Nos últimos anos têm-se assistido a um crescimento acentuado de filmes, séries e podcasts dedicados a “True Crime” ou “crimes reais”. A procura, cada vez mais generalizada, por conteúdos que abordam casos reais sobre assassinatos, raptos ou assassinos em série levou ao seu crescimento multiplataforma – com criação de séries, documentários e podcasts dedicados ao género. A prova do seu sucesso está nos números apresentados pelos conteúdos – como, por exemplo, o recente sucesso de Ryan Murphy “Dahmer – Monster: A História de Jeffrey Dahmer”, documentários como Catching Killers ou o sucesso de MindHunter – que permanecem no topdos mais vistos durante semanas. Mas de onde surge a curiosidade por este tipo de conteúdo? Qual é a razão para estarmos tão interessados em conhecer detalhes de casos absolutamente horríveis?
Ao longo das últimas décadas têm sido conduzidas várias pesquisas que apresentam diferentes teorias e explicações para o sucesso de “True Crime”. No entanto, estas investigações levaram também a uma conclusão: São as mulheres que parecem consumir mais este tipo de conteúdos. Por um lado, o mundo do crime ou um caso “aberto” durante décadas ou um mistério por resolver despertam nas pessoas a vontade de descobrir o oculto. O facto de muitos casos, abordados recentemente pelos media, levarem a mais perguntas do que respostas resultam na necessidade de saber o que vem a seguir e de seguir a narrativa da “história” contada, quer se trate de saber quem é o criminoso, se o veredito foi correto ou como a polícia lidou com o caso. “Como seres humanos, queremos compreender o lado mais obscuro da nossa natureza. As histórias de crimes reais permitem-nos explorar isso de uma forma segura, a uma distância segura”, explicou Meg Arrolll, psicóloga, em entrevista ao The Telegraph em 2019.
Esta parece ser uma teoria apoiada pela psicologia. David Green, professor de Direito da Universidade de Direito, no Reino Unido, acredita que o interesse pela vida dos outros nos torna fascinados por este tipo de conteúdo. “A popularidade deste género pode dever-se ao nosso interesse humano natural que nos torna curiosos sobre o obscuro e o diferente, mas é fascinante ver que também pode dever-se ao facto de querermos aprender a proteger-nos do mal”, contou Green ao The Tab. Da mesma forma, o mesmo instinto que nos leva a não conseguir desviar o olhar de um acidente de viação, leva-nos a ter um fascínio mórbidos sobre os detalhes destes casos que têm impacto nas vidas dos outros.
Já em 2017, um estudo publicado na revista científica National Library Of Medicine analisou a curiosidade humana em relação a crimes violentos. Para a investigação, foram analisadas as respostas de dezenas de estudantes universitários ao serem sujeitos a diferentes tipos de imagens. Após a observação das mesmas por um curto período de tempo – de apenas alguns segundos – foi pedido aos participantes que escolhessem uma das imagens para analisar em profundidade. Segundo os resultados, na maioria das vezes, houve uma preferência sobre as imagens de cariz negativo. “Os participantes não evitaram consistentemente imagens que retratam morte, violência ou danos, mas optaram por explorar algumas delas. As pessoas podem explorar estímulos que retratam a morte, a violência ou os danos, porque isso lhes dá uma ajuda útil para lidar com futuras situações negativas”, explicou Suzanne Oosterwijk, investigadora de psicologia social na Universidade de Amesterdão.
Segundo algumas teorias, o fascínio por estes casos não é novo, remontando à própria evolução humana. Uma teoria apoiada por Kate Winkler Dawson, co-autora de um dos podcasts de “True Crime” de maior sucesso, Buried Bones, que realiza com Paul Holes, um ex-investigador da polícia. “Estudo os anos 1700, 1800 e início dos anos 1900, e nessa altura havia execuções públicas. As pessoas vinham e usavam cestos de piquenique e convidavam os seus filhos. Por isso, somos provavelmente, de certa forma, um pouco menos obcecados do que éramos. As pessoas vinham a julgamentos lotados e ainda mandavam bilhetes de amor para assassinos em série, mesmo no século XIX”, explicou Dawson.
Porque são as mulheres as mais atraídas por este género?
Recentemente, um estudo realizado pelo centro Pew Research, confirmou que as mulheres são quem mais consome este tipo de conteúdo. Segundo os dados apurados, nos EUA, 44% das mulheres são consumidoras de “True Crime”, um contraste face aos 23% de homens que apreciam o conteúdo. No mesmo estudo, os resultados concluíram que o crime foi o tema mais comum entre os podcasts com maior classificação no Spotify e Apple, em 2020 – representando 24% dos podcasts disponíveis em ambas plataformas. Os podcasts sobre crimes reais são frequentemente investigações sobre homicídios, escândalos e outros acontecimentos criminais.
Esta é também uma teoria investigada por Coltan Scrivner, investigador do Recreational Fear Lab, que acredita que o motivo para seremos tão atraídos por “True Crime” está na aprendizagem que adquirimos com o tipo de conteúdo. “Os crimes reais podem ter uma componente de aprendizagem ou, pelo menos, uma componente de aprendizagem percetível. Sentimo-nos mais preparados neste tipo de situações. Assim, se esta situação perigosa ocorrer, sentimo-nos um pouco mais preparados e sabemos o que devemos ou não fazer”, explicou. Uma afirmação que vai de encontro aos dados recolhidos por um estudo de inquérito – conduzido pela OnePoll – feito a mais de 2 mil pessoas e que concluiu que 76% das pessoas consome True Crime por sentir que os ajuda a evitar situações semelhantes. O inquérito revelou também que 7 em 10 inquiridos confiava menos noutras pessoas, devido à quantidade de conteúdo criminal que consumiram.
Uma teoria avançada por um estudo realizado em 2010 pela universidade de Illinois Wesleyan aposta no facto de as mulheres estarem mais interessadas neste género pela possibilidade de precisarem, um dia, de se defender. Na maior parte das vezes, as histórias de crimes reais – seja sob a forma de livros, podcasts, filmes ou programas – revelam pormenores sobre os processos de pensamento dos criminosos. O estudo, conduzido por Amanda Vicary – especialista de psicologia forense – demonstrou que embora as mulheres receiem ser vítimas de um crime, estão interessadas no género porque as ajuda a compreender como um crime é perpetrado. Perguntas que se levantam como “O que despoletou o crime? Como é que a vítima foi atacada? Que técnicas utilizou a vítima para escapar?” são questões sobre as quais os conteúdos de crime real se debruçam.
De acordo com a investigação, o consumo de “True Crime” pode mesmo alterar hábitos de comportamento das mulheres, sobretudo, que vivem sozinhas, uma vez que, enquanto consomem estes conteúdos, absorvem subconscientemente informações sobre como lidar com situações. Por exemplo, verificar se as portas estão devidamente trancadas, ter precauções na rua – algum tipo de arma de defesa – e evitar situações que possam colocá-las em perigo. “A minha investigação mostra que as mulheres gostam de crimes reais porque podem aprender alguma coisa com eles. Podem aprender a não serem mortas, essencialmente. Gostam de conteúdos verdadeiros em que aprendem os sinais a ter em conta num assassino ou aprendem o que fazer se forem raptadas. Ao saberem como é que as pessoas acabam por ser vítimas, podem evitar que isso aconteça a elas próprias”, esclareceu Vicary.
Por outro lado, assistir a conteúdos de “True Crime” podem também aumentar o sentido de justiça. Sendo as mulheres as vítimas mais comuns de uma série de crimes, assistir a conteúdos onde o criminoso é levado perante a justiça, desperta também um sentido de justiça. “Enquanto mulheres que vivem numa sociedade profundamente patriarcal, sentirmo-nos inseguras e assustadas é quase um estado de espírito constante e, talvez, o nosso desejo profundo de nos sentirmos seguras e protegidas pelos sistemas jurídicos seja sublimado quando assistimos a histórias em que a justiça prevalece. O sentimento de justiça que sentimos no final de um filme ou série sobre crimes reais reflete o nosso desejo de fazer parte de sistemas sociais e jurídicos que trabalham incansavelmente para a segurança e proteção das mulheres”, referiu Rhea Gandhi, uma psicoterapeuta em Mumbai, à Vogue India.