“Tens amigos, por isso não és autista”. Foi desta forma que, aos cinco anos, Sara Rocha recebeu um diagnóstico incorreto que a afastou da possibilidade de compreender os 24 anos seguintes da sua vida. Desde cedo se sentia num mundo à parte das outras crianças e empenhava-se diariamente para se integrar. “Habituei-me a ouvir que dizia coisas estranhas, então esforçava-me para imitar o comportamento das outras crianças. Queria parecer como elas”, recorda à VISÃO. “Mas chegava ao final do dia completamente exausta. “É quase como se, além das aulas, tivesse de ser atriz dentro da escola”, continua.
Mais do que sentir dificuldade em interagir socialmente, Sara, agora com 32 anos, foi manifestando comportamentos característicos da Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) – dificuldade em estabelecer contacto visual, crises constantes de choro e ansiedade e foco excessivo nos seus interesses – que, aos poucos, alertaram a família. De psicólogo em psicólogo, as evidências não foram suficientes para um diagnóstico certeiro. “Fazia amigos, participava em atividades, portanto, estava envolvida na sociedade. Para as outras pessoas isso significava que eu estava bem. Mas não estava”, diz.
O sentimento de incompreensão que afirma a ter acompanhado toda a vida foi atenuado aos 29 anos, afirma, quando, ao ler o livro Invisible women, de Caroline Perez, encontrou uma descrição pormenorizada sobre a forma como o autismo se evidencia em mulheres. “Foi como começar a ler-me a mim”, revela Sara. Consultou um psiquiatra especializado em PEA e, ao falar sobre os seus interesses e historial, a suspeita confirmou-se mais rápido do que esperava. “Logo na primeira sessão, o psiquiatra disse-me: és claramente autista”.
Hoje, enquanto presidente e cofundadora da Associação Portuguesa Voz do Autismo (APVA), Sara sabe que à sua história se somam as de muitas mulheres que, somente em adultas, descobrem pertencer ao espetro. “As mulheres têm mais facilidade em mascarar comportamentos, mas não significa que não estejam a sentir-se mal e a ser incompreendidas. O que falta perceber clinicamente é que o autismo não é um comportamento, é uma forma de perceção do mundo”, frisa.
“Não há um autismo, há vários tipos de autismo que diferem de pessoa para pessoa”
Há já 80 anos que foi identificado o primeiro caso de PEA e, desde então, muito se tem aprendido acerca das suas especificidades. Considerado “uma perturbação de neurodesenvolvimento” pelo manual de referência para as deficiências do foro psicológico, DSM-5, o autismo pode ter manifestações variadas consoante a pessoa. Contudo, existem particularidades que tendem a ser comuns: “déficits persistentes na comunicação e na interação social” que podem afetar a capacidade para “desenvolver, manter e compreender relacionamentos” e evidência de “padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades”.
Se atualmente se sabe que 1 em cada 100 adultos é diagnosticado com PEA, o mais certo é cada uma destas pessoas tenha comportamentos distintos. “Não há um autismo, há vários tipos de autismo que diferem de pessoa para pessoa.”, esclarece Pedro Rodrigues, psicólogo clínico do PIN-Partners in Neuroscience. Sara, por exemplo, tem dificuldade em lidar com determinados sons (hipersensibilidade sensorial), em decifrar e expressar emoções (alexitimia) e em compreender o funcionamento das interações sociais; por outro lado, há quem tenha uma necessidade extrema de seguir padrões e comportamentos previsíveis e quem não tolere determinados tecidos ou alimentos pela sensação provocada.
Uma vez que estes sinais se podem manifestar de forma mais ou menos discreta, em 2013, foram constituídos três tipos de autismo que, segundo o psicólogo do PIN, estão divididos consoante o maior ou menor grau de apoio que cada pessoa necessita. No nível 1 – até 2013 designado Síndrome de Asperger -, o especialista explica que se encontram as pessoas “com maior capacidade funcional”. Já as pessoas diagnosticadas com os níveis 2 ou 3, além de apresentarem sintomas “mais gravosos” e “visíveis”, necessitam de maior apoio ao longo da vida.
É nos primeiros anos de vida, a partir dos 18 ou 24 meses, idade em que o ser humano inicia o processo de comunicação e socialização, que o autismo pode ser identificado. Caso não aconteça, existe ainda a possibilidade de um diagnóstico feito na idade adulta mas Pedro Rodrigues afirma que se não aconteceu mais cedo, a pessoa pode apresentar “um quadro clínico discreto”, o que dificultará o diagnóstico.
É aqui que está o principal problema de muitas raparigas. Por manifestarem sinais menos evidentes daqueles que são habitualmente associados ao autismo, as mulheres correm o risco de nunca serem diagnosticadas ou, caso sejam, podem esperar largos anos até que isso aconteça.
Um estudo norte-americano realizado em 2020 pelo Centro de Controlo e Prevenção de Doenças demonstrava que há, pelo menos, quatro vezes mais rapazes diagnosticados com autismo do que raparigas. O psicólogo do PIN acredita que, atualmente, a diferença seja menor: “Existem estudos mais recentes que demonstram que a diferença é de 1,8 rapazes para 1 rapariga diagnosticados. Mas, ainda assim, não deixa de ser verdade que os rapazes recebem mais rapidamente o diagnóstico”, afirma.
O autismo e a diferença entre os sexos
Ao longo de largos anos, os especialistas estavam convictos de que o autismo era uma condição que afetava maioritariamente homens, dada a prevalência de casos no sexo masculino. Nos dias de hoje, essa ideia está longe da verdade. “É tudo uma questão da forma como o diagnóstico é feito”, afirma Sara. O psicólogo Pedro Rodrigues, confirma-o. “Não existe um diagnóstico de perturbação do espetro do autismo para o homem e outro para a mulher. Do ponto de vista clínico e científico, isto é errado porque se sabe que há um conjunto de características comportamentais que são diferentes em ambos os sexos”.
A explicação está na ciência. “Se tivermos uma mulher e um homem com o mesmo nível de funcionalidade, o que se verifica é que as mulheres apresentam maior propensão para a aprendizagem do conjunto de competências da esfera social”, esclarece o especialista. “Ou seja, do ponto de vista cognitivo, a mulher consegue aperceber-se das regras e guiões sociais e entende que, para prosseguir a nível social, académico ou profissional, terá de adotar esses comportamentos”.
A teoria está presente nos estudos mais recentes que indicam que o fenótipo de autismo feminino, uma manifestação específica feminina, não se encaixa nas atuais conceções masculinas da PEA. “Os critérios de diagnóstico ainda estão muito virados para o que é evidenciado em homens que habitualmente demonstram sinais mais visíveis”, destaca Pedro Rodrigues. Por isso mesmo, tem sido discutida a hipótese de se criar um subdiagnóstico específico para raparigas que inclua uma análise mais cuidada da capacidade das mulheres em disfarçar comportamentos.
“Aprendi que expressões deve ter a nossa cara em determinadas situações e adoto-as. Se funciona? Não. Vão sempre existir dificuldades a nível social”.
Proveniente do inglês, masking, o processo de “mascarar”, utilizado involuntariamente pelo sexo feminino, é um dos recursos que Sara ainda utiliza para colmatar as falhar que acredita sentir socialmente. “Não é imitar numa forma de tentar enganar, mas sim de querer pertencer”, esclarece. “Aprendi que expressões deve ter a nossa cara em determinadas situações e adoto-as. Se funciona? Não. Vão sempre existir dificuldades a nível social”.
A importância do diagnóstico precoce
“Sempre senti que estava a ir contra uma parede invisível”. O desabafo é de Rita Serra, 45 anos, diagnosticada com autismo apenas há três, mas poderia ser de tantas outras mulheres que só na idade adulta encontram explicação para o seu modo de ser. Rita solicitou o diagnóstico após identificar na filha, também autista, a “forma de pensar diferente” que revia em si. “Estava constantemente a ‘apanhar’. Aquilo que para mim fazia sentido, não fazia para as outras pessoas e isso criava choques constantes, interpretações erradas e uma sensação constante de estar a falhar”, conta.
De um dia para o outro, descobriu o autismo – acerca do qual nada sabia até ao diagnóstico da filha – e recorda “o alívio” que sentiu após compreender o seu “estilo cognitivo”. “O diagnóstico foi uma emancipação. Ganhei mais recursos para não internalizar certas coisas como um falhanço. Ou seja, eu sabia o que se passava e, acima de tudo, sabia que não era culpa minha, nem de ninguém”.
Com Sara, a situação foi diferente. Passou a infância e adolescência em consultórios de psicologia e psicoterapia à procura de respostas e foi, inclusive, diagnosticada com depressão. Quando soube que estava no espetro, teve um esgotamento: “De repente, tive de processar 29 anos da minha vida com uma lente totalmente diferente. Existiam situações e comportamentos que eu finalmente conseguia compreender. Foi uma obsessão tão grande tentar perceber cada capítulo da minha vida que acabei por ter um esgotamento”, conta.
Após o impacto inicial, Sara não tem dúvidas de que receber o diagnóstico foi uma mais-valia para uma das áreas onde sempre sentiu obstáculos. “Durante muitos anos, pensei que a minha interação fosse igual à das outras pessoas. Agora, comecei a compreender como é que eu interagia, como é que as pessoas não autistas interagiam e o que estava a falhar na comunicação. E isso ajudou-me a ter melhores relacionamentos em geral. Consigo perceber e exprimir as minhas dificuldades”, revela.
Segundo o Autism Research Institute, o risco de suicídio em mulheres com PEA é três vezes maior do que em mulheres neurologicamente típicas. O autismo não tem cura, mas um diagnóstico precoce pode ajudar a controlar sintomas e a impedir que as mulheres tenham de recorrer ao processo desgastante de masking para se sentirem integradas.
“[Antes de ser diagnosticada] estava, no máximo, dois anos num posto de trabalho porque não conseguia gerir todas as dificuldades que sentia”
Contudo, retardar o diagnóstico para a vida adulta não tem somente repercussões a nível pessoal e social. Quer Rita como Sara garantem que a vida profissional ganhou novos contornos desde que sabem que estão no espetro. A trabalhar como Data Manager na Escola de Medicina da Universidade de Cambridge, em Inglaterra, desde que foi diagnosticada, Sara tem a possibilidade de trabalhar a partir de casa, livre da sobrecarga de estímulos que o ambiente profissional pode provocar. “Antigamente [antes de ser diagnosticada] estava, no máximo, dois anos num posto de trabalho porque não conseguia gerir todas as dificuldades que sentia. Agora estou há quase três anos no mesmo local e estou perfeitamente satisfeita porque tenho acomodações para fazer o meu trabalho”, revela Sara.
Mesmo quando se desloca até ao local do emprego, as condições em que trabalha são adequadas às suas necessidades. “Tenho fones com cancelamento de ruído e uma secretária num espaço mais isolado para não ter tanto acesso ao movimento das pessoas. Se não houvesse diagnóstico, como seria?”, questiona.
Enquanto investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Rita também aderiu ao teletrabalho para evitar as “distrações” frequentes e sobrecargas sensoriais de que era alvo. “Estou rodeada de natureza, oiço os passarinhos. Tornei-me mais produtiva”, acredita.
Desde que descobriram que pertencem ao espetro, Rita e Sara escolheram o caminho do ativismo para dar voz à invisibilidade que as mulheres autistas afirmam sentir, e, acima de tudo, estão empenhadas em “desmistificar” o espetro do autismo. “É importante falar sobre o autismo, mas mais do que ouvir as pessoas falarem sobre o autismo, é importante ouvir as próprias pessoas autistas”, remata Sara.