“Aqui estou eu, agradecido e aterrorizado, a escrever diretamente para ti.”
É logo no prefácio da sua autobiografia que Elliot Page nos conquista a todos. Sem exceção. “Agora é diferente. Novo”, tinha acabado de lembrar o ator canadiano, 36 anos feitos em fevereiro. “Finalmente, posso sentar-me comigo mesmo, neste corpo, presente – a escrever durante horas, com o meu cão Mo a apanhar sol, as minhas costas mais direitas, a minha mente mais tranquila.”
Lemos isso e é como se estivéssemos a vê-lo ao computador, com o pequeno cão branco ao seu lado, enquanto, num “contentamento anteriormente inimaginável”, conta a sua história. Uma história que quis partilhar na esperança de poder ajudar quem está a passar por algo semelhante aquilo que ele passou até conseguir, finalmente, assumir-se como homem trans.
“Em muitos aspetos, este livro é a história da minha descoberta. O ato de escrever, ler e partilhar a multiplicidade das nossas experiências é um passo importante para fazer frente àqueles que nos desejam silenciar”, sublinha.
Escreva-se já que a sua descoberta como transgénero aconteceu no meio de dúvidas, avanços e recuos. “Ser queer é intrinsecamente não linear, fases que nos vergam e outras que nos dão alento. Dois passos à frente, um passo para atrás”, como muito bem lembra. E é uma descoberta pontuada por muitos momentos maus e também por alguns bons.
Entre os momentos bons está a nomeação para um Oscar, pelo seu papel de adolescente grávida, no filme June (2007), aos 20 anos, e, mais recentemente, a fama estratosférica alcançada com a sua participação na série de culto Umbrella Academy (2019-2022). E estão, acima de tudo, as decisões do foro pessoal que foi tomando: quando disse publicamente gostar de mulheres (2014); a sua longa e emotiva publicação no Instagram a assumir-se como transgénero (2020); e a primeira vez em que usou uns calções de banho de homem (2021).
Os momentos maus, esses foram muitos e só agora os lemos, preto no branco, no seu livro Pageboy, que lançou no dia 6 nos EUA e chegou esta segunda-feira, 12, às livrarias portuguesas (ed. Vogais, 288 págs., €16,97).
Um dos mais chocantes aconteceu-lhe em abril de 2014, dois meses depois de dizer ao mundo que era homossexual. Numa festa de anos, em Los Angeles, um ator famoso que Page descreve como apenas seu “conhecido”, disse-lhe: “Tu não és gay. Isso não existe. Só tens medo dos homens. Vou foder-te para te fazer perceber que não és gay.”
Uns dias mais tarde, os dois encontraram-se por acaso, num ginásio, e o referido ator, que era e é muito famoso, tentou dar o dito por não dito. “Não tenho problemas com gays”, jurou a Page, que não acreditou.
“Já me aconteceram versões disto muitas vezes ao longo da minha vida. Muitas pessoas queer e trans lidam com isto incessantemente. Estes momentos de que muitas vezes não falamos ou que é suposto ignorarmos, quando na verdade são horrorosos”, contou agora à revista People, antes de justificar por que razão incluiu este episódio na sua autobiografia.
“Trata-se de realçar a realidade, a merda com que lidamos e o que nos dizem o tempo todo, particularmente em ambientes que são predominantemente cis e heterossexuais [a pessoa cisgénero identifica-se com o sexo biológico que lhe foi atribuído ao nascer]. Nós navegamos nesse mundo em que tanto temos momentos extremos e evidentes, como essas piadas mais subtis. [Em Hollywood], estas pessoas são muito poderosas. São elas que escolhem as histórias que estão a ser contadas e que criam conteúdos para os outros verem, em todo o mundo.”
O abuso é contado com detalhe no capítulo Idiota famoso na festa, sem que fiquemos a saber que é esse ator. “Não partilho o nome de propósito”, disse Elliot Page à mesma revista, “mas ele vai ouvir falar disto e saber que é ele.”
Hollywood foi sempre tão homofóbico que Page, quando ainda era Ellen e já assumidamente homossexual, namorou dois anos em segredo com uma atriz que conhecera quando estavam a fazer um filme juntas. A mulher, a quem no livro chama de “Ryan”, exigia que nem sequer olhassem uma para a outra em público.
“Os pais dela não sabiam. Eu era a amiga que vinha passar o Natal…. Nunca nos tocámos fora de casa e quase não saíamos para jantar fora”, recorda.
No final, as constantes “mentiras e ansiedade” tornaram a relação “insustentável”, conta. “Eu admirava-a e ela inspirava-me de muitas maneiras, mas sentir-me escondido era demasiado doloroso.”
Acabou por ser Ryan a terminar tudo. “As pessoas não ‘pensavam que ela era queer’, mas assumiam definitivamente que eu era, e acho que ela não conseguia lidar com a vergonha. E eu aprendi a não voltar a fazer isso.”
Durante esses dois anos em que namorou às escondidas com uma mulher, foi como se o tempo tivesse voltado atrás. Como se não tivesse acontecido aquele Dia dos Namorados de 2014 em que decidiu parar de se esconder.
Foi a tremer, a conferência Time to Thrive, organizada pela Human Rights Campaign por conselheiros que trabalham com adolescentes que se identificam como gays, lésbicas, transgéneros, bissexuais ou queer, que Page disse: “Estou aqui hoje porque sou homossexual e porque talvez possa fazer a diferença.”
E, perante a jovem plateia LGBTI+ do Hotel e Casino Bally’s, em Las Vegas, acrescentou: “Sinto uma obrigação pessoal e uma responsabilidade social. Também o faço de forma egoísta, porque estou farta de me esconder e estou farta de mentir por omissão.”
Durante um discurso que durou um pouco mais de 8 minutos e se tornou imediatamente viral, falou dos “padrões esmagadores” que Hollywood impunha às pessoas e da sua própria luta para viver autenticamente, apesar dos estigmas sociais e da homofobia.
Na altura, tinha 27 anos e sentiu um enorme alívio, mas continuava a faltar-lhe alguma coisa. Desde criança que sofria disforia de género que o deixava extremamente desconfortável no seu próprio corpo, contou agora no talk show Fresh Air, do canal da rádio NPR.
A pressão para se vestir e agir de determinada maneira era tão intensa que equacionou seriamente abandonar o cinema, depois do êxito de Juno. “[A disforia] é como um ruído constante, um sentimento constante de que algo está errado, como uma sensação e uma voz que nos diz para fugirmos”, lembrou.
Page continuaria a trabalhar em Hollywood, aceitando papéis femininos em filmes como X-Men (2006 e 2014) e A Origem (2010), mas a sua disforia nunca desapareceu.
Era, porém, um não-assunto, apenas aflorado num perfil publicado no The New York Times, em outubro de 2015. “Desde que Page se lembra, era uma maria-rapaz”, lemos, então. “Adorava hóquei de rua, jogos da Sega Genesis, snowboard e luta livre com o seu meio-irmão. Usava o cabelo tão curto que as pessoas chamavam-lhe ‘Allen’.”
Os pais, ela professora e ele designer gráfico, divorciaram-se quando era bebé. Se Dennis se mostrou sempre pouco carinhoso, Martha esqueceu-se rapidamente da pergunta que a criança lhe fez aos 6 anos: “Posso ser um rapaz?” No McDonald’s, encolhia os ombros quando os empregados da caixa lhe davam um Happy Meal com brinquedo de rapariga, e não fez qualquer comentário quando um dia lhe mostrou um trabalho de liceu sobre o absurdo de um sistema binário de género.
Muito cedo o mundo do cinema, da fantasia, seria o seu escape. Tinha 10 anos quando foi descoberta por um ator que andava à procura de jovens talentos nas escolas primárias de Halifax, na Nova Escócia, Canadá. O seu desempenho como protagonista na peça Charlie e a Fábrica de Chocolates fora tão bom que dali a pouco entrava em Pit Pony (1997), um filme para a televisão local sobre a vida nas minas do início do século XX na região (um cheirinho aqui), e que mais tarde se transformou numa série com Page no papel principal.
A série valeu-lhe vários prémios. Seguiram-se outras produções locais que levaram a filmes mais importantes, como Mouth to Mouth (2005), em que Page, a interpretar a jovem anarquista Sherry, rapou parte do cabelo e viajou até Inglaterra, Alemanha e Portugal. E nunca mais parou.
Foi só quando o mundo ficou em casa, de quarentena por causa da pandemia de Covid-19, que Page teve espaço para se sentar consigo mesmo e refletir.
Em dezembro de 2020, assumiu-se publicamente como homem transgénero, numa publicação comovente no Instagram, onde tem mais de 6 milhões de seguidores.
“Olá amigos, quero partilhar convosco que sou trans, os meus pronomes são ele/eles e o meu nome é Elliot. Adoro ser trans. E adoro ser queer. E quanto mais me abraço a mim próprio e abraço totalmente quem sou, mais sonho, mais o meu coração cresce e mais prospero.”
No início de 2021, divorciou-se da bailarina Emma Portner, com quem casara em janeiro de 2018 (estavam separados desde o verão de 2020). E submeteu-se a uma mastectomia bilateral subcutânea, também conhecida como reconstrução torácica.
2021 marcaria o início do seu ativismo pela causa trans, nos Estados Unidos. Logo nos primeiros três meses desse ano, tinham sido apresentados mais de cem projetos de lei com o objetivo de limitar os cuidados de saúde e outros direitos das pessoas trans, com ênfase nas crianças trans. E promulgados quase uma dezena de projetos de lei explicitamente anti-LGBTQ.
Ninguém estranhou, por isso, quando, no final de março, o ator se tornou no primeiro homem trans a aparecer na capa da revista TIME.
A seu pedido, foi fotografado por Wynne Neilly, um artista trans canadiano, sediado em Toronto, que se dedica a fotografar pessoas queer e transgénero. A imagem escolhida traz um surpreendido Mo como bónus.
Lá dentro, Elliot Page abordou a luta pela igualdade trans e o custo político das campanhas anti-trans. E contou que tinha crescido a sentir-se “como um rapaz” desde muito cedo, mas a ter de “parecer de uma certa maneira” por causa da sua carreira como ator que começara aos 10 anos.
Um mês depois, aceitava o convite para ser entrevistado por Oprah Winfrey. Era “uma oportunidade de usar uma plataforma de grande alcance” para falar sobre algumas das experiências e os recursos a que tivera acesso, explicou, nessa altura, à revista Vanity Fair. “Quer seja terapia ou cirurgia, [foram eles que me] permitiram estar vivo, viver a minha vida.”
À Vanity Fair, o ator disse, então, estar a sentir “alegria e entusiasmo” por poder ser o seu verdadeiro eu. Desde que se revelara como trans, “a diferença mais significativa” entre a sua vida anterior e a sua nova vida era sentir-se “realmente capaz de simplesmente existir”, sublinhou.
“Imagino que compreendam o que estou a dizer – apenas existir por mim próprio, ser capaz de me sentar comigo próprio. Não ter uma distração constante, todas estas coisas que não são conscientes ou que nem sequer são demasiado evidentes. Pela primeira vez, nem sei há quanto tempo, [estou] a ser capaz de me sentar sozinho, estar por minha conta, ser produtivo e criativo. É muito simplista dizer isto desta forma, mas sinto-me confortável. Sinto uma diferença significativa na minha capacidade de simplesmente existir – e não apenas dia após dia, mas momento após momento.”
O entrevistador foi o jornalista americano Thomas Page McBee, que também escreve para a televisão. Boxeur amador, foi o primeiro homem trans a competir no Madison Square Garden, em Nova Iorque, um combate que deu origem ao seu livro Amateur, publicado em 2018. Quatro anos antes, estreara-se com Man Alive: A True Story of Violence, Forgiveness and Becoming a Man (uma história verdadeira de violência, perdão e tornar-se um homem).
Os dois já se conheciam. McBee tinha escrito um dos episódios da minissérie da Netflix Histórias de São Francisco (2019), em que o ator, então ainda respondendo pelo nome de Ellen Page, interpreta Shawna Hawkins, a filha adotiva de Mary Ann Singleton (Laura Linney) e Brian Hawkins (Paul Gross).
“Não sei como te sentes em relação à tua própria infância, mas também me assumi mais tarde, aos 30 anos. E sei que fui um miúdo trans. Não nasci no corpo errado – nasci num corpo trans. Era assim que te sentias quando eras criança?”, perguntou-lhe Thomas. E Elliot respondeu-lhe, com jeitinho:
“Todas as pessoas trans são tão diferentes, e a minha história é apenas a minha história. Mas sim, quando era criança, absolutamente, 100%, era um rapaz. Sabia que era um rapaz. Escrevia cartas de amor falsas e assinava-as com ‘Jason’. Cada pequeno aspeto da minha vida, era quem eu era, quem eu sou, e quem eu sabia que era. Não conseguia perceber quando me diziam: ‘Não, não és. Não, não podes ser isso quando cresceres’.”
Quando, a 24 de maio de 2021, o ator publicou no Instagram uma fotografia com os seus primeiros calções de banho de homem, acompanhada das hashtags #transjoy #transisbeautiful, a internet explodiu ao vê-lo tão sorridente. E com uns abdominais tão definidos.
Em junho do ano seguinte, em vésperas de arrancar a terceira temporada de Umbrella Academy, já não era segredo para ninguém que a série ia incorporar a sua transição na vida real. E que seria Thomas Page McBee a ajudar a conceber o enredo em que a personagem interpretada por Elliot Page transita para o sexo masculino.
Em março, a Netflix tinha confirmado que Vanya Hargreeves iria aparecer como Viktor. O que aconteceu, logo no segundo episódio:
“Quem te elegeu, Vanya?”, pergunta Diego (David Casteñada).
“É Viktor”, responde a personagem de Page. E, quando lhe perguntam quem é Viktor, responde: “Sou eu. É quem sempre fui.”
Diego, Klaus (Robert Sheehan) e Cinco (Aidan Gallagher) ficam calados e Viktor pergunta se é um “problema para alguém”, ao que os irmãos respondem que não. Klaus acrescenta que é “fixe”.
“Fico muito feliz por ti, Viktor”, diz-lhe ainda Cinco, “mas da última vez que verifiquei, tu não falas por esta família.”
Mais tarde, no mesmo episódio, Viktor partilha a novidade com Alison (Emmy Raver-Lampman), que se auto-censura por não ter percebido mais cedo.
“Não podias ter sabido porque eu não sabia”, assegura-lhe Viktor, contando-lhe que o tempo passado com Sissy (interpretada por Emmy Raver-Lampman, na segunda temporada da série) o ajudara a ver quem ele realmente era.
É então que Viktor olha para a montra de uma loja e diz: “Sabes, sempre odiei espelhos. Pensava que toda a gente se sentia tão estranha na sua pele. Acho que isso não é verdade, pois não?”
“O que vês agora?”, pergunta-lhe Alison.
“Eu. Apenas eu”, responde Viktor.
Junho de 2022 seria um dos melhores meses na sua vida se o polémico psicólogo canadiano Jordan Peterson não o tivesse manchado com um tweet em que usou o seu dead name para gozar com ele. Seria, aliás, esse tweet a levar Elon Musk a bani-lo do Twitter.
O “cancelamento” de Peterson representou uma vitória para o mundo em geral e para o ator em particular, mas a sensação boa duraria pouco. Quando, escassos cinco meses depois, ele foi autorizado a ter de novo uma conta naquela rede social, o pai de Elliot Page “gostou” do seu primeiro tweet de regresso. Um tweet em que referia o facto de ter sido “cancelado” por causa de Page.
“Não tenho ideia do que meu pai pensa do seu filho neste momento”, escreve o ator na sua autobiografia. “Independentemente de tudo o que aconteceu antes, é doloroso pensar que alguém que foi teu pai possa apoiar aqueles que negam a tua própria existência.”
Apesar de tudo, o ator reconhece o seu privilégio. “A minha vida como pessoa trans e o privilégio que tenho não representam a realidade da maioria das vidas trans”, disse à revista People. “A realidade é que elas estão desproporcionalmente desempregadas e passam por muito mais situações de sem-abrigo. As mulheres trans racializadas estão a ser assassinadas. As pessoas estão a perder o direito aos cuidados de saúde ou não têm acesso a eles.” Vénia.