O músico Dino d’Santiago lançou o desafio de alterar o hino nacional para um tom “que incentive menos às guerras”, que seja “menos bélico” e mais “espiritual”, a apelar “ao amor”. “Não gritemos mais ‘às armas, às armas’, e não marchemos mais ‘contra os canhões'”, sugeriu. Ponto prévio: não seria a primeira vez que Portugal adotava um novo hino, ainda que os dois anteriores sejam do tempo de reis e rainhas, e A Portuguesa se tenha tornado desde cedo um símbolo republicano. E tem razão Dino quando se refere ao “marchar contra os canhões” como uma mensagem belicista, até porque foi escrita com fervor patriótico, em 1890, na sequência do Ultimato do Império Britânico a ameaçar Portugal de guerra, caso não retirasse dos territórios africanos entre as então colónias de Angola e de Moçambique (imposição a que o rei D. Carlos I, recém-empossado, acedeu prontamente). Tal é assim que ainda hoje há quem ateime que, na versão original do hino, constasse a expressão “contra os bretões, marchar” – o que não corresponde à verdade. Vamos à história.
Primeiro, veio a melodia. Composta por Alfredo Keil, um lisboeta com ascendência alemã, nasceu “de um improviso sem pretensões”, durante um jantar de amigos, “entre a sobremesa e um café”, no dia 12 de janeiro de 1890, o dia a seguir ao Ultimato inglês, segundo o relato detalhado publicado na edição de 21 de março desse ano da revista ilustrada O Occidente. “Nas ruas de Lisboa”, lê-se no texto, “ecoavam os brados dos grupos populares dando vivas à pátria”.
Do convívio terá saído logo a ideia de publicitar a nova canção em folhetos de distribuição gratuita, mas antes faltava encontrar a letra certa para a música, que Keil pediu ao poeta Henrique Lopes Mendonça, um antigo oficial da Marinha. “Nas suas estrofes se recordam as nossas glórias passadas, como as de um povo de navegadores audaciosos e de guerreiros vitoriosos, que não deve esquecer o passado para que lhe seja estímulo no presente”, escreveu a revista, publicando a letra completa do poema original, cuja primeira estrofe e o refrão viriam a dar lugar ao hino após a implantação da República, em 1910, e na qual consta a expressão “contra os canhões” – e não contra os bretões.
Nos arquivos da Biblioteca Nacional, de resto, está guardado um exemplar dos folhetos distribuídos em 1890 com a partitura da música, que, assim como outros documentos da época, desfaz todas as dúvidas sobre essa confusão. No seu livro de 2010 sobre Alfredo Keil, o historiador Rui Ramos chega a atribuir-lhe o caráter de “lenda”, sugerindo que ela possa ter resultado de adaptações da música com “letras mais combativas” que se produziram nos anos seguintes à sua criação.
Adotada como marcha simbólica do movimento republicano durante a tentativa falhada de golpe de Estado de 31 de janeiro de 1891, A Portuguesa foi sendo apropriada pelos opositores da monarquia e, duas décadas depois, ecoou pelas ruas de Lisboa quando a República se impôs a 5 de outubro de 1910. No ano seguinte, no dia 19 de junho, a primeira estrofe e o refrão tornaram-se oficialmente o hino nacional, símbolo de Portugal. Até hoje.
Antes, o país tivera outras duas canções oficiais, no tempo dos reis e das rainhas. Entre 1834 e 1910, vigorou o Hino da Carta, escrito pelo rei D. Pedro IV. Dizia assim:
I
Ó Pátria, Ó Rei, Ó Povo,
Ama a tua religião,
Observa e guarda sempre
Divinal Constituição
Refrão
Viva, viva, viva o Rei
Viva a Santa Religião
Viva, Lusos Valorosos,
A feliz Constituição
A feliz Constituição
II
Oh com quanto desafogo
Na comum agitação
Dá vigor às almas todas
Divinal Constituição
III
Venturosos nós seremos
Em perfeita união,
Tendo sempre em vista todos
Divinal Constituição
IV
A verdade não se ofusca,
O Rei não s’engana, não,
Proclamemos, Portugueses,
Divinal Constituição
Já o primeiro hino nacional, da autoria do compositor luso-brasileiro Marcos António Portugal, prevaleceu entre 1809 e 1834, com várias versões em homenagem ao rei D. João VI, desde que ele era ainda príncipe regente e estava exilado com a Corte no Brasil, consequência das invasões francesas de Napoleão Bonaparte. Uma das versões do chamado Hino Patriótico rezava assim:
Eis, oh Rei Excelso
Os votos sagrados
Q’os Lusos honrados
Vêm livres, vêm livres fazer
Vêm livres fazer
Por vós, pela Pátria
O sangue daremos
Por glória só temos
Vencer ou morrer
Vencer ou morrer
Ou morrer
Ou morrer
Aos mares vos destes
A bem dos vassalos;
Julgando livrá-los
Do ímpio poder
Por vós e companhia.
Malgrado o Tirano,
Em breve vireis,
Os Luzos fiéis
Vós mesmos reger.
Por vós e comanhia.
Um Deus vos escuda,
ó Príncipe Caro:
Deus é nosso amparo,
Não há que temer,
Por vós e companhia.