Há toda uma questão semântica em cima da mesa da investigação acerca do comportamento canino. Será amor (love) aquilo que estes animais de estimação sentem pelos donos ou tratadores?
No seio da comunidade científica, o termo não colhe unanimidade e aparece como sendo desadequado à relação em causa, pelo facto de o seu significado ser muito dúbio, até para poetas. Os cientistas preferem, então, falar em apego (attachment). “Esse é um dos aspetos mensuráveis do amor, especialmente pela segurança que um indivíduo ganha com a presença do seu amado”, justifica Clive Wynne, autor do estudo Dog is Love, que sugere uma semelhança enorme com a relação entre pais e filhos e a de cães com pessoas.
Numa experiência recente, foi oferecido a lobos domesticados e a cães a possibilidade de ter comida ou ter os cuidadores por perto. Os primeiros só se preocuparam com as questões do estômago; já os segundos, apesar de terem ido cheirar os alimentos, chegaram-se aos donos para festas e atenção.
“Tudo indica que os cães olham para os seus humanos de uma forma similar ao amor que une uma criança aos pais”, acrescenta o investigador.
Manuel Magalhães Sant’Ana, especialista europeu em bem-estar animal e vice-presidente do conselho profissional e deontológico da Ordem dos Veterinários, não podia estar mais de acordo. “Quando uma pessoa diz que o seu cão é como se fosse um filho, ela não está a falar apenas em sentido figurado; de facto, este preenche uma função afetiva. E isso desperta em nós as mesmas reações químicas do que uma relação filial.”
A oxitocina, uma das moléculas associadas aos momentos de prazer nos mamíferos, também se liberta quando os cães se relacionam socialmente com humanos – quando se miram nos olhos, os níveis desta hormona disparam. Num ensaio, bastou meia hora de olhares amorosos entre os tutores e os animais de estimação para os valores duplicarem.
Com a língua, não!
Segundo os especialistas nesta matéria, os cães são seres sociais por natureza, ou seja: têm a sociabilidade inscrita no ADN por culpa de dois genes, GTF21 e GTF21RD1, que influenciam o comportamento social dos mamíferos. “A maioria dos cães tem dois, três ou quatro destas mutações, mas isso varia de acordo com as raças, podendo ir até seis”, afirma Bridgett vonHoldt, professora de Genética na Universidade de Princeton, nos EUA.
Manuel Magalhães Sant’Ana lembra que os cães são a espécie que nos acompanha há 30 mil anos, porque começaram a ser domesticados nessa altura para nos ajudarem a caçar. “Somos, por isso, da mesma estrutura familiar, fomos adotados por eles. A fronteira da espécie parece ter sido quebrada por estes animais, que comunicam connosco da mesma forma que o fazem com os pares.”
Os cães precisam de estar com pessoas de várias idades para a sua socialização, tal como uma criança para estar confiante. O processo é muito semelhante, defende o especialista.
Não é preciso insistir nas lambidelas para perceber se os cães gostam de nós. Não é um gesto natural para os animais e pode ser bastante nocivo
Para Ilda Rosa, professora de comportamento animal na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, a tal questão semântica pouco importa, já que não tem dúvidas de que as manifestações de contentamento quando o dono chega a casa, por exemplo, são a prova de que eles nos adoram, “gostam de nós”.
Alguns desses gestos, como abanar a cauda, saltar para o colo ou cirandar à nossa volta, são transversais; outros dependem das raças e do porte do animal. Por exemplo, aos maiores deve-se ensinar a não saltar, porque podem magoar alguém. “Estes comportamentos repetem-se, já que são recompensados quando os manifestam.”
No entanto, a veterinária discorda dos “beijinhos”, pois nem se trata de um gesto natural – só os cachorros lambem as mães e depressa são ensinados que esse comportamento não é para ser generalizado. Porém, alguns humanos instigam-no, mesmo quando eles crescem. Ilda Rosa alerta: “A língua do cão está cheia de bactérias patogénicas que podem ser nocivas.”
Animais são animais
Não é preciso insistir nas lambidelas para perceber se os cães gostam de nós. “Têm um repertório facial enorme e conseguimos percebê-los facilmente. Os gatos são muito mais difíceis de entender. Há uma subtileza que deixa adivinhar tensão: quando os bigodes ficam mais abertos e as orelhas em radar, mais lateralizadas”, revela Manuel Sant’Ana.
“O cão nutre amor pela família em que está inserido e partilha esse amor com muitos. Por outro lado, não se peça a um gato para se aninhar no colo de um desconhecido. Também são capazes de desenvolver relações de afeto, mas nunca da ordem de grandeza dos cães.”
Não digam a ninguém que tenha um gato que eles são desprovidos de sentimentos. Senão, de que se trata quando dão aquele salto para o colo, assim que sentem o tutor a chegar a casa, todos os dias, depois do trabalho?
Emily Blackwell, especialista em comportamento animal, oferece toda a espalda científica para desfazer esse mito, sossegando os cuidadores de gatos que, pelo menos de vez em quando, se questionam se o felino gosta mesmo deles (ver caixa).
Amigos, amigos, mas com muito respeito. Ilda Rosa nota que há muita gente a tratar os animais como seres humanos e discorda dessa atitude. “Devem ser respeitados, e o seu comportamento natural também. Não é por isso que vão gostar menos de nós”, garante.
Gostar, mas não tanto
Os gatos também são capazes de expressar afeto
Os gatos domésticos são mais independentes do que os cães, porque os seus ancestrais selvagens não viviam em grupos. No entanto, no processo de domesticação, eles desenvolveram habilidades que lhes permitem relacionarem-se e muitos conseguem mostrar afeto em relação aos tratadores. Emily Blackwell, especialista em comportamento animal da Universidade de Bristol, em Inglaterra, detetou alguns dos principais gestos felinos que denunciam o seu amor por alguns humanos.
- Quando um gato esfrega a cabeça nas pernas de alguém, isso significa que ele identificou essa pessoa como um amigo.
- Se a cauda estiver esticada para cima, também estão assegurados a amizade, a familiaridade, o afeto e a confiança. Mais ainda se o animal rebolar, expondo a barriga.
- Perante um desconhecido, o gato é capaz de olhá-lo sem pestanejar. Caso contrário, o suave abrir e fechar de olhos corresponde, nos humanos, a um sorriso.
- Sempre que um gato se enrola no colo do dono está a demonstrar a profunda confiança que nele deposita.