A quarta dimensão é um dos temas prediletos de escritores de ficção científica e continua a ser um enigma fascinante para os génios da matemática e da física. Einstein, por exemplo, concebia o tempo como um rio que fluía, depressa ou devagar, ao deparar-se com corpos maciços, como estrelas e galáxias, ou seja, não era fixo e universal, mas uma dimensão relativa, condicionada pela gravidade e a velocidade e, portanto, “deformável”, apesar da ideia de constância e linearidade que os relógios e calendários nos fazem crer.
Vivemos em 3D – guiamo-nos no espaço através do comprimento, da largura e da profundidade – mas pouco sabemos sobre o relógio interno que existe nas nossas cabeças. Na Antiguidade Clássica, os gregos já falavam da dupla natureza do tempo: Chronos seria a dimensão linear e Kairós a vertente subjetiva, medida em função dos intervalos entre experiências marcantes, contribuindo para insólitas distorções percetivas. E não faltam exemplos disso.
À medida que envelhecemos, o tempo de reação lentifica-se e parece que o tempo “voa”; se sentirmos emoções dolorosas ou incómodas, temos a impressão que nunca mais passa; aquilo que registamos na memória ao longo da nossa ‘timeline’ cria um efeito-surpresa que nos leva a fazer comentários do tipo “ainda ontem era um bebé e já está um homem”; e há ainda a sensação de que o tempo deixa de existir, também é possível, em certos estados mentais – o êxtase induzido de várias formas (num concerto, durante a atividade sexual, sob efeito de drogas ou através da meditação – dando a sensação de que o tempo ou se transcende.
Na primeira década deste século, o psicólogo social americano Philip Zimbardo afirmou que “cada um de nós tem uma perspetiva enviesada do tempo, com implicações óbvias na condução das nossas vidas”. Como funciona, então, o nosso “relógio interno”, além daquilo que já se sabe acerca dos ritmos circadianos, que influenciam os ciclos de sono e de vigília e o nosso metabolismo?
Inovação metodológica
Para apurar os mecanismos neurais envolvidos nas decisões que tomamos numa escala que pode ir de segundos a minutos – quando estamos à espera num semáforo ou numa partida de ténis, por exemplo – uma equipa de cinco investigadores do Laboratório de Aprendizagem da Champalimaud Research colocou a hipótese do “relógio populacional”: padrões consistentes de atividade cerebral capazes de evoluir, durante a tomada de decisão numa escala de tempo, para agrupamentos neuronais numa zona do cérebro, o corpo estriado (região profunda envolvida no controlo motor e que se liga ao córtex).
Partindo de estudos prévios com o canto das aves, que era mais rápido ou lento consoante a manipulação da temperatura de regiões do cérebro, a equipa coordenada por Joe Paton desenvolveu um dispositivo termoelétrico capaz de aquecer ou arrefecer o corpo estriado das cobaias, registando simultaneamente a sua atividade neural.
Os resultados do estudo, publicado a 13 de julho, na revista Nature Neuroscience, permitiram demonstrar que há uma relação causal entre a atividade neural e o processamento do tempo implicada nos comportamentos, como explicam os cientistas, num vídeo a que pode assistir aqui.
![relógio interno do tempo](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2023/07/230713_Illustration-Monteiro-et-al-@Nature-Neuroscience.jpeg)
Num futuro próximo, esta descoberta pioneira pode fazer a diferença na compreensão e tratamento da demência, de problemas ao nível do controlo motor e, até, de doenças mentais como a Perturbação Obsessivo-compulsiva, uma vez que o corpo estriado é diretamente afetado nestas patologias.
Como o cérebro percebe o tempo
A equipa criou um jogo com três portas e uma recompensa e treinou as cobaias a inserirem o focinho na porta do meio sempre que ouviam dois sons, com um intervalo de um segundo e meio.
Durante dois meses, os ratos aprenderam a tomar decisões em função de intervalos temporais (entre 600 milissegundos e 2,4 segundos): se fosse abaixo de um segundo e meio, a recompensa estava na porta da esquerda; acima desse intervalo, estaria na da direita.
Uma vez adquirida a capacidade de discriminar o tempo, monitorizada a gestão do movimento dos animais e, dezenas de gravações de padrões neurais depois, foi introduzida a variável da temperatura. Joe
O autor sénior do estudo explica: “Sempre que o animal tem de tomar uma decisão, o estado de atividade do seu cérebro segue um caminho, como sucede com os ponteiros do relógio, de forma contínua, ao longo de 12 horas.” Se o percurso for mais rápido, o rato tende a classificar o intervalo de tempo como longo e vice-versa.
![](https://images.trustinnews.pt/uploads/sites/5/2023/07/230713_Joe-Paton-1440x1080.jpg)
O investigador prossegue: “A velocidade das células do estriado foi manipulada com variações de temperatura, deixando o padrão da atividade cerebral mais ou menos intacto.”
Os resultados foram reveladores: “O arrefecimento do corpo estriado fez com que o intervalo de tempo parecesse mais curto às cobaias, enquanto o aquecimento acelerou a população neural levando a comportamentos que indicavam que o tempo era mais longo do que na realidade.”
Isto quer dizer que os ponteiros do “relógio interno” têm uma variabilidade que se manifesta em velocidades distintas: “Quanto mais lento o padrão de atividade do estriado, mais rápida a perceção de tempo e vice-versa (a partir das respostas que os ratos exibiam no modelo experimental).”
Novos rumos
O caráter inovador do trabalho justifica o uso da expressão “uma pedrada no charco”, metáfora usada pelo neurocientista para a hipótese do “relógio populacional” que existe na cabeça: “O ritmo dos padrões neurais assemelha-se aos círculos concêntricos que se formam e evoluem num lago para o qual se atirou uma pedra”.
Os resultados preliminares da equipa da Champalimaud mostraram outro dado curioso: “A manipulação da temperatura no cerebelo (situado na base do cérebro e responsável pelas funções motoras) teve impacto no comportamento, que se manifestou em movimentos mais lentos.”
Estes dados alinham-se com aquilo que está descrito na literatura científica sobre as doenças do movimento, como a de Parkinson, “em que o vigor dos doentes é afetado e eles apresentam dificuldade em iniciar respostas motoras”.
A confirmação da existência de ‘ondas’ de atividade neural que marcam o tempo, ou a perceção dele, e em que medida orientam as nossas ações, é um avanço da Ciência básica.
Por agora, ainda é cedo para dizer seja o que for sobre as aplicações futuras na medicina ou, até, nos domínios da aprendizagem e da inteligência artificial, mas esse potencial existe. Caso para dizer: o tempo dirá.