“Onde é que eu tinha a cabeça para não me lembrar disto?!” É com alguma indignação e pasmo que nos damos conta de ter deixado passar um compromisso inadiável ou de não ter ido buscar o carro à oficina antes da hora de fecho. À luz da Psicologia e, nomeadamente, das investigações em Cognição, entre 50% e 70% das nossas falhas diárias de memória envolvem tarefas planeadas, ou seja, esquecemo-nos dos nossos objetivos.
O recurso aos auxiliares de memória é uma estratégia psicológica que visa minimizar estas “partidas” do cérebro: o clássico “lembra-me de…” dirigido a alguém próximo, os rabiscos feitos na mão, no braço ou em guardanapos, as agendas, os post-its. Com a evolução da tecnologia, temos meios mais sofisticados para depositar uma parte, ou a totalidade, das metas que se acumulam na nossa nuvem mental: bloco de notas, tarefas programadas no calendário do computador, do tablet ou do smartphone (há ainda o smartwatch) e a ajuda de assistentes virtuais.
Inspirados no mecanismo que permite remover ícones de um ecrã, mantendo os dados no dispositivo e libertando, assim, espaço de armazenamento (offload), os psicólogos Sam Gilbert, do Instituto de Neurociência Cognitiva da Universidade de Londres, no Reino Unido, e Evan Risko, da Universidade de Waterloo, no Canadá, batizaram a estratégia que adotamos para nos lembrarmos de cumprir tarefas futuras de “cognitive offload”, ou transferência cognitiva.
Continuamos a usá-la por percebermos que fazer planos de cabeça implica esforço mental e nem sempre resulta. Fazer “outsourcing” daquilo que é para realizar mais tarde parece uma decisão inteligente, só que de tanto recorrer à tecnologia para esse fim, estaremos a criar para nós mesmos uma “memória de peixe”?
Melhor desempenho
É preciso estudos longitudinais para ter a resposta. Para já, os resultados das investigações confirmam: o armazenamento digital de informação funciona bem para recordar coisas das quais nos esquecemos com frequência. Por outro lado, permite libertar a memória de curto prazo do cérebro, que é finita, como demonstraram os estudos do psicólogo americano George Miller, nos anos 1950 (só conseguimos lembrar-nos de sete itens, em média). Essa vantagem foi validada por técnicas de neuroimagem: durante a transferência (offloading) cognitiva, a atividade no córtex pré-frontal medial (processo de codificar) diminui enquanto o córtex pré-frontal lateral (seguir o rasto das tarefas a fazer) se mantém ativo.
E o que pode acontecer se ficarmos privados das notas e dos dispositivos nossos aliados? Numa investigação laboratorial que envolveu dois grupos de participantes, todos foram instruídos a memorizar afirmações triviais. O grupo a quem foi dito que os dados escritos no computador seriam apagados depois teve melhor desempenho nos testes de memória comparativamente com aquele que foi informado de que os dados seriam guardados (que não acautelou uma cópia de segurança interna).

Sam Gilbert e colaboradores aperceberam-se de que é mais frequente transferirmos intenções e planos a que atribuímos mais importância e, paradoxalmente, se falhar o acesso às fontes ou se elas se perderem, restam os dados não armazenados, de menor valor. Otimiza-se a memória, mas não há almoços grátis.
Hoje é raro sabermos de cor o número de telefone de pessoas que nos são próximas e acedemos aos recursos digitais quando é preciso. “Talvez tenhamos de aprender novas competências para compensar aquelas que, provavelmente, perdemos”, avançou Evan Risko no site da Universidade de Waterloo. Ao jornal Washington Post, Gilbert fez saber que estes receios não são novos. Inquirido pela VISÃO, o cientista sublinhou: “O fator-chave para conseguir um bom compromisso entre as capacidades de memória interna e as fontes externas é compreender os pontos fortes e fracos das nossas capacidades de memória, pois só assim podemos saber quando precisamos de tecnologia para nos ajudar.”
Crenças em teste
Pedro Albuquerque é docente do Departamento de Psicologia Básica da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, onde lidera o Grupo de Investigação em Memória Humana do Centro de Investigação em Psicologia, que está a iniciar um estudo na área da transferência cognitiva. “Antigamente pensava-se que a memória estava no coração, daí a expressão ‘aprender de cor’, que envolvia esforço cognitivo”, observa.
A memória envolve atenção (codificar), retenção (guardar) e recuperação (aceder), sendo expectável que as distrações, a falta de pistas associadas ao que se quer recordar e o excesso de estímulos na hora de recorrer ao material pretendido levem ao fracasso das intenções e resoluções. “Se usar um post-it na porta para, ao abri-la, saber que tem de entregar um livro na biblioteca, isso é a pista para se lembrar de o fazer, pois admite esquecer-se.” Contudo, “não testou se ia realmente esquecer-se, por isso essa metamemória pode ser uma ilusão”. E tem consequências: “Fiz a experiência com os meus alunos; se acreditam que têm memória fraca, a probabilidade de dependerem de auxiliares externos é maior.”
“Lembrem-me!”
O investigador adianta que as meta-análises de estudos sugerem que o esquecimento é um conceito relativo: “Num cérebro funcional não há limite para a capacidade de processamento, podem é faltar pistas para recuperar a informação armazenada.” Em síntese, “usar lembretes é inevitável porque melhoram o desempenho cognitivo”.
Entre 50% e 70% das nossas falhas diárias de memória envolvem tarefas planeadas, ou seja, esquecemo–nos dos nossos objetivos
Não por acaso, os executivos de Silicon Valley optam por manter os filhos em idade escolar longe dos dispositivos digitais, para que eles possam desenvolver competências cognitivas e consolidar processos executivos. E a transferência regular de informações (ou de intenções) às quais se acede mais tarde através de fontes externas reduz a memória cerebral para esse fim. Como contornar o “efeito Google” e manter a balança equilibrada (memória interna e externa)?
O segredo consiste na distribuição de ovos por vários cestos, ou seja, contar com os auxiliares de memória e treinar as capacidades mnésicas. “A transferência intencional é adaptativa e eficaz, pois ajuda-nos a alcançar metas”, afirma a psicóloga Sara Félix, investigadora do William James Center for Research, em Aveiro. E compensa falhas de memória associadas ao envelhecimento. “Apontar ou usar lembretes faz com que não se tenha de lidar com as consequências de um esquecimento.”
Pense-se na toma de medicamentos – a mais ou a menos – ou na hora de desligar o fogão. Mais vale jogar pelo seguro.
Cumprir intenções com o menor esforço
A estratégia de usar fontes externas que nos lembram o que e quando fazer mais tarde funciona, mas requer alguma perícia para evitar surpresas
Vantagens
Somos mais eficazes a cumprir objetivos se usarmos lembretes do que confiando só na memória interna e libertamos espaço no disco mental para outras tarefas (trabalho criativo, por exemplo).
Desvantagens
Risco de perder as informações pretendidas caso falhe o acesso às fontes (post-its, tecnologia, pessoa a quem pedimos para nos lembrar) e/ou de ficar dependente dessas fontes sem testar se a crença “não voulembrar-me” é verdadeira.
Lembretes Inteligentes
Específicos: dizem exatamente o que fazer e quando.
Com pouca antecedência: alertas mais próximos da data têm mais probabilidade de resultar (menor risco de esquecimento).
Atualizáveis: automatizar
o processo com notificações para verificar e, se necessário, atualizar lembretes ativos.
“Treino” Combinado
Monitorizar: avaliar os sucessos e falhas de memória é o barómetro para decidir a frequência do uso de auxiliares.
Programar: dispositivo ou assistente virtual para alertar sobre tarefas futuras, associadas a outras que só estão arquivadas na cabeça.
Registo parcial: “delegar” só alguns itens (na lista de compras, por exemplo) e armazenar “de cor” outros, que dão pistas para o que falta (“pão” = “manteiga”).
Âncoras: objeto de uso frequente que serve de sinal para realizar tarefa (por exemplo, “mochila” = “explicações”).