto? A precariedade das respostas e a conflitualidade que estas suscitam resultam, em parte, da natureza da pergunta. Nos próximos meses, anos talvez, repetir-se-ão estas perguntas, a que uns e outros responderão, uns mais preocupados em compreender, outros em agir, outros ainda procurando “viralizar” no circuito mutualista que se adensa entre redes sociais e média.

O estudo do passado recente poderá contribuir para essa reflexão, oferecendo pistas de interpretação, mas evitando explicar linearmente o presente com causas longínquas. Sobretudo porque se trata de um passado marcado por, pelo menos, duas especificidades. Primeira: o facto de a sociedade portuguesa, hoje, ser também o resultado de uma desintegração imperial relativamente tardia. Segunda: esse império foi encabeçado por uma metrópole autoritária durante grande parte do século XX. Não que o Império Português tenha sido radicalmente diferente doutros congéneres europeus noutros aspetos, mas estas duas condições não devem ser obscurecidas, constituindo fatores cruciais para interrogar a nossa História mais imediata.

É comum, quando se reflete sobre este duplo legado, sublinhar a importância e permanência do efeito do chamado “lusotropicalismo”, teoria cunhada pelo académico brasileiro Gilberto Freyre e instrumentalizada pelo Estado Novo português para resistir ideologicamente à descolonização. Singularizando a trajetória histórica portuguesa, Freyre postulava que a expansão imperial, na sua longa duração, fora marcada por uma especial apetência para o convívio intercultural, para a “miscigenação”, em contraste com outros fenómenos de colonização. Ainda que outros impérios tenham produzido as suas próprias narrativas de excecionalidade, o lusotropicalismo parece ubíquo nos debates sobre o império e os seus legados, adquirindo um poder explicativo desmesurado, mas frequentemente frágil ao mesmo tempo.

Porto de Lisboa As colónias foram rebatizadas como “províncias ultramarinas”, mas continuam a dar nome aos navios

O objetivo deste texto é mais limitado. Oferece uma janela histórica a partir da qual se pode vislumbrar como funcionários do Estado pensaram e mensuraram a discriminação racial na gestão política e administrativa mais quotidiana, e envidaram esforços para moldar o seu tratamento e discussão na esfera pública. Assim, não está em condições de responder à pergunta para um milhão de portugueses, racistas ou não, hoje ou há 50 anos. Mas talvez ajude a refletir sobre como o passado poderá ter enformado as inquietações que se nos suscitam quando, por exemplo, o Instituto Nacional de Estatística lança um inquérito sobre pertença étnico-racial ou se dá uma manifestação no Martim Moniz contra a imigração. Por dois motivos. Por um lado, parte significativa dos eleitores de hoje formou-se cívica e escolarmente durante o Estado Novo, num ensino marcado por (real) doutrinação ideológica e numa sociedade em que censura e propaganda andavam de mãos dadas. Uma sociedade hierárquica, bloqueadora da mobilidade social e desigual. Por outro lado, os mecanismos repressivos que tolhiam a esfera pública não só limitavam a expressão de visões divergentes como restringiam a possibilidade de apresentar testemunhos e provas sobre acontecimentos particulares que contradissessem a versão do Estado.

Claro, o efeito destes processos foi desigual. Muitos rejeitavam a informação proveniente do Estado e aprenderam a desconfiar da propaganda. Mas, neste caldo cultural, o colonialismo português dá corpo a uma história demasiado recente para que as inconveniências da memória nos permitam o luxo de ignorar efeitos sociais e políticos mais ou menos expectáveis.

Os “óbvios inconvenientes” da discriminação racial

Em 1959, 65 anos antes das últimas eleições, o racismo era objeto de atenção especial nos corredores burocráticos do Estado. Franco Nogueira, então funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), dava nota ao Ministério do Ultramar (MU) do seu incómodo por, na Feira Popular do Jardim da Estrela, haver uma esplanada encimada pelo título “Café dos Pretos”, cujos funcionários eram “indivíduos de cor”. Segundo Nogueira, eram “óbvios” os “inconvenientes” que uma placa daquelas acarretava, desde logo porque se poderia “supor a existência de uma segregação” dos “africanos que, sobretudo, o frequentam”. A Câmara Municipal de Lisboa foi instada a alterar o nome do estabelecimento (o que não se sabe se chegou a acontecer). Mais do que associá-la a um conhecido café nos arredores de Lisboa com nome muito similar (e iconografia a preceito), que perdura, esta vignette é um lembrete oportuno de que a consciência de que certas palavras podem ser inoportunas e ferir suscetibilidades é velha e revelha.

Vivia-se, então, a vaga da descolonização global, que conduziria à multiplicação de novos Estados independentes. Depois do horror nazi e da guerra, a norma antirracista, que estatuía a igualdade de direitos sem distinção de raça, afirmar-se-ia gradualmente, questionando a legitimidade da solução colonial. O Estado Novo, porém, mantinha-se irredutível na recusa de qualquer diálogo sobre o estatuto político das colónias. Na Organização das Nações Unidas (ONU), após a admissão de Portugal, em 1955, o governo argumentava que as “províncias ultramarinas” eram independentes na medida em que a nação, isto é, Portugal, também o era. Argumento que merecia cada vez maior contestação no concerto das nações e nas próprias colónias, onde a atividade dos movimentos anticoloniais se tornava mais notada, e consequente.

A deslegitimação do colonialismo europeu estava, pois, estreitamente imbricada com o processo global de condenação do racismo. Para o Império Português perseverar, seria necessário provar que este era intrinsecamente diferente de outros. Mais do que isso, era necessário dissociá-lo da própria categoria de fenómeno colonial. Parafraseando um atual deputado português, o colonialismo português nunca teria existido. Para que a tese vingasse, contudo, era fundamental demonstrar a ausência de discriminação racial. Esta preocupação administrativa, quase obsessiva, deu origem a várias manifestações, como quando o representante português na Organização Internacional do Trabalho, instado a apresentar leis não-discriminatórias, retorquiu que teria de apresentar toda a legislação em vigor, porquanto toda ela era “não-discriminatória”. Em Portugal (e no império), “não existe discriminação racial”, concluía, na década de 1960.

Afirmações perentórias como esta convenceram alguns, mas nem todos, no império ou no exterior. O chamado indigenato, que estabelecia um regime jurídico dual para diferentes portugueses, era um dos escolhos à retórica oficial. De um lado, os cidadãos gozavam de direitos políticos e civis de acordo com a lei escrita; do outro, os “indígenas” estavam fora do regime de cidadania. O Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias de Angola, Moçambique e Guiné, criado em 1954 (com versões anteriores de 1926/9), era claro sobre quem era o “indígena” – “os indivíduos de raça negra ou seus descendentes, que, tendo nascido ou vivido habitualmente nelas [províncias de indigenato], não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses”. O estatuto contemplava a possibilidade de um “indígena” adquirir a cidadania, e era essa válvula de escape teórica que permitia às autoridades negar qualquer tipo de discriminação racial, pois o critério seria apenas “civilizacional”. Tratar-se-ia de um regime de “proteção especial” e não de exclusão. Respondiam os críticos com a irredutibilidade da expressão “raça negra”: alguns negros podiam ser cidadãos, mas nenhum branco poderia ser “indígena”. O muito ténue peso relativo dos africanos que eram cidadãos adensava as críticas.

Ao colocar os “indígenas” sob a tutela da organização e do direito costumeiros, o “indigenato” exponenciava a sua sujeição à arbitrariedade das autoridades. Uma das peças do regime, e que muitas denúncias suscitava, era o Código do Trabalho dos Indígenas, de 1928. Tinha por axioma que o Estado “não impõe nem permite que se exija aos indígenas das suas colónias qualquer espécie de trabalho obrigatório ou compelido para fins particulares, mas não prescinde de que eles cumpram o dever moral, que necessariamente lhes cabe, de procurarem pelo trabalho os meios de subsistência, contribuindo assim para o interesse geral da Humanidade”. Como muitos documentaram, a lei abria um espaço significativo para a intervenção das autoridades coloniais na monitorização do cumprimento das obrigações laborais, punindo os “indígenas” ou obrigando-os a trabalhar quando estivessem em falta (ou fizessem falta).

Um país “sui generis”: do Minho a Timor

As diligências das autoridades portuguesas para afastar qualquer labéu de colonialismo obedeciam a uma estratégia político-diplomática adicional: afirmar a unidade nacional do império. Portugal seria um Estado unitário, multicontinental e multirracial, desde a revisão constitucional de 1951, que rebatizara as colónias como “províncias ultramarinas”. Estas seriam parcela integral da nação. Aqui residia parte do diferendo com a ONU, rejeitando o governo fornecer informação sobre os seus territórios “não-autónomos”, com o argumento de que não só eram autónomos como independentes.

A ficção de um país harmoniosamente integrado, social e etnicamente coeso, não era um devaneio para muitos na burocracia do Estado. Houve discussões e subsequentes alterações para adaptar os curricula escolares aos ditames da tese da unidade nacional. Como se lia num relatório do MU, dado que apenas uma “parcela não elevada” das crianças portuguesas prosseguiria estudos além da escola primária, “grande parte dos homens e mulheres de amanhã” só aí teria “oportunidade de se aperceber da grandiosidade do Estado português, da diversidade territorial e humana nele existente e dos laços unificadores que superam essa diversidade”. Era preciso iludir a relação hierárquica entre a metrópole e as colónias. Por um lado, reforçando os laços de unidade e, por outro, respeitando as especificidades de territórios diversos. Como explicava Franco Nogueira, numa reunião sobre a ONU, não faria sentido ensinar aos alunos das colónias um “processo de orientação firmado na Estrela Polar”. Para quem viva apoquentado com a doutrinação no ensino, e lembre com saudades os “bons velhos tempos” em que se decoravam os caminhos-de-ferro e os rios de sítios inalcançáveis para a maioria dos portugueses, talvez seja informação chocante.

O representante português na Organização Internacional do Trabalho (OIT), instado a apresentar leis não-discriminatórias, retorquiu que teria de apresentar toda a legislação em vigor, porquanto toda ela era “não-discriminatória”. Em Portugal (e no império), “não existe discriminação racial”, concluía, na década de 1960

Os esforços de doutrinação em torno da tese dirigiam-se a um público mais vasto. Sensivelmente na mesma altura, o MU informava os Serviços de Censura de que, nos textos que se relacionassem com o Ultramar, “o primeiro ponto a ter presente” era “a unidade intrínseca de todos os territórios”. O grau de pormenor chegava a ser caricato. Não se devia escrever “a Metrópole, estreitamente ligada às suas províncias do Ultramar”, antes “as províncias europeias e as extraeuropeias de Portugal, estreitamente ligadas”. Em vez de “partiu de Luanda para Portugal”, assinalava-se, devia escrever-se “partir de Luanda para Lisboa”.

O zelo com a unidade nacional estendia-se a terrenos menos politicamente óbvios, como o da filatelia. Em meados da década de 1950, no MNE, informava-se que um delegado da Costa Rica na ONU invertera o sentido de voto em relação a Portugal, pois, como colecionador de selos, descobrira “toda uma série de selos portugueses, relativamente modernos”, com a legenda “império colonial português”, uma negação pungente da tese da unidade. Como desabafava um funcionário, era “fantástico” que isto pudesse “influenciar um voto”, mas “era essa a realidade”. Ainda se tentara oferecer uma coleção de selos atualizada, “mas foi em vão”.

Entre a lista de hobbies perigosos contava-se também a numismática. Um funcionário do MU, em 1960, indignava-se por ainda se verificar a circulação, em Angola, de moedas e notas com a palavra “colónia” inscrita. Tratava-se, para esse funcionário, de uma das manifestações “mais perigosas” da “sobrevivência do anterior condicionalismo”, podendo “constituir grave perigo para a nossa posição”, pois que os “inimigos” poderiam apresentá-las num organismo internacional, “um excelente golpe de teatro”.

A maneira portuguesa de lidar com a discriminação racial

Como reagiam as autoridades quando confrontadas com fenómenos de discriminação racial? Que medidas tomavam? Como os “liam” e “registavam”? Ignoravam-nos? Reconheciam-nos? Relativizavam a sua relevância?

A partir de um conjunto muito limitado de fontes, a resposta terá de ser um repto para aprofundar a questão, de modo mais sistemático e diversificado. Mas é possível identificar traços comuns. O mais importante talvez seja o de como o imperativo político não impediu a identificação de situações tidas por danosas ou mesmo iníquas, mas quase sempre gerou respostas instrumentais. Por exemplo, um funcionário do MU registava que “a situação atual dos indígenas é péssima, origem de acerbas críticas no plano internacional e fonte de descontentamento enorme”. O regime do indigenato dera “origem a uma discriminação real e indiscutível”. Sobre o “trabalho indígena”, reconhecia-se a ampla intervenção das autoridades. Reconhecia-se que “os castigos corporais são habituais”. Apesar destes factos, o autor não se coibia de invocar “a demagogia anticolonialista”, a ser contrariada. Era fundamental ser mais eficaz na demonstração da “nossa obra, do nosso passado e dos nossos objetivos e as razões que justificam a conservação da unidade nacional”, o que incluía intensificar a divulgação de informação sobre o volume do investimento em matéria social e de saúde ou do número de profissionais liberais “não-brancos” no império.

O funcionário que dera conta do problema das notas enviava outros sinais de alarme. Os estrangeiros em visita a Angola tinham de preencher um impresso em que indicavam a sua “raça”, o que não era abonatório para quem fazia gala da ausência de discriminação. Uma mulher branca admitira que não se confessaria a um padre negro, o que revelava “muito perigoso estado de espírito”. Dado que, segundo este funcionário, “todos os setores” eram “unânimes em reconhecer a ausência de práticas discriminatórias” no império, seria imperioso corrigir estes desvios. Mas eram isso, apenas, “um desvio momentâneo” da “tradicional maneira portuguesa de estar no mundo”. Confrontado com o facto de haver estabelecimentos públicos com indicações distintas para “indígenas” e “europeus”, este funcionário advogava que se substituísse as tabuletas: em vez de “europeu” e “indígena”, “indígena” e “não-indígena”. Os limites muito estreitos a partir dos quais se pensava a discriminação racial eram evidentes, e as consequências faziam-se sentir. Embora muitos casos atestem a existência de uma organização social em que a diferença étnico-racial era central, estes funcionários eram capazes de os conciliar com o dogma da ausência de racismo. Por outro lado, as operações semânticas enquanto recurso sistemático do Estado Novo, da Constituição aos sanitários públicos, relembram-nos novamente a importância e o poder relativos das palavras (e seria talvez rebuscado assacar a responsabilidade ao wokismo).

Como as colónias eram “recriadas” na Exposição do Mundo Português, em Lisboa

Apesar destes vários registos críticos, foram raras as vezes em que estes conduziram a um questionamento consequente do fundamento duplo do estribilho político-diplomático. Só que os problemas não desapareciam. A discussão sobre como deveria a informação ser recolhida, posta em circulação e discutida era amiúde subordinada a critérios de oportunidade política. É, por isso, possível identificar formas diametralmente opostas de lidar com informação de teor étnico-racial. Segundo um funcionário do MU, a divulgação de informação recolhida pelos serviços de estatística deveria obedecer a uma seleção dos “elementos que valorizassem a nossa posição ultramarina” e que permitissem “rebater as principais acusações que nos dirigem”. Por exemplo, durante a década de 1950, as autoridades requereram a vários estabelecimentos de ensino o número de alunos negros inscritos, para efeitos de divulgação. Aqueles retorquiram que os boletins de inscrição não continham informação “somática”, pelo que, no MU, se indicava que haveria vantagem em obter os números “por via administrativa”. “Via administrativa” era o termo comummente usado pela administração para ações que não eram registadas legalmente. Em sentido contrário, anos mais tarde, os serviços estatísticos de Angola mereceram a censura do MU por divulgarem publicamente informação “somática”. O facto de, na Huíla, haver, no ensino oficial, “591 ‘brancos’, 49 ‘mestiços’ e sete ‘pretos’” e, no ensino particular, em Moçâmedes, “64 ‘brancos’, um “mestiço” e um “preto”” ajuda a explicar a preocupação não tanto com a distinção mas mais com a desigualdade. A forma instrumental como se lidou com a informação que distinguia de acordo com o critério étnico-racial não pode seguramente ser transposta para as realidades atuais do funcionamento do Estado, mas sugere que a existência de critérios de identificação racial não é, por si só, sinónimo de discriminação racial, nem a ausência desses critérios se traduz na ausência de discriminação. Importa, por exemplo, se a identificação é voluntária ou coerciva, da responsabilidade do indivíduo ou do Estado. As “garantias de que se reveste o tratamento dessa informação”, evitando “vias administrativas”, são outro critério fundamental nesta discussão.

Como seria de esperar, a subordinação da informação a um critério eminentemente político – sempre com a premissa de que as questões problemáticas seriam pontuais e não sistémicas, e passíveis de serem exploradas pela “demagogia anticolonialista” – estendia-se ao aparelho repressivo. Nas referidas instruções para a censura, sublinhava-se que era “importante evitar quanto possa marcar ou mesmo insinuar qualquer distinção de raças”, na medida em que “um dos pontos fundamentais” do “processo de formação do homem português” era a “miscigenação”. Não convinha usar “designações a que se empresta geralmente sentido depreciativo, como ‘negro’ por ‘preto’”. E era fundamental “ter cuidado” com as matérias que habitualmente eram alvo “das deturpações (…) e má-fé” dos detratores da “nossa presença fora do continente europeu”. Deveria ainda evitar-se “citações minuciosas de casos particulares especialmente desagradáveis (…) que podiam ser malevolamente generalizados pelos que estão interessados em atacar a presença e a obra portuguesa”, sobretudo em certos “meios internacionais”. Aqui, incluíam-se a “deficiente expansão” do ensino no Ultramar, “ínfima” percentagem de “assimilação” de indígenas” e trabalho forçado, entre outros aspetos repetida e abertamente enunciados por críticos do império e pelas autoridades na surdina dos corredores e na reserva da troca de correspondência interna. Um último exemplo é revelador destas dinâmicas. Em 1960, o conselho legislativo de Moçambique publicou uma portaria fixando as coimas a aplicar a estabelecimentos que barrassem a entrada de alguém por razões ilegais (não sendo explícito, era tácito que o critério era racial). No MU, ainda que se reconhecesse os “bons propósitos” da medida, julgava-se que a “matéria tratada oferece singulares motivos para uma prudente e discreta atuação que talvez se não compadeça com a publicidade que sempre envolve as medidas legislativas” (outra vez, a “via administrativa”). Não se devia dar demasiado eco à medida. Afinal, a existência de normas que punissem práticas de discriminação racial constituía prova de “uma discriminação que não nos cansamos de repetir que não existe”. Era preferível “atuar de forma mais discreta”.

O fim da discriminação?

Com o início da guerra em Angola, em 1961, o Estado Novo viu-se confrontado com renovadas pressões para, pelo menos, rever as suas políticas coloniais, respondendo a desafios de monta, tanto nas colónias como nos fóruns internacionais. A 6 de setembro de 1961, data do seu aniversário, Adriano Moreira assinou o decreto que revogava o estatuto dos indígenas. Foi apenas um passo numa série de alterações legais que procurou reforçar a dupla tese portuguesa. Aumentou o número de deputados eleitos para a Assembleia Nacional pelas colónias, e a livre circulação de pessoas em território nacional tornou-se política oficial – em teoria, pelo menos. O Código do Trabalho dos Indígenas foi repelido e, com ele, o “dever moral de trabalhar”.

Teoricamente, todos os antigos indígenas seriam agora cidadãos. Não haveria qualquer menção racial na legislação. A realidade, contudo, foi um pouco mais confusa, como seria de esperar. O número de indígenas que passou a poder usufruir de direitos políticos manteve-se muito limitado. Como se informava no MU, nos cadernos eleitorais de 1962 não se registava “acentuada diferença em relação ao número de eleitores”. A situação evoluiu muito timidamente nos anos seguintes, dado comprovado pelo facto de Angola e Moçambique, combinadas, elegerem um número muito inferior de deputados à Assembleia Nacional do que a metrópole, apesar de o peso demográfico conjunto ser bastante superior. Revogando qualquer distinção racial explícita e universalizando, em teoria, a condição de cidadão, o Estado garantiu que os antigos “indígenas” continuassem afastados do recenseamento. Isto sucedia porque o imposto indígena, um imposto de capitação, não qualificava para efeitos de recenseamento. Tal só sucedia com outro tipo de impostos, como prediais ou de capitais, que a maioria dos antigos “indígenas” não pagava. O novo Código do Trabalho Rural, aprovado em 1962, só se aplicava nas colónias e, embora não fizesse qualquer menção à raça, nunca deixou de ser pensado para a grande massa de trabalhadores africanos, isto é, os antigos “indígenas”. Ontem, como hoje, o desenho de políticas públicas pode obedecer ao desejo de tratar de forma diferente, e discriminatória, grupos étnico-raciais distintos sem que seja necessário mencionar explicitamente a palavra “raça” ou qualquer uma das suas declinações.

A abolição do indigenato remete-nos para discussões presentes sobre os problemas e as vantagens de haver dados sobre a composição étnico-racial da população de um Estado, como forma de medir a discriminação racial. Na verdade, a administração continuou a recolher informação e a produzir estatística agregada segundo critérios raciais, mas essa informação deixou de ser disponibilizada publicamente. Aliás, seguindo tendências anteriores, como as tratadas neste texto, em 1965, por exemplo, ainda se podia ler uma repreensão do MU aos autores de um estudo demográfico publicado em Angola, por ordenarem a população por “grau de claridade epidérmica”. Como se referia no relatório supracitado, dos anos 50, sobre as estatísticas do ensino em Angola, estes dados constituíam uma “conveniência interna [realce no texto] da própria administração”. De facto, a abolição do indigenato tornou mais difícil demonstrar a desigualdade e a discriminação em que o Império Português assentava, e as autoridades estavam cientes disso. Os censos recolhidos em 1960 continham a informação desagregada sobre o total da população indígena e não-indígena, mas quando o censo foi publicado, no ano seguinte, entendeu-se que não se deveria usar “unidades estatísticas abolidas”. Tal poderia, e iria certamente, suscitar “críticas tanto internas como externas”. Mas as autoridades conheciam esses números: anos depois da revogação do estatuto, um funcionário diplomático português assinalava que havia “manifesto inconveniente” em rebater a acusação, feita numa organização internacional, de que apenas 3% dos moçambicanos eram cidadãos. À data da recolha desses dados, em 1960, o valor “pecava por excesso”.

A(s) pergunta(s) para dez milhões de portugueses

Para que nos serve estudar e, sobretudo, lembrar estes episódios? Antes de tudo, para demonstrar como os próprios conceitos de racismo e discriminação racial nunca foram estáveis, e nunca viveram isolados de um contexto histórico, político e institucional particular, incluindo num plano internacional. Como vimos, a produção de informação sobre a discriminação racial foi precária, instrumentalizada ou imprecisa. Não poderia ser de outra forma. Isto leva-nos a perguntar: saber se há um milhão de portugueses racistas (ou mais, ou menos) é a questão que realmente importa? Há várias razões para admitir que não, de todo.

Se esta história está muito longe de explicar, linear e absolutamente, as dinâmicas de discriminação e exclusão étnico-racial que marcam a sociedade portuguesa de hoje, e as suas reverberações políticas (afinal, já passaram quase 50 anos desde o fim do império), não é rebuscado afirmar que o modo de pensar e agir sobre a diferença humana muito provavelmente foi influenciado por práticas, idiomas e lógicas políticas, institucionais e administrativas que marcaram os anos finais do Estado Novo. Em detrimento do recurso a grandes abstrações, ao olhar para formas concretas a partir das quais o aparato do Estado pensou a discriminação racial e procurou inculcar determinadas visões sobre “raça”, racismo e sobre o próprio País, estamos mais perto de compreender esse passado e os seus legados.

O Estado Novo defendia que o indigenato era um regime de “proteção especial” e não de exclusão. A estes argumentos respondiam os críticos com a irredutibilidade da expressão “raça negra”, que fazia parte da definição de “indígena”: alguns negros podiam ser cidadãos, mas nenhum branco poderia ser “indígena”

Essa história interessa, também, porque desponta frequentemente nos debates sobre racismo no Portugal contemporâneo. Invocações de um suposto excecionalismo atravessaram, durante décadas, o espectro político-partidário, ainda que de forma desigual. Mas algo parece estar a mudar. Não se trata apenas dos cada vez mais numerosos comentários nas redes sociais que questionam a nacionalidade de atletas portugueses, simplesmente por serem “não-brancos”. Acompanhando, nas redes sociais, os debates sobre este tema há cerca de uma década, é notório o recente crescimento do número de vozes que, nos quadrantes mais conservadores da cena política, afirmam que o Estado Novo e Salazar nunca acreditaram genuinamente na ideia de igualdade racial. Sustentam precisamente que a revogação do indigenato não foi mais do que uma artimanha “para inglês ver”. A diferença, acreditam – e acreditam que Salazar também nela cria –, não resultaria de um suposto “atraso civilizacional”, mas da essência radical e inexorável da biologia. A estas vozes respondem comummente outras, num espectro político próximo, que alegam que o indigenato foi só uma lamentável exceção, um erro de percurso prontamente corrigido na longa história da gesta ecuménica portuguesa.

Além dos tugúrios da internet, no jornal oficial do Chega, Maria Metello refere-se aos imigrantes como “seres humanos nojentos que mais parecem insetos”, a serem expulsos pelos “portugueses de bem”. Metello não reserva o mesmo tipo de apreciação para todos os migrantes ao longo da História. Aos países que nasceram dos escombros do império refere-se de forma sintomática: “Países que teimaram numa independência, desastrosa? Contra os Portugueses de bem!! Que lá levantaram verdadeiros impérios? (…) E de onde foram expulsos, de uma forma abusiva e criminosa, tantos portugueses?” A ironia da contradição, que só pode ser sanada por um racismo óbvio, é de assinalar. Contudo, é um sinal do que se está a tornar permissível no discurso político e mediático. Entre uns e outros, vai fazendo caminho uma aguadilha ideológica que se resume a dizer, com indignação, que “Portugal não é racista”, num jeito que, pela ingenuidade ou falta dela, soa a eco de algumas palavras deste texto. Mas, se o passado é um país distante, o futuro orbita noutra galáxia. Cuidemo-lo.

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Parceria TIN/Público

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