O sorriso de Isabel II, quando desembarcou de um bergantim real, com o marido, príncipe Filipe, no Cais das Colunas, em Lisboa, a 18 de fevereiro de 1957, no início da sua primeira visita de Estado a Portugal, não era apenas de circunstância. Era também impelido por alívio e genuína felicidade. A jovem monarca, então com 30 anos, acabara de passar pela primeira grave crise do seu reinado, sem poder contar com o apoio emocional de Filipe, que se encontrava ausente da Europa num longo périplo por Estados da Commonwealth. Seria em Portugal que Isabel II recobraria forças, quando, por fim, teve o marido a seu lado, após quatro meses de separação forçada.
Enquadre-se: na sequência da nacionalização do canal do Suez, pelo Presidente egípcio Gamal Nasser, e cujo controlo ainda pertencia à Inglaterra, Israel declarou guerra ao país dos faraós, a 29 de outubro de 1956, com o apoio da França e do Reino Unido. Os combates duraram apenas até 7 de novembro, quando as pressões políticas dos EUA, da então União Soviética e da ONU obrigaram à retirada dos invasores. Com a desastrada intervenção no Suez, a Grã-Bretanha sofreu “uma grave humilhação diplomática nas Nações Unidas”, diz o historiador Pedro Aires Oliveira, especializado em relações internacionais. Tiraram o devido proveito, no Médio Oriente, os EUA e a URSS.
Isabel II teve de lidar com réplicas sérias no nº 10 de Downing Street. Depois do desastre no Suez, o primeiro-ministro conservador, Anthony Eden, “com os nervos destroçados, retirou-se para a Jamaica para recuperar forças”, mas, quando regressou, “percebeu que já não dispunha de condições para continuar”, descreve o historiador. A rainha teve, então, de tomar uma das decisões mais delicadas do seu curto reinado, que ainda não havia chegado aos cinco anos. Eden demitiu-se a 10 de janeiro de 1957 e, no mesmo dia, Isabel II indigitou para primeiro-ministro Harold Macmillan, responsável pela pasta das Finanças. “Foi uma decisão feliz”, nota Pedro Aires Oliveira. Macmillan “tirou partido dos seus laços de amizade” com o Presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, “restaurou a confiança na libra e começou a preparar a retirada britânica de alguns dos seus territórios coloniais mais problemáticos”.
Investigador do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa, e autor de um artigo sobre os bastidores da primeira visita de Isabel II ao nosso país, Pedro Aires Oliveira conclui que a resolução da crise “deve ter deixado a rainha exausta”. E acrescenta que, “nas comunicações diplomáticas”, existem “várias referências ao desejo de a soberana aproveitar a deslocação a Portugal para se reencontrar com Filipe e gozarem juntos alguns dias de paz e sossego”.
Quando a rainha e o príncipe aterraram na Base Aérea do Montijo, a 16 de fevereiro de 1957, o protocolo já tinha, claro, o assunto resolvido. “Pensou-se numa estada no Norte do País, mas depois a hipótese de um fim de semana privado na Arrábida, com os duques de Palmela, velhos conhecidos da família real britânica, acabou por vingar”, conta.
Só a 18 a visita oficial se iniciou, com o bergantim real. Convocado para conceber o aparato cénico da visita, foi Leitão de Barros, o grande arquiteto dos “cortejos históricos” do Estado Novo, quem se lembrou de fazer desembarcar Isabel II de um bergantim real e de a transportar pela Avenida da Liberdade acima num coche do século XVIII, acompanhado por uma escolta de cavalaria. A visita da monarca prolongar-se-ia por quatro dias, mas só aquela cena inicial justificou, por exemplo, uma grandiloquente manchete do Diário de Notícias, a toda a largura da primeira página: “Vibrante e apoteótica receção do povo de Lisboa à rainha Isabel II.”
GALINHA POR PERDIZ
É claro que o presidente do Conselho, Oliveira Salazar, supervisionou tudo até ao mais ínfimo pormenor. O ditador esforçou-se por evitar mal-entendidos protocolares que pudessem servir de pretexto para reavivar a animosidade entre as correntes republicana e monárquica do regime. Alguns membros de famílias aristocráticas, porém, levaram a mal que os convites emitidos em seu nome não mencionassem os respetivos títulos nobiliários – protestos que Salazar ignorou por completo.
Já no menu do banquete oficial, no Palácio da Ajuda, interveio: quando confrontado com a ementa preparada pelo chefe João Ribeiro, reputado cozinheiro do Hotel Aviz, Salazar sugeriu que a famosa Perdiz à Convento de Alcântara fosse substituída por uma mais económica galinha, descobriu também, na sua investigação, Pedro Aires Oliveira. O ditador não resistia ao controlo possível de gastos.
Escondida sob o glamour da realeza estava uma pesada agenda política da dita mais velha aliança do mundo. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Selwyn Lloyd, seria muito claro perante o homólogo português, Paulo Cunha. Quando a tomada de Goa pela União Indiana era a principal dor de cabeça do Estado Novo, Lloyd lembrou a Cunha que a Grã-Bretanha já informara Portugal, sem rodeios, de que não se sentia obrigada a intervir a seu lado, pois isso colocá-la-ia em rota de colisão com um Estado-membro da Commonwealth, “associação livre de nações”, assim designada desde 1949, a que Isabel II presidia e que muito acarinhava.
Ainda assim, uma publicação afeta ao Partido do Congresso Indiano referiu-se à visita de Isabel II a Portugal como “o encontro de pássaros da mesma espécie nas vésperas da sua perdição” e criticou a rainha pela sua indiferença face às “carnificinas cometidas pelos portugueses em Goa” – comentário que motivaria um pedido de desculpas do primeiro-ministro da Índia, Nehru, à monarca.
Mas Lloyd, com algum desplante, também diria a Cunha que era fundamental para a recuperação económica britânica a exploração intensiva das riquezas naturais do continente africano, a qual dependia das ligações ferroviárias e dos portos portugueses em Angola e em Moçambique, para o escoamento das exportações oriundas da Rodésia (atual Zimbabwe). Salazar cederia a tal pedido de cooperação – via-o como uma barreira de defesa contra a dupla ameaça do capital norte-americano e das “ideias subversivas” patrocinadas por Moscovo.
Naquele momento, contudo, o que interessava mesmo ao ditador era que Isabel II e a sua comitiva regressassem ao Reino Unido com uma imagem forte do carinho popular que rodeava a “velha aliança”. E alcançou o objetivo. “Sob todos os aspetos”, diz Pedro Aires Oliveira, a visita da monarca britânica foi “um retumbante êxito diplomático” do Estado Novo. De Londres, o embaixador Pedro Teotónio Pereira exultava, por carta, com a “colossal propaganda” conseguida pelo regime e dava-se ao luxo do sarcasmo: “Até tivemos o ressentimento indiano a dar cor ao quadro!”.
“PÉRFIDA ALBION”
Mas depressa o clima mudaria – e é impressionante verificar, a esta distância de 65 anos, a quantidade de acontecimentos históricos de que a visita de Isabel II foi a antecâmara. Logo em março de 1957, a New Statesman, à época a revista de maior circulação no Reino Unido, publicava um artigo, assinado pelo seu diretor, Kingsley Martin, e cujo título dizia tudo: Fascismo em Nome de Jesus. Bem informado, o jornalista denunciava ali as características ditatoriais do Estado Novo de Salazar e citava um relatório sobre o trabalho forçado em Angola. A New Statesman passou, depois, a publicar notícias acerca da ferocidade da PIDE e dos julgamentos de opositores nos tribunais plenários, instrumentalizados pelo regime.
Tudo isto seria amplificado pelo impacto internacional da campanha presidencial de Humberto Delgado, em 1958, e pelas atribulações do “General sem Medo” no exílio. Por sinal, foi a situação dos direitos humanos em Portugal que inspirou, em 1961, um advogado católico britânico, Peter Benenson, a lançar a Amnistia Internacional. A organização adotou como um dos seus iniciais “prisioneiros de consciência” Agostinho Neto – que seria o primeiro Presidente da Angola independente. Antes, em dezembro de 1961, caíram Goa, Damão e Diu, após uma demolidora invasão da União Indiana, com Salazar, precisado de bodes expiatórios para a derrota, a apontar o dedo à “pérfida Albion”, nota Pedro Aires Oliveira.
Pequenas e grandes curiosidades
Dona de 2,6 mil milhões de hectares em 15 países e de uma fortuna avaliada em €420 milhões, circulava entre castelos a grande velocidade no seu Bentley State Limousine. Decidia os códigos de vestuário na Corte e que joias usavam as noivas reais no dia do casamento. E era a tutora de todos os cisnes britânicos
A maior latifundiária
Isabel II era tida como a maior proprietária de terras do mundo. Possuía 2,6 mil milhões de hectares nos 15 países (Reino Unido incluído) onde era soberana e chefe de Estado. Já o valor das valiosíssimas obras da coleção real e das joias da coroa ainda não terá sido por completo avaliado. Todos estes ativos, a que se somam o Palácio de Buckingham e o castelo de Windsor, são detidos e geridos pelo Crown Trust.
Monumentos
A rainha era dona de Sandringham House, em Norfolk, Inglaterra, e do castelo de Balmoral, na Escócia.
Pobre menina rica
A fortuna pessoal de Isabel II está avaliada em €420 milhões – muitíssimo longe da apresentada por Jeff Bezos, a pessoa mais rica do mundo em 2021: €157 mil milhões.
Guardiã das joias da coroa
Era a única pessoa que podia usar as joias da coroa e tocá-las sem luvas. Também era a rainha quem decidia que joias da família as noivas reais iriam usar, no dia do casamento, ou, depois de casadas, em eventos sociais.
Rosto bem conhecido
Tem o seu rosto estampado em 35 moedas internacionais e selos de correio de reinos e de países da Commonwealth, o que é um recorde ainda hoje inscrito no Guinness Book.
Pagar impostos?
A monarca estava isenta do pagamento de impostos, mas decidiu, em 1993, passar a pagar IRS, para compensar os gastos públicos com a reconstrução do castelo de Windsor, após o grande incêndio no ano anterior.
Inimputável
A rainha tinha imunidade total – não podia ser detida, presa, interrogada ou julgada, se não quisesse.
Sem papéis
Isabel II não soube o que era um passaporte nem qualquer outro documento de identificação, como carta de condução, por exemplo. Não precisava de os ter.
Código da estrada?
Os automóveis da frota da monarca não tinham matrícula.
Senhora de dois dias
Celebrava dois aniversários: a 21 de abril, o dia do seu nascimento, e, a 2 de junho, o Dia da Rainha, comemorado com uma parada militar, acontecimento designado por “Trooping of the Colour”.
Saber vestir
Era a monarca quem ditava o traje na Corte. Por exemplo, ninguém podia andar com as pernas totalmente destapadas nem usar roupa completamente preta, a qual estava reservada para o luto.
Tutora dos cisnes
Todos os cisnes brancos que vivem em águas abertas do Reino Unido eram propriedade sua.
Sempre a condizer
Trata-se de uma originalidade britânica, mas o certo é que a rainha podia conferir o seu “alto patrocínio” aos produtos prediletos que usava e que eram fornecidos aos palácios. Era o caso dos chapéus de chuva Fulton, fabricados para condizerem com as cores da roupa que a monarca vestia.
Pretendentes de fora
A rainha não recebia nem convidava para encontros de família os chefes de Casas Reais não reinantes, para não comprometer a sua posição de chefe de Estado perante as respetivas repúblicas. Era o caso do pretendente ao trono português, D. Duarte de Bragança, que, no entanto, tem ligações próximas com os príncipes Carlos e Eduardo.
A alta velocidade
A rainha estava isenta, em todas as circunstâncias, de cumprir as leis de velocidade rodoviária. Por isso, o Bentley State Limousine em que habitualmente viajava – viatura blindada que os Presidentes dos Estados Unidos da América também usam – andava quase sempre de prego a fundo. Não é por acaso que aquele Bentley é conhecido como The Beast.
A mais retratada
Isabel II posou para mais de 120 retratos oficiais. Entre eles destacam-se dois em que está com o marido, príncipe Filipe, duque de Edimburgo. O seu primeiro retrato foi pintado em 1933, pelo artista húngaro Philip Alexius de László, quando a futura rainha tinha apenas 7 anos.
Já a Rodésia seria palco de uma rebelião de colonos que, liderados por Ian Smith, declararam unilateralmente, em 1965, uma independência branca, estabelecendo um regime racista copiado do Apartheid da então União Sul-Africana. “A atitude tíbia da Grã-Bretanha radicou no receio de uma intervenção militar redundar num fiasco como o do Suez”, diz aquele historiador. O preço seria pago por Isabel II: durante anos a fio, a rainha ouviu críticas contundentes de primeiros-ministros da sua Commonwealth (e não só), face à passividade dos governos de Londres perante aqueles regimes intoleráveis.
Se de uma só visita de Isabel II, com apenas cinco anos de reinado, se tiram tamanhas ramificações históricas como as atrás descritas, testemunhadas pela monarca, o que dizer de sete décadas de trono, cujas comemorações decorreram de fevereiro a junho últimos? Veja-se apenas este exemplo: Isabel II conheceu 120 países, em viagens de Estado que equivalem a 42 voltas ao mundo. Não por acaso, a monarca da Guerra Fria visitou a Alemanha em 1990, logo após a queda do muro de Berlim, e a Rússia em 1994, três anos depois do fim da União Soviética.
SUPEROU A RAINHA VITÓRIA
Só mesmo ela podia ter contado, com rigor, a sua história – o que, como se sabe, nunca aconteceria. Mas seria um bestseller garantido: reuniu-se com cinco Papas (Pio XII, João XXIII, João Paulo II, Bento XVI e Francisco), com uma mão-cheia de Presidentes dos EUA (da lista constam Eisenhower, Nixon, Ford, Reagan, Bush, o filho deste, George W. Bush, Obama e Trump) e recebeu figuras como os Beatles, a bailarina Margot Fonteyn, o escritor Salman Rushdie, o ator Anthony Hopkins, o multimilionário e filantropo Bill Gates ou a cantora Lady Gaga.
Isabel II deixaria escapar, porém, o orgulho que sentiu por chegar ao jubileu de platina, percorrendo metade do século XX e um quarto do XXI. Em 2015, ultrapassou a rainha Vitória, que, no século XIX, reinou durante 63 anos. Mas manteve a postura de sempre: uma monarca constitucional, profunda conhecedora do seu papel na arquitetura política, e de gostos simples.
Isabel II, por exemplo, ouvia as notícias num pequeno rádio portátil, da marca Roberts, que tinha desde os anos 1940, enquanto tomava o café da manhã. Para se descontrair, gostava de resolver quebra-cabeças e de fazer paciências.
Após enviuvar do homem com quem foi casada durante 73 anos (o príncipe Filipe de Edimburgo morreu a 9 de abril de 2021, a dois meses de se tornar centenário), a monarca que aceitou aparecer ao lado de James Bond (o ator Daniel Craig), na abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, estava ciente do declínio físico devido aos seus 96 anos. Mas seguia à risca os conselhos e as prescrições dos médicos que a assistiam, a ponto de ter abdicado do cocktail Dubonnet, uma mistura deste vinho fortificado com gin, que, durante cinco décadas, bebeu todas as noites.
NAS MÃOS DE DEUS
A abdicação, essa, era um não assunto para a monarca. Isabel II não se considerava chefe da Igreja Anglicana só de título. “Era profundamente religiosa, tinha um grande sentido de serviço e de dever para com a nação, os reinos e os súbditos, e nunca abdicaria dessa responsabilidade vitalícia que Deus lhe confiou”, diz Carlos Evaristo, autor especializado em assuntos monárquicos. Agora, sim, o filho mais velho, hoje com 73 anos, suceder-lhe-á, como rei Carlos III.
Salazar “superstar”
Na década de 1950, o ditador – descrito como “um autocrata paternalista” ou “um Rembrandt forçado a ser um artista de rua” – tinha fãs ao mais alto nível em Londres
Olhando de hoje, é quase inverosímil. Mas a verdade é que Salazar, nos anos 50, tinha admiradores nas elites britânicas, diz o historiador Pedro Aires Oliveira. Sir Nigel Ronald, por exemplo, embaixador britânico em Lisboa entre 1947 e 1954, descreveu-o como “um autocrata paternalista segundo o modelo platónico do Rei-Filósofo”.
Nos círculos governamentais e empresariais, um admirador especialmente fervoroso era Sir David Eccles, ex-responsável pela condução da guerra económica na Península Ibérica em 1940-42, e depois ministro de vários executivos conservadores. Eccles referir-se-ia a Salazar como “um Rembrandt forçado a ser um artista de rua”. O cuidado e o aparato, sob vigilância apertada do ditador, fizeram o resto, tornando a visita de Isabel II a Portugal, em 1957, “um retumbante êxito diplomático” do Estado Novo, diz aquele historiador.
Na segunda visita da monarca ao nosso país, em março de 1985, respiravam-se os ares da democracia. Ainda muito longe do Brexit, Isabel II saudaria a iminente entrada de Portugal na CEE (a 12 de junho, com assinatura do primeiro-ministro, Mário Soares), mas também lembraria a “importância” da “velha aliança”.
Já o Presidente da República, Ramalho Eanes, depois de sublinhar que “não se pode conceber a unidade europeia sem a participação do Sul da Europa”, não perderia a oportunidade de chamar a atenção para “os problemas da população de Timor-Leste, subjugada pela Indonésia”. Mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades.
“Encomendaram-se vestidos a Paris”
A elite do regime salazarista esmerou-se para se apresentar bem na récita, no Teatro de São Carlos, em Lisboa, oferecida a Isabel II e ao príncipe Filipe. “Encomendaram-se vestidos a Paris”, escrevia o repórter da revista O Século Ilustrado, ao notar o desfile de sedas, cetins, peles e joias.
Os “portuguese cowboys”
O embaixador que Salazar destacara para Londres, Pedro Teotónio Pereira, organizou, em Vila Franca de Xira, uma exibição equestre, para que Isabel II e o príncipe Filipe vissem 300 campinos e 200 cavaleiros de famílias fidalgas em ação (a hipótese de uma tourada foi logo posta de parte – iria suscitar protestos das sociedades protetoras de animais do Reino Unido). A imprensa britânica chamaria aos campinos “portuguese cowboys”.
Objetivo alcançado
Salazar apostou tudo em que Isabel II e a sua comitiva regressassem ao Reino Unido com uma imagem forte do carinho popular que rodeava a “velha aliança”. E alcançou plenamente o objetivo.
Soou a guitarra de Paredes
O espetáculo oferecido a Isabel II – na sua segunda visita a Portugal, em março de 1985 – e ao príncipe consorte, Filipe, teve outra qualidade. No Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, a um programa de música antiga lusitana seguiu-se um recital do génio da guitarra portuguesa Carlos Paredes – que a monarca fez questão de cumprimentar.
CEE à porta
Em 1985, o País estava esperançoso perante a iminente entrada na mítica e endinheirada Comunidade Económica Europeia. Dir-se-ia que, naquela altura, a população dividia-se entre ver a rainha e o príncipe, e a ansiedade pela chegada de 12 de junho, já agendado como dia da adesão de Portugal à CEE.
A vida da princesa Isabel Alexandra Maria Windsor, ou Lilibet, devia, supostamente, ter sido bem mais recatada e tranquila, num segundo plano da realeza britânica. O seu destino deu uma reviravolta radical, sem retorno, às 22h01 de 11 de dezembro de 1936, quando o tio Eduardo VIII iniciou a leitura de um discurso com menos de sete minutos, transmitido em direto pela rádio BBC, no qual anunciava a abdicação do trono. Foram palavras que puseram fim a um dos reinados mais curtos da História de Inglaterra: 326 dias. Eduardo escolheu viver a paixão, e um casamento, com uma socialite norte-americana, que ainda não estava divorciada do segundo marido, Wallis Simpson.
Tímido e gago, o pai de Isabel teve, então, de assumir o trono, sendo coroado como Jorge VI. Com a rainha Isabel e as filhas Isabel Alexandra e Margarida, formou uma das famílias reais mais amadas pelo povo. Para isso foi crucial a decisão que tomou durante a II Guerra Mundial: a família real manteve-se sempre no país, a sofrer ao lado dos súbditos as agruras dos bombardeamentos da Alemanha de Hitler, até à vitória sobre o inimigo.
Isabel encontrava-se no Quénia com o marido quando soube da morte do pai, vítima de cancro do pulmão, aos 56 anos. Foi a 6 de fevereiro de 1952 e ela tornara-se rainha. Regressou de imediato ao país, saindo do avião, em Londres, vestida de luto profundo.
CHURCHILL CONTRA FILIPE
Sem dúvida o seu primeiro-ministro preferido, dos 15 com quem trabalhou, Winston Churchill também foi o responsável por uma das maiores crises no casamento de Isabel II. Churchill opôs-se firmemente a que acedesse à vontade do marido para que, após a subida ao trono, tanto ela como os filhos adotassem o seu apelido, Mountbatten. Isso significaria o fim da dinastia Windsor, argumentava o velho político. Embora habituado a viver à sombra da mulher, Filipe não escondeu o orgulho ferido e comentou: “Sou o único homem no país que não pode dar o seu nome aos próprios filhos.”
Quando foi coroada, a 2 de junho de 1953, numa cerimónia transmitida pela televisão para uma audiência calculada em 277 milhões de espectadores em todo o mundo, Isabel II herdou o império colonial mais vasto do planeta. Agora, era soberana de apenas 14 países (além do Reino Unido), no conjunto das 54 nações que constituem a Commonwealth. Ainda assim, era a rainha de cerca de 150 milhões de súbditos nos seus domínios, os mais populosos dos quais são, para lá do Reino Unido, o Canadá, a Austrália, a Papua-Nova Guiné e a Nova Zelândia.
Em novembro de 2021, porém, perdeu um reino – a ilha caribenha de Barbados, com 237 mil habitantes, tornou-se, então, a mais jovem república do globo, deixando de reconhecer Isabel II como chefe de Estado, embora permaneça na Commonwealth. Para o historiador Pedro Aires Oliveira, ainda assim, “é notável que os índices de popularidade da rainha se tenham mantido muito altos”.
É claro que Isabel II também falhou, dando até pasto aos insaciáveis tabloides britânicos: quando, na educação do primogénito, enviou Carlos, ainda muito pequeno, para vários colégios longe de casa, onde a disciplina era austera e onde, pelo facto de ser algo obeso, de ter orelhas grandes, de não ter jeito para o desporto e de ser filho de quem era, foi vítima de bullying por vários colegas; quando se opôs ao desejo de a irmã se casar com um divorciado, Peter Townsend, capitão da Força Aérea e herói da Batalha de Inglaterra, o que teve consequências devastadoras na vida de Margarida; quando, em outubro de 1966, e só depois de muito instada a fazê-lo pelo primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson, demorou oito dias até visitar a vila de Aberfan, no País de Gales, onde o colapso de uma mina de carvão soterrou a escola e parte da localidade, provocando a morte de 116 crianças e de 28 adultos; quando forçou Carlos a casar-se com Diana Spencer, sabendo há muito que o príncipe de Gales mantinha uma relação duradoura com Camilla Parker Bowles; e quando, após a morte de Diana num brutal acidente de automóvel, em Paris, em agosto de 1997, voltou a demorar demasiado tempo a prestar a sua homenagem à “Princesa do Povo”, como lhe chamou o então primeiro-ministro Tony Blair, não colocando sequer a bandeira a meia haste no Palácio de Buckingham.
Mas a monarca também acertou. Recentemente, por exemplo, demarcara-se de André, tido como o seu filho predileto, após o príncipe ser pronunciado para julgamento sob a acusação de abusos sexuais de uma menor de 17 anos, em 2001, Virginia Giuffre, traficada pela rede de Jeffrey Epstein e de Ghislaine Maxwell, caso resolvido com um acordo extra judicial. Afastou-o, contudo, dos deveres reais e retirou-lhe todos os títulos.
Outro exemplo relevante: numa bem-sucedida visita à Irlanda, em 2011, revelou sensibilidade na escolha de “lugares de memória” do seu itinerário, incluindo locais que evocavam episódios violentos do domínio britânico na ilha. Até teve a coragem de se encontrar e de cumprimentar ex-membros do IRA, a organização terrorista e independentista da Irlanda do Norte que, em 1979, assassinou o lord Mountbatten, tio do príncipe Filipe e primo da rainha. Isabel II (que foi alvo de dois atentados, um dos quais atribuído ao IRA) tinha agora a prioridade de manter a união do reino, quando as consequências do Brexit aumentam os sentimentos separatistas na Irlanda do Norte e, sobretudo, na Escócia.
Com a óbvia exceção de Churchill, Isabel II tratava os primeiros-ministros com quem trabalhou num padrão de “amabilidade sem amizade”, como descreveu um deles, o trabalhista James Callaghan. Mas Churchill é que sabia e retratou Isabel II assim: “Mesmo que Hollywood tivesse esquadrinhado o planeta, não teria encontrado ninguém melhor para o papel.”
Um dia na vida da rainha
Pelas sete horas da manhã, uma empregada trazia o seu chá ao quarto, numa bandeja. Depois, com a ajuda de uma aia, a rainha começava a preparar-se para sair e ia para a sua sala de jantar privada, onde tomava sozinha o pequeno-almoço, às nove horas. Nesta altura, um gaiteiro escocês tocava gaita de foles no exterior, mas perto da janela da sala de jantar, uma tradição que se mantém desde o tempo da rainha Vitória.
De seguida, dirigia-se ao seu escritório, onde já se encontravam as malas com os documentos enviados pelo governo para a monarca despachar. Também lia cartas de súbditos – cinco ou seis, selecionadas pelo seu staff.
Por volta das 11 da manhã, ia passear no jardim com os seus cães da raça Welsh Corgi. Antigamente, passeava a cavalo pela manhã. Como agora já não o conseguia fazer, visitava os seus cavalos nos estábulos e alimentava-os com cenouras. Também alimentava os cães pessoalmente.
O almoço era servido às 13 horas, de novo na sua sala de jantar privada. O castelo de Windsor é gigantesco, mas Isabel II apenas ocupava a área de um apartamento normal. Por sinal, a referida e pequena sala de jantar chegou a ser o quarto do pai, Jorge VI. Semanalmente, o chefe da cozinha fazia-lhe chegar menus num livro específico, e a rainha escolhia as refeições que queria. Isabel II comia pouco – e depressa.
A seguir ao almoço, a monarca reservava algum tempo para fazer telefonemas a familiares e amigos.
A rainha tomava chá às quatro da tarde, com acompanhamento moderado de sanduíches, scones e bolos. Esta era também uma altura para ler. Isabel II era uma leitora ávida e rápida.
O jantar era servido às 20h15, e a rainha voltava a tomar a refeição sozinha. Depois, via um pouco de televisão. Gostava da telenovela Coronation Street e de um bom murder mystery, do género de Agatha Christie ou de Sherlock Holmes. Às 23 horas ia deitar-se, de novo com a ajuda de uma aia.