Para o empresário João Fernandes era um caso de vida ou de morte. Tinha adotado o Tomé através de uma rede de ativistas dos direitos dos animais, que haviam encontrado o galgo, abandonado e esquelético, na zona de Famalicão. É raro acontecer nestas situações, mas o galgueiro que se descartara do greyhound – a designação inglesa e original da raça – esqueceu-se de lhe tirar o microchip subcutâneo, colocado no pescoço. Foi assim fácil identificá-lo, para o contactar e pedir-lhe os documentos do cão, de maneira a que João Fernandes formalizasse a adoção. Aconteceu, porém, que o galgueiro exigiu o Tomé de volta. Seguiram-se meses de guerra. “Ele queria o cão para o matar”, acredita João Fernandes. Às tantas, o empresário viu-se obrigado a fazer uma ameaça: ou o galgueiro lhe enviava os documentos do Tomé ou João Fernandes apresentava uma queixa-crime por abandono. Resultou. Ao fim de cerca de cinco meses de resistência do galgueiro, o BI do greyhound lá apareceu na caixa de correio do adotante.
Na moradia de João Fernandes, com um espaçoso jardim, no Dafundo (Oeiras), é um muito sociável Tomé quem nos recebe, a pedir festas. Surpreende, por isso, o relato que o empresário nos faz, já dentro de casa, com o galgo deitado sobre um tapete, a descansar das correrias com o seu companheiro de brincadeiras, o rafeiro Rufus. “Quando me chegou, o Tomé gania a dormir, chorava como uma criança com pesadelos”, conta. “E isto durou seis meses. Depois, só queria estar no seu canto, fugia das pessoas. Demorou à vontade dez meses para se tornar no cão dócil e obediente que é hoje.” A estratégia para uma boa adoção de um galgo abandonado, ensina João Fernandes, 49 anos, “passa pelo mimo e por deixá-lo adaptar-se com calma ao espaço e aos novos donos”. Tomé foi importado da Irlanda pelo galgueiro de Famalicão e apresenta a pele raspada ao cimo das patas traseiras. É sinal, explica um veterinário, de que foi submetido a treinos numa nora horizontal e mecanizada, segmentada por chapas metálicas eletrificadas, e que rodava a velocidades excessivas. Pelo menos para ele, Tomé, que não acompanhava o ritmo e, por isso, apanhava os choques elétricos que lhe deixaram aquelas marcas.
O treino da nora é um segredo de polichinelo. Vários galgueiros assumem-no à VISÃO, e até especificam que a tendência atual é a de a segmentar com redes inflexíveis, colocando nos cães coleiras eletrificadas, com “pequenos” choques (e emissão de um som) infligidos por controlo remoto nos greyhounds que fiquem para trás. É que há o risco de esses retardatários partirem uma pata, caso fique presa num buraco da rede. Aí, são para “deitar fora”…
Um dia nas corridas
O cavaleiro tauromáquico João Moura, 56 anos, tido como o mais proeminente criador de galgos do País, era um homem feliz naquele domingo, 8 de maio, numa corrida realizada na sua terra, Monforte (distrito de Portalegre). Nesse dia, aposta-se, não estavam na sua mente os problemas que tem com o Fisco, e que se tornaram públicos.
João Moura alimenta uma paixão tal por estes cães que, em março de 2010, quando venceu o LXXII Campeonato Nacional de Espanha de Galgos, com a cadela Alheira, disse que essa vitória era “tão importante como, no campo tauromáquico, sair em ombros pela porta grande de Madrid”. Em Monforte, naquele domingo, a competição também lhe foi compensadora. Na final mais esperada, a dos galgos importados, conseguiu o 2.º e 3.º lugares, com os cães Bingo e Give me Five, respetivamente. Mais uma mão-cheia de pontos para chegar à finalíssima nacional, a disputar em setembro numa pista do Norte do País ainda por definir. O assunto é tão sério que nem sequer observámos João Moura e os sobrinhos Moura Caetano (também cavaleiro tauromáquico) e João Augusto Moura (cavaleiro e novilheiro), ambos igualmente com galgos em competição, trocarem palavra. “A rivalidade entre eles é muito grande”, esclareceram-nos. À VISÃO, apesar das várias tentativas de contacto, João Moura também não quis falar.
O clã Moura foi surpreendido, em Monforte, pelo galgo Catunda, importado da Irlanda, que pode muito bem ter atingido os 72 km/hora naqueles 250 metros de pista relvada em linha reta, com uma ligeira subida junto à meta. Quando um elemento da organização baixou uma bandeira vermelha e levantou outra verde, dando sinal para que a prova se iniciasse, com uma motosserra adaptada a puxar, do lado oposto da pista, o fio da lebre mecânica no encalço da qual os cães correm, o galgo saiu disparado como uma bala da sua box, cuja grade se abre mediante um mecanismo basculante, deixando sem hipóteses os seus três concorrentes. O Catunda, que ainda não fez dois anos, é de Horácio Vargues, cinquentão como João Moura, e empresário de Albufeira, onde detém vários bares e discotecas. Também dirigente da Associação dos Galgueiros do Sul, Horácio Vargues preocupa-se em contrapor às acusações dos ativistas dos direitos dos animais decisões concretas tomadas ou a tomar pela federação nacional dos donos de galgos. Na temporada de corridas de 2017 (de março a setembro), por exemplo, diz que todos os galgos que chegarem às finais das três componentes de cada prova (nacionais, cachorros – até aos 20 meses – e importados) serão submetidos a testes antidoping. É uma resposta às suspeitas de dopagem dos galgos com esteroides anabolizantes, cocaína, viagra, cafeína…
Na caça com galgos à lebre, acrescenta Horácio Vargues, é possível que a federação imponha o açaime nos cães, que pontuam consoante a prestação, mas não matam a presa. “Há cada vez menos lebres, temos de as proteger.”
Os milhões que os galgos dão
O presidente da Câmara de Monforte, Gonçalo Lagem, eleito pela CDU, toma as dores dos galgueiros. “Cada raça tem diferentes funcionalidades. Os galgos foram feitos para correr e os ataques de que os galgueiros são alvo estão descontextualizados. Ninguém gosta mais de animais do que quem os usa. Tem de imperar o bom senso.” Gonçalo Lagem considera que as corridas se inserem “no ambiente social e cultural” da região e “enchem os restaurantes e os estabelecimentos de hotelaria”.
A mesma argumentação é utilizada pelo seu colega presidente da Câmara alentejana de Cuba, João Português, igualmente eleito pela CDU, que em setembro passado inaugurou uma pista municipal para corridas de greyhounds, perseguindo o objetivo de tornar a vila na “capital portuguesa do galgo”. Mas é no Norte que está a maioria dos cerca de 600 galgueiros que se estima haver em Portugal, realizando-se aí duas a três corridas em cada fim de semana.
Um só galgo importado da Irlanda facilmente custa 5 mil euros. Com genes de campeão, pode chegar aos 30 mil. De Espanha começam a vir também muitos exemplares. E há quem os tenha às dezenas. Somando despesas com alimentação (€70 por uma saca de comida de 20 kg, por exemplo), tratadores, manutenção de equipamentos e deslocações para os locais das competições, conclui-se existirem galgueiros que gastam por mês largos milhares de euros com a sua paixão. Em Monforte, porém, o único dinheiro que se viu circular foram os €10 para a inscrição de filiados na Associação dos Galgueiros do Sul, e os €12,50 para os não sócios.
No Reino Unido e na Irlanda, a indústria dos criadores de greyhounds vale €1,9 mil milhões por ano. Em 2014, por exemplo, as casas de apostas, em ambos os países, lucraram cerca de €300 milhões com as corridas de galgos. No entanto, os escândalos sucedem-se. Em julho de 2006, o Sunday Times noticiava que, ao longo de 15 anos, mais de dez mil greyhounds saudáveis, mas não desejados pelos galgueiros, tinham sido mortos a tiro e enterrados num jardim em Seaham, em Inglaterra. Uma investigação da BBC com câmara oculta, em 2014, para o programa Panorama, mostrou a relação entre a dopagem de galgos e as apostas. Já no início deste ano, em Espanha, o campeonato dos galgos esteve à beira de ser cancelado, depois de testes de ADN terem provado que dois dos cães em competição eram frutos de um roubo de esperma de um greyhound recordista.
No país vizinho, porém, o grande problema são os 150 mil galgos que todos os anos são abandonados ou mortos, diz Harry Eckman, dirigente da Change For Animals Foundation, com sede em Inglaterra mas que atua no mundo inteiro. Outra questão levantada por este ativista é a necessidade de fiscalizar a exportação/importação de greyhounds da Irlanda e do Reino Unido para Espanha e Portugal. “Há a suspeita de que a maioria destes cães são ilegalmente transportados, sem a documentação exigida.” Há dias, 24 greyhounds foram barrados no aeroporto de Manchester, quando se preparava o seu embarque num avião que os transportaria para Macau, precisamente por terem a documentação incorreta. Esta semana foi também lançada uma campanha global por ativistas irlandeses apelando à Lufthansa para recusar o transporte destes animais para Macau, onde todos os meses morrerão 30 cães nas pistas locais. Reuniu já 65 mil assinaturas.
Crime ou entretenimento?
No Reino Unido e na Irlanda, os galgos correm até aos quatro/cinco anos de vida. Em Portugal, com pouco mais de dois anos já se encontram de tal forma desgastados que são aposentados. Eis um dos principais factos a que os ativistas dos direitos dos animais se agarram para zurzir os galgueiros nacionais. “A partir dos três/quatro meses começam a ser treinados todos os dias, e aos cinco meses passam para as noras circulares”, alega um desses ativistas. “Alguns ficam pelo caminho devido a fraturas ou fissuras ósseas, nas patas ou no fémur, ou a lesões musculares, e por norma são abatidos ou abandonados.”
Já o doping, assevera a mesma fonte, provoca a curto prazo “doenças renais, hepáticas, cardíacas, dermatológicas, odontológicas e, em 98% dos casos, patologias do foro psicológico”. E, atenção, a adoção destes animais é tarefa complexa. “Precisam de adotantes com disponibilidade de tempo, espaço e condições financeiras para poderem acompanhar o longo processo de adaptação e reabilitação que, com frequência, é superior a um ano”, avisa quem sabe.
Com a galga Pipa, encontrada abandonada no Alentejo, não houve exceção à regra. Chegou à família Pereira, dona de uma vasta propriedade em Camarate, em Lisboa, que a adotou, com uma fratura na pata traseira esquerda, lesão que não foi possível curar. Judite Pereira, 49 anos, e a filha, Susana, 27, sabem hoje com exatidão, só de observar o comportamento da Pipa, quando lhe devem dar o analgésico que lhe tirará as dores na pata afetada. Ou o mimo de que a galga precisa, para finalmente ficar descontraída perante estranhos. De resto, tem em seu redor 32 cães, das mais variadas raças, e 15 gatos com quem brincar! Mas um pormenor, contado por Judite Pereira, ficar-nos-á gravado: em contraponto aos galgos de corrida, açaimados para não se atacarem e morderem mutuamente, a Pipa encontrou o seu melhor amigo, naquela imensa quinta, no gato Luz. “Adoram-se”, relata Judite. “Até dormem juntos, aconchegados um ao outro, no sofá que lhes serve de cama.”
Para quem se pergunta porque não atuam as autoridades, o insuspeito deputado do PAN (Pessoas-Animais-Natureza), André Silva, dá a resposta: “A nossa legislação é absolutamente omissa quanto a esta matéria.” Ou melhor, a lei que criminaliza os maus-tratos a animais exceciona as corridas de galgos, colocando-as no conceito de entretenimento. “Mais uma vez, um problema de fundo – a utilização de animais para divertimento dos humanos, sendo que os violentos métodos de treino representam graves maus-tratos”, diz o parlamentar. Segundo André Silva, “este é um dos exemplos que demonstra a relevância de se estender a lei a outros animais que não apenas os de companhia, conforme temos vindo a alertar”. O que o PAN quer, reforça, “é um quadro legislativo que tenha capacidade de regular e atuar sobre estas situações, muitas vezes envoltas num secretismo perversor”.
Pelo que lhe ouvimos, Maria Ramalho, 53 anos, assinaria por baixo. Num parque de Cascais, trouxe ao encontro da equipa da VISÃO não só as duas galgas que resgatou ao abandono e reeducou, as dóceis Xira e Nôa, como igualmente uma reprodução de uma das obras mais conhecidas do pintor Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), Os Galgos, de 1911. Um gesto à altura da arqueóloga que é, na Direção-Geral do Património Cultural. Maria Ramalho lembra-se bem daquele dia em que viu no seu e-mail uma foto de uma galga em estado deplorável, abandonada no canil de Vila Franca de Xira e cuja adoção era pedida. Mas a arqueóloga acabou por fechar a caixa do correio eletrónico sem pensar mais no assunto. Uma hora depois reabriu-o, num impulso que ainda hoje não sabe explicar, fixou-se na imagem daquela cadela e correu para Vila Franca.
No regresso a Cascais, trazia consigo uma galga “triste, esquelética e com um cheiro nauseabundo”. Em sua casa deu-lhe banho, comida e tem a certeza de que a cadela “deitava lágrimas” enquanto se alimentava. “Será que os cães choram?”, interrogou-se, espantada. Maria Ramalho queria dar a galga para adoção e colocou o anúncio num site. A cadela passou a primeira noite numa arrecadação, sossegada numa cama que a arqueóloga lhe fez. Na manhã seguinte, já tinha desistido da ideia da adoção. Aquela galga era para si e, claro, batizou-a como Xira. “Era uma cadela completamente apavorada e só ao fim de um ano se tornou num cão normal.”
Há dois anos, a vida de Maria Ramalho voltou a cruzar-se com outra galga. Vagueava abandonada por Montemor-o-Novo, Alentejo. Grávida, acabou por abortar no canil local. Em novo impulso, a arqueóloga foi buscá-la, adotou-a e chamou-lhe Nôa. Hoje, Xira e Nôa vivem numa “guarda partilhada” entre Maria Ramalho e o seu ex-marido. Tranquilamente.
Mas o lado negro desta história persiste. A polémica vem de longe, e a obsessão também. Há mais de 25 anos, um criador de galgos dava nas vistas por, em fúria, disparar contra os cães que perdiam as corridas, matando-os em plena pista. Fê-lo vezes sem conta, com a conivência de muitos e a crítica à boca pequena de poucos.
Berço corrompido
No Reino Unido, berço das corridas de galgos no séc. XVIII, o cenário não podia ser mais disfuncional. “Por ano, são usados cerca de 20 mil cães nas corrida s, quatro mil dos quais desaparecem no fim de cada época”, diz Harry Eckman, dirigente da ONG inglesa Change For Animals Foundation. Existe um regulador da indústria, mas esse organismo “recusa-se a publicitar quaisquer elementos”, relata o ativista. E as disposições legais para o bem-estar dos greyhounds apenas se aplicam aos canódromos, deixando de fora os locais onde os galgos são reproduzidos, criados e treinados. Há, depois, a controvérsia das doações dos agentes de apostas em benefício do conforto dos cães. “É uma verba pequena”, diz Harry Eckman. “E como a indústria é corrupta, esse dinheiro, se for doado, não vai para onde é preciso.”
A crueldade dos treinos
Na Irlanda, os criadores de galgos resolveram adaptar os tapetes rolantes dos ginásios ao treino dos seus cães. O assunto tem suscitado polémica no país mas os criadores não parecem desistir: os greyhounds são amarrados à máquina e forçados a correr no tapete a altas velocidades. Apesar de o risco de contraírem lesões ser grande, a moda parece ter pegado e já chegou a alguns galgueiros portugueses, que persistem em usar também a nora circulante, que dá choques elétricos aos animais que correm mais devagar. Por vezes, os animais não aguentam e partem as patas. Aí, como dizem os galgueiros, são para ‘deitar fora’