Na última segunda-feira, o campeão mundial de xadrez, o norueguês Magnus Carlsen, publicou, na sua conta de Twitter, uma nota oficial que confirmou as suas acusações contra Hans Niemann, o norte-americano de 19 anos também especialista num dos desportos de tabuleiros mais reconhecidos do mundo, denunciando que o jovem fez “mais batota – e mais recentemente — do que admitiu”. Foi a primeira acusação explícita de Carlsen, líder do ranking natural de xadrez desde julho de 2011, em relação a Niemann.
“Durante o nosso jogo em Sinquefield Cup, tive a impressão de que [Niemann] não estava tenso e nem sequer estava totalmente concentrado no jogo, nas jogadas difíceis, enquanto me superava a jogar as peças pretas de uma maneira que, creio eu, apenas alguns jogadores conseguem fazer”, lê-se na declaração de Carlsen, de 31 anos, que desistiu da Sinquefield Cup de 2022, em Saint Louis, no início de setembro, depois de o norte-americano o ter derrotado.
“Desisti do torneio. Sempre gostei de jogar em Saint Louis e espero voltar no futuro”, escreveu, na altura, Carlsen na sua conta de Twitter, juntamente com um vídeo de uma entrevista a José Mourinho em que o treinador português referiu que, se falasse, “metia-se em problemas”.
Mais tarde, a 20 de setembro, o norueguês abandonou uma partida contra Niemann durante a Julius Baer Generation Cup, após ter feito apenas uma única jogada, mas não deu explicações. “Não quero jogar com pessoas que fizeram batota repetidamente no passado porque não sabemos o que são capazes de fazer no futuro”, escreveu agora, na sua declaração oficial, acrescentando que “a batota no xadrez é um assunto sério e uma ameaça existencial ao jogo” e que “os organizadores do xadrez e todos aqueles que se preocupam com a santidade do jogo” devem “considerar seriamente o aumento das medidas de segurança e métodos de deteção de batota”.
Apesar de se ter retirado do jogo com o norte-americano, o norueguês acabou por vencer a Julius Baer Generation Cup e, na última sexta-feira, embora a Federação Internacional de Xadrez (FIDE) tenha repreendido, numa declaração, Carlsen pela sua desistência na partida contra Niemann após uma jogada apenas, referiu também partilhar “profundas preocupações do nº 1 do mundo sobre os danos que a batota traz ao xadrez”.
Niemann já tinha assumido que tinha utilizado métodos que fugiam às regras do xadrez quando tinha 12 e 16 anos, a partir de um computador, mas garantiu que, num jogo ao vivo, nunca tinha feito batota. A 8 de setembro, a maior plataforma online de xadrez, a Chess.com, afirmou ter removido Niemann do seu site por este jogador ter feito batota.
Batota no xadrez é antiga e a tecnologia facilita tudo
Depois dos acontecimentos deste mês, de uma história sem fim à vista, várias teorias foram surgindo na internet, incluindo a possibilidade de Niemann ter utilizado um brinquedo sexual anal com wireless que recebia informação de uma outra pessoa que estava a ver o jogo e enviava dicas através de certas vibrações. “Eu sei que estou limpo. Querem que eu jogue numa caixa fechada sem transmissão eletrónica, não me interessa. Estou aqui para ganhar e esse é o meu objetivo, independentemente [do resto]”, afirmou Neeman, citado pela BBC.
De facto, as tecnologias podem facilitar a possibilidade de se fazer batota durante um jogo que, à partida, não deixa portas abertas aos que gostam de fugir às regras. Neste momento, os desenvolvimentos em inteligência artificial permitem até aos jogadores planear as suas jogadas antes do início das competições
Em 1996, Garry Kasparov, agora com 59 anos, um dos melhores jogadores de xadrez de todos os tempos, competiu contra um computador da empresa norte-americana de informática IBM, o Deep Blue, apesar de ter conseguido derrotá-lo com três vitórias e dois empates. No ano seguinte, o então campeão mundial de xadrez já não teve a mesma sorte: o supercomputador da empresa foi atualizado e reprogramado e acabou por vencer Kasparov.
Na altura, o campeão mundial referiu que estaria em desvantagem em relação ao supercomputador, já que não lhe tinha sido concedido o acesso aos jogos recentes do Deep Blue e, pelo contrário, a equipa do supercomputador poderia estudar muitos jogos de Kasparov. Além disso, chegou a sugerir que, durante o jogo, tinha havido intervenção humana, apesar de a IBM ter negado as acusações, afirmando que as únicas intervenções de humanos foram realizadas entre os jogos e que isso não era ilícito.
A IBM recusou ainda o pedido de Kasparov para ser realizado um novo jogo entre o campeão mundial e o Deep Blue, mas a verdade é que a derrota de 1997 marcou o primeiro momento de sempre em que um supercomputador derrotou um campeão mundial de xadrez, sendo, ao mesmo tempo um “abre olhos” para a capacidade que a inteligência artificial tem de se envolver nestes tipos de jogos estratégicos e revelar bons resultados.
Ao mesmo tempo, também foram surgindo máquinas de xadrez, programas desenvolvidos para calcular as melhores opções de movimentos e que foram sendo melhorados até estarem, agora, mais fortes do que nunca, superando as capacidades de jogo dos humanos. Por exemplo, o sistema de rating Elo é um método estatístico utilizado para se calcular a força relativa entre jogadores de xadrez e, neste momento, o recorde pertence a Carlsen, que atingiu a classificação 2882 em 2014. Já o programa de jogos de xadrez Stockfish, um dos mais avançados, tem uma classificação de mais de 3500.
Estes programas foram dando oportunidade a jogadores de fazerem batota em jogos e, por isso mesmo, também foram sendo criados mecanismos de deteção dessas infrações às regras do jogo, nomeadamente pela Chess.com. “O que aconteceu foi que a cultura de fazer batota online foi vista como um crime muito menor do que a batota quando o jogo é em cima de um tabuleiro”, explica à CNN Emil Sutovsky, diretor-geral da FIDE, que considera a batota no xadrez “um enorme problema”. Sutvosky acrescenta ainda que esse cenário “deve mesmo ser mudado”.
E apesar de ser mais difícil fazer batota neste jogo quando existe um tabuleiro físico entre dois jogadores e um árbitro atento no meio dos dois, nos últimos anos vários jogadores foram sendo apanhados a fazer batota em competições, utilizando as mais variadas técnicas. Em 2015, o italiano Arcangelo Riccicardi, jogador amador, foi apanhado, durante um campeonato, a utilizar código Morse e uma câmara de vídeo, que escondeu num pendente que tinha ao pescoço. Riccicardi tinha fios presos ao corpo e uma caixa por baixo de uma das axilas, tendo sido descoberto por um dos árbitros da competição depois de horas de jogo.
“À medida que descemos para os escalões mais baixos, é mais provável encontrarmos jogadores a fazerem batota”, garante Andy Howie, árbitro e membro de uma comissão da FIDE que pretende detetar técnicas de batota nos jogos de xadrez, em declarações à CNN.
Muito antes disso, o mundo do xadrez já estava carregado de polémicas: no Campeonato Mundial de Xadrez de 1978, por exemplo, o então campeão mundial de xadrez, o russo Anatoly Karpov, agora com 71 anos, afirmou que Viktor Korchnoi estaria a tentar cegá-lo com uns óculos de sol espelhados que usava. Korchnoi respondeu à letra, afirmando que um igurte de mirtilo servido a Karpov podia ter sido usado para haver comunicações entre o campeão mundial e os seus analistas. Karpov acabou por vencer a competição.