Foi a 2 de julho, durante um concerto no festival AgitÁgueda, em Águeda – que estava disponível na íntegra no Youtube, mas entretanto foi bloqueado– que o cantor português Pedro Abrunhosa decidiu falar sobre a guerra na Ucrânia, criticando veementemente a ação russa e o presidente do país, Vladimir Putin, e defendendo a liberdade de expressão como um direito “inalienável”.
“Não podemos, nem vamos esquecer, que a Europa vive uma guerra. E a guerra mais estúpida de todas, uma guerra perfeitamente evitável, uma guerra de ódios, uma guerra em que famílias como as nossas todos os dias têm de fugir”, disse, durante o espetáculo, além de adaptar uma das suas músicas (Talvez F****) para cantar as palavras “Vladimir Putin, go f*** yourself”, incitando o público a fazê-lo consigo. Abrunhosa aproveitou precisamente essa adaptação da música para também utilizar expressões relacionadas com a guerra: “soldados russos” e “barco russo”, por exemplo.
Vladimir Putin (go fuck yourself)
Barco russo (go fuck yourself)
Soldados russos (go fuck yourself)
Vladimir Putin (go fuck yourself)
Filha da Putin (go fuck yourself)
“Este grito hoje tem de se ouvir em Moscovo e em Kiev”, encorajou ainda o artista.
Passados 20 dias do concerto, a Embaixada da Rússia em Portugal emitiu um comunicado partilhado nas redes sociais, criticando Pedro Abrunhosa por ter condenado Vladimir Putin pelo ataque contra a Rússia. “As suas palavras, indignas do homem de cultura que ainda por cima representa o País, que está a manifestar-se abertamente contra qualquer tipo de ódio e discriminação, foram ouvidas”. “Gostaríamos ainda de relembrar o senhor Abrunhosa que os seus gritos vergonhosos se enquadram em mais de que um artigo da legislação penal portuguesa, sendo que neste contexto informámos através dos canais diplomáticos os órgãos competentes de aplicação da lei”, lê-se no documento partilhado.
A agência que representa o artista, a Sons em Trânsito, reagiu de imediato a este comunicado, acusando a Embaixada russa de intimidação e de ser defensora da censura. “Compreendemos que a Embaixada da Rússia não entenda facilmente o significado de liberdade de expressão, mas não deixa de ser inédito e muito preocupante que um cidadão português, em Portugal, seja assim intimidado por uma representação diplomática estrangeira”, referiu a agência, acrescentando que, apesar de Abrunhosa ter “um profundo respeito e admiração pelo povo russo” e “pela cultura russa”, “não confunde a Rússia e o seu povo com o seu regime ou os seus líderes” e “continuará a utilizar a sua voz” em prol de “causas que lhe pareçam justas, sempre que assim o entender”.
Também o próprio artista respondeu publicamente ao comunicado emitido pela Embaixada, acusando-o de ser censurador e “absolutamente abjeto”. “Existe aqui o exercício de uma tentativa de censura perante a comunidade artística, da qual sou representante, e os cidadãos portugueses”, afirmou Abrunhosa, numa entrevista à TVI/CNN. “Essa palavra de ordem tornou-se naturalmente a palavra da resistência de toda uma oposição a esta guerra. Não há aqui qualquer ofensa pessoal”, explicou a referir-se à expressão que utilizou durante o concerto polémico, “go f*ck yourself”, acrescentando ainda: “O que é incrível é que se tente reverter esta palavra, honorando uma culpa de ofensa e esquecendo as bombas que caem diariamente em cima de casas civis”. Abrunhosa, que afirmou ter falado por todos os portugueses, disse também que “esperava que a Embaixada se preocupasse com os civis que estão a morrer”.
Depois de o artista ter pedido, na sexta-feira, um “posicionamento” ao Governo português relativamente a este caso, foi durante o fim-de-semana que o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) afirmou ter transmitido à Embaixada russa, “através dos canais diplomáticos”, o seu “repúdio pelo tom e conteúdo” do comunicado, destacando ainda que “a liberdade de expressão, com particular ênfase no domínio cultural e artístico”, tem “um valor inalienável em Portugal”.
Também durante o fim-de-semana, em declarações à CNN Portugal, a ativista russa Ksenia Ashrafullina aifrmou que “a embaixada só representa Putin, não representa os russos em Portugal”. “Como russa, até diria que as palavras de Pedro Abrunhosa são bastante fofinhas”, referiu ainda.
O artista português diz esperar agora que o Governo tome uma posição em relação à ameaça de que foi alvo no comunicado da Embaixada. “Acho que o Parlamento tem de se pronunciar porque é uma ingerência na soberania nacional e uma ingerência num conteúdo que nos é a todos muito caro, que é a liberdade. A liberdade de expressão neste caso” afirmou o músico, esta terça-feira.
À Rádio Observador, Abrunhosa disse que esperava uma “posição um bocadinho mais dura” do Governo à Embaixada russa, apesar de não estar “descontente com a resposta”. “Vocês não têm direito em fazer isso em lado nenhum. Aqui não. Portanto, calem-se e expliquem-nos o que foi isto”. “É isto que o Governo se calhar devia fazer”, defendeu o artista.
“A minha voz não é a tua voz, Pedro Abrunhosa”, criticou São José Lapa. Mas os artistas levantaram as suas vozes para apoiarem o cantor
Depois do comunicado da Embaixada, o artista dirigiu-se diretamente ao seus colegas portugueses, pedindo-lhes que se pronunciassem de forma mais clara. “Percebo que estamos todos a ter um verão muito atribulado, com muitas ocupações, mas há aqui uns direitos fundamentais, nomeadamente nós somos artistas, estamos em cima dos palcos, estamos perante as pessoas. Temos de ter o direito de nos expressar artisticamente, cluturalmente, civicamente, humanamente e pessoalmente”, afirmou.
Esta terça-feira, a atriz São José Lapa partilhou, numa publicação na sua conta de Facebook, uma dura crítica a Abrunhosa. “Por cá o cantor Pedro Abrunhosa sempre se manifestou politicamente nas seus concertos sobre A B ou C situações. Agora ter a lata de o fazer dizendo que ERA A VOZ DOS PORTUGUESES… alto aí. Nem aos partidos eu deixo que as minhas opinões se diluam nos suas várias retóricas quanto mais a um cantor que compôs muitos êxitos de canções de amor mas que VOZ nunca teve”, escreveu a atriz. “A minha voz não é a tua voz, Pedro Abrunhosa. Aliás, tu nunca tiveste voz”, condenou, acrescentando ainda: “Quanto ao resto, bem podes dizer vitupérios nos teus concertos. Estou-me nas tintas se até as Pussy Riot já se tornaram pornográficas”.
Depois disso, vários artistas como Carolina Deslandes, Agir e Irma, começaram a partilhar nas suas redes sociais uma fotografia de Abrunhosa e um texto onde é criticada a “ameaça inaceitável” da Embaixada russa “num país democrático como Portugal”, juntamente com as hashtags #SomosTodosAbrunhosa ou #JeSuisAbrunhosa, adaptando-a ao “grito” de apoio ao Charlie Hebdo depois do atentado de 2015. “Tal como o MNE, também nós, artistas, músicos, cidadãos, temos que demonstrar a nossa indignação e estar solidários com o Pedro”, lê-se no texto publicado por vários artistas. “Não foi só o artista Pedro Abrunhosa a ser intimidado, foi toda a classe artística nacional”.
Também José Cid partilhou o seu próprio vídeo de apoio a Abrunhosa, que denominou “Je Suis Pedro Abrunhosa”. “Tem todo o direito, com objetor de consciência que é, de acusar em palco o governo russo por aquilo que está a acontecer na Ucrânia”, referiu. “Parabéns, Pedro Abrunhosa, fizeste muito bem. Estou contigo incondicionalmente. Todos os teus colegas te respeitam”, rematou ainda o cantor de 80 anos.