Vemos uma mulher de costas, de cabelo louro-claro escorrido e casaco de malha sobre um vestido branco, largueirão, e não a reconhecemos. Os seus gestos são calmos, em sintonia com a paisagem. Há uma casa de madeira junto a um imenso espelho de água e árvores bem lá ao fundo. Ouvem-se gritos de aves, talvez sejam gaivotas. Apetece viver ali.
Sempre de costas, a mulher entra em casa, remexe atrás de uns cortinados e encontra uma velha cassete VHS. “Oh, o que temos aqui?”, pergunta, antes de a cassete começar a rodar num pequeno monitor. “Meu Deus, estou com medo, espero que não esteja nua…”
É só então que o realizador nos mostra finalmente a mulher num grande plano, uma mulher nos seus cinquentas, bonita e sorridente, sem qualquer maquilhagem. E, quando Tommy Lee aparece no ecrã a dizer: “Amo a minha Pamela”, reparamos que os seus olhos, de um azul-transparente, também sorriem.
Não é difícil reconhecer o baterista dos Mötley Crüe (que vão atuar em Portugal em junho) congelado no tempo como se ainda estivéssemos nos anos 1990. Lembramo-nos dele assim, tal e qual, muito novo, com o corpo cheio de tatuagens e de cigarro na mão. E, nas imagens seguintes, em que aparece numa gôndola pelos canais de Veneza, também reconhecemos imediatamente ao seu lado Pamela Anderson, a abonecada C.J. Parker da série Marés Vivas, que meio mundo viu nua em inúmeras páginas da revista Playboy e o outro meio viu a ter sexo com o então marido, num vídeo roubado durante umas obras lá em casa.
Ainda só passaram dois minutos e já estamos rendidos ao documentário Pamela Anderson: Uma História de Amor, disponível na Netflix desde 31 de janeiro.
A mulher que nos habituámos a ver de maquilhagem carregada e de grandes mamas em primeiro plano, sempre as grandes mamas a abrirem caminho, é muito engraçada e surpreendente.
Numa folha arrancada a um bloco daquela plataforma de streaming, ela já tinha escrito no Instagram: “A minha vida, mil imperfeições, um milhão de perceções erradas, só posso surpreender-vos. Não uma vítima, mas uma sobrevivente. Viva para contar a verdadeira história.” Mas faltou avisar que tem um enorme sentido de humor e um ainda maior poder de encaixe.
Nos primeiros minutos de documentário, realizado por Ryan White (The Keepers), tanto temos, por isso, fotografias suas acompanhadas por vozes off que falam de uma “deusa sensual”, “bombástica”, “talvez a loira mais famosa do Planeta”, como Tommy Lee a comentar “o teu hálito é que cheira mal” quando ela se queixa dos seus cigarros. E, numa entrevista feita no tempo em que ela passava os dias a ser filmada a correr de fato de banho encarnado na praia de Malibu, ouvimo-la dizer, premonitória: “Quem me conhece dos tabloides não me conhece e vai surpreender-se.”
Já houve quem escrevesse que este documentário, produzido com a colaboração de Brandon e Dylan, os dois filhos que Pamela tem com Tommy Lee, é uma vingança servida com sorrisos. É verdade que as suas quase duas horas dão para boas gargalhadas, mas também dão para engolirmos em seco várias vezes porque a sua vida não foi um passeio no parque e quem assistiu não ajudou. Mas não é uma vingança. Aos 55 anos, a atriz decidiu que estava cansada da ideia-feita – e, sobretudo, errada – que o mundo tem dela.
O mundo era outro, note-se. Não se imagina hoje um entrevistador do calibre de um Jay Leno a dirigir todas as suas piadas para o decote de uma atriz. Ou a entrevistada responder à letra e ninguém dar por isso, nem sequer quando começa a desviar inteligentemente a conversa para a causa dos animais (é ativista da PETA). E, no entanto, era o que acontecia quase sempre.
“Costumava dizer que as minhas mamas tinham uma carreira e eu só as acompanhava. Querem vê-las?”, goza. “Perguntavam-me o tempo todo se eram implantes, e eu explicava que tinha decidido pôr porque todas as miúdas da Mansão Playboy tinham. Era ingénua. Na altura ninguém tinha coragem de o dizer. E a verdade é que não vejo qual é o interesse, acho até impróprio fazerem essas perguntas às mulheres.”
Pelos preconceitos da época, Pamela Anderson não passava de uma loira burra que só aparecia nas notícias quando aumentava ou diminuía o peito. E se os oito minutos de sexo caseiro que meio mundo pôde ver acabaram com a sua carreira, não fizeram qualquer mossa a Tommy. Pelo contrário. Além de se encaixarem numa vida de sexo, drogas e rock&roll típica num músico, revelaram-no dotado fisicamente.
Agora, ficamos a saber que Pamela nunca viu esse vídeo e acha “patético” quem o quiser ver. A cassete estava guardada num cofre juntamente com o biquíni que ela usou quando casou com Tommy, ao fim de quatro dias juntos em Cancún, no México, e foi furtada de uma maneira rocambolesca. O casal ainda interpôs uma ação judicial, mas acabou por desistir porque Pamela estava grávida e receou abortar por causa do stresse.
Os depoimentos foram de uma grande violência para a atriz. Os advogados argumentaram que ela aparecera nua na Playboy, por isso não tinha direito à privacidade, e colocaram-lhe perguntas sobre a sua vida sexual. “Faziam-me sentir como um pedaço de carne, como se não devesse importar-me com o vídeo porque era uma ordinária. Não percebiam que aparecer na revista tinha sido uma escolha minha, que me sentia empoderada por isso. Neste caso, do vídeo, parecia uma violação.”
Estávamos no final de 1997, no início da internet. Pamela e Tommy não podiam sonhar com a repercussão do caso e, sobretudo, com a rapidez com que o vídeo acabou a espalhar-se. Seria o primeiro vídeo viral da história.
“Fui gozada em muitos talk shows, foi super humilhante”, recorda a atriz. “Quando te associam a uma coisa, tornas-te uma caricatura. A partir desse vídeo, foi a deterioração da minha imagem e passaram a dar-me sempre papéis muito sexuais.”
Nada voltaria a ser como dantes para ela e para o casal, aliás. Se Pamela nunca mais confiou em ninguém, Tommy tornou-se ainda mais protetor e ciumento, acompanhando-a em quase todas as suas filmagens. E, quando ela foi mãe novamente, não conseguiu lidar com o facto de deixar de ser a sua prioridade.
Uma noite, ele perdeu a cabeça, foi violento e ela chamou a polícia. Tommy acabou detido preventivamente, sendo condenado a seis meses de prisão efetiva. Divorciaram-se e Pamela voltaria a casar mais quatro vezes, embora agora diga que nunca amou outro homem (nem sequer o surfista profissional Kelly Slater, que entrou em vários episódios de Marés Vivas e com quem namorava quando ela conheceu Tommy).
Nessa época, procurou refúgio junto da mãe. Sempre que a atriz tem problemas, regressa à casa onde cresceu, e onde ainda mora Carol, na pequena vila de Ladysmith, numa ilha da Colúmbia Britânica, no Canadá.
O lugar é idílico, mas traz-lhe recordações agridoces. Quando era criança, foi abusada sexualmente pela babysitter durante três ou quatro anos, conta agora.
“Tentei proteger o meu irmão”, recorda, “e quis matá-la, espetar-lhe uma caneta no coração. Um dia, disse-lhe que queria que ela morresse e nesse dia ela morreu num acidente de carro. Achei que a tinha matado com a minha mente mágica e não pude contar a ninguém. Vivi com isso toda a minha juventude.”
Maria-rapaz e ginasta, Pamela cresceria com vergonha do seu próprio corpo. Além dos abusos sexuais em criança, seria ainda violada aos 12 anos, por um homem de 25, amigo do suposto namorado de uma amiga também adolescente. Uma vez mais, não contaria a ninguém e vivia apavorada com a ideia de que as pessoas adivinhavam o que se passara. “Achava que tinha aquilo tatuado na testa”, conta, “tornei-me, por isso, muito tímida e muito insegura.”
Quando aceitou posar para a Playboy (seria Miss Fevereiro 1990 e Playmate), um convite que surgiu por absoluto acaso, “foi como um despertar”, diz. “Desde a primeira fotografia, senti que estava a atirar-me de uma ponte e a cair.”
A sensação repetiu-se em abril do ano passado, quando a convidaram para interpretar Roxie Hart no musical Chicago. Seria a sua estreia na Broadway, com direito a ovações constantes, e o início do resto da sua carreira, anunciou. “A minha vida não é triste”, diz agora. “Quero aceitar o passado, pus-me em situações loucas e sobrevivi.”
Não exagera, percebe-se ao ver o seu documentário, em parte baseado nos diários que foi sempre escrevendo ao longo da sua vida. E que agora também deram origem à sua autobiografia, Love, Pamela, à venda desde 31 de janeiro.