“Não batemos em adultos, mas batemos em alguém com metade do nosso tamanho e achamos que ninguém tem nada a ver com isso.” Esta é uma das frases utilizadas na campanha Nem Mais uma Palmada, abraçada pelo Instituto de Apoio à Criança, que pretende traçar uma linha vermelha em relação aos castigos corporais aplicados a menores. Uma prática que continua a ser desvalorizada, inclusive pela comunidade jurídica, como se constata em alguma jurisprudência recente. “Ninguém aceita os maus-tratos graves, mas ainda são tolerados os castigos corporais, desde que haja um fim educativo”, aponta o jurista Nuno Domingues, um dos coordenadores.
Na última quarta-feira, na Fundação Champalimaud, foi apresentada a estratégia nacional da campanha e, entre as medidas anunciadas, está uma proposta de “alteração cirúrgica” ao Código Civil, “para que fique claro que os pais não podem praticar qualquer tipo de castigo corporal e a jurisprudência não se alicerce em interpretações erróneas do exercício das responsabilidades parentais”. A verdade é que, ao abrigo de um dever de correção que já nem tem expressão legislativa, “ainda continuamos a assistir a acórdãos baseados em interpretações obtusas”, acusa Nuno Domingues. Como o que aceitava bofetadas na cara de um bebé de 13 meses. “Estas práticas são mais comuns em crianças muito pequenas e frágeis, e não em adolescentes… por isso são ainda mais aviltantes.”
Desde 2007 que o Código Penal indica expressamente que pratica violência doméstica “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais”. Apesar de criminalizados, as palmadas, os beliscões ou as estaladas ainda persistem no seio familiar. Um estudo divulgado em 2019 pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), no âmbito do projeto Geração XXI – que acompanha crianças da Área Metropolitana do Porto desde o nascimento –, indicava que cerca de 75% dos menores com sete anos de idade são vítimas de agressão psicológica e de castigos corporais. Destes, cerca de 10% sofreu agressões graves.
A pandemia não ajudou. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, em 2020 registaram-se 5216 casos de violência doméstica contra menores de 16 anos, aumentando para 5769 casos em 2021. “A nossa linha SOS Crianças também recebeu mais apelos neste período”, refere Nuno Domingues.
Ciência unânime
De acordo com um relatório fornecido, em outubro de 2021, pela Parceria Global para o Fim da Violência contra as Crianças, projeto lançado pela secretário-geral da ONU, António Guterres, “a evidência de que os castigos corporais são prejudiciais para as crianças é esmagadora: existem mais de 300 estudos que mostram associações entre punição corporal e uma ampla gama de resultados negativos, enquanto nenhum estudo encontrou evidências de quaisquer benefícios”. O castigo corporal causa danos físicos diretos às crianças e impacta negativamente a curto e a longo prazo na sua saúde mental e física, e na educação também. Longe de ensinar as crianças a se comportarem, prejudica a internalização moral, aumenta o comportamento antissocial e prejudica as relações familiares. Faz ainda aumentar
as agressões entre crianças e aumenta a probabilidade de perpetrar e sofrer violência quando adulto. Está intimamente ligado a outras formas de violência nas sociedades, e acabar com ela é essencial para combatê-las.
Aquando do lançamento da campanha Nem Mais uma Palmada, os efeitos negativos também foram destacados pelo IAC: “A banalização da violência é muito prejudicial, pois sabemos como pode desvalorizar o sofrimento da vítima, que não raro mostra dificuldades de relacionamento e pode causar ausência de empatia e reproduzir-se em ciclos intergeracionais, com repercussões futuras preocupantes que vão desde o facilitar situações de “bullying” na escola ou no ciberespaço, e até conduzir à violência no namoro e à violência nas relações de intimidade”. O objetivo do instituto será criar mais parcerias (com universidades, por exemplo) e avançar, este ano, com mais estudos nacionais sobre os castigos corporais, para juntar à evidência científica que já existe a nível internacional e aumentar a sensibilização sobre o tema. Será igualmente realizado um questionário, direcionado para a população em geral, para perceber qual é a perceção da sociedade portuguesa sobre este tema.
Está também a ser preparado um kit de formação para uma parentalidade consciente (ver abaixo alguns exemplos). “Muitas vezes as más práticas acontecem de forma muito automática, são absorvidas de forma cultural e vistas como naturais… queremos quebrar esse ciclo”, sublinha Nuno Domingues. Certo é que, se nas escolas, por exemplo, há uma censura total aos maus tratos, nas famílias o mesmo não acontece. “Se gostamos das nossas crianças, não podemos continuar a ler acórdãos em que, na mesma frase, se utilizem as palavras amor e bofetada… educar não pode rimar com violência”.
Alternativas à punição e aos castigos corporais:
1. Estabelecer regras e limites: Ajudam a criança a orientar o seu comportamento. Os pais devem ser capazes de lhe explicar os motivos de um comportamento ser adequado ou não e quais as consequências do mesmo.
2. Ser realista: Saber o que esperar do comportamento da criança em cada fase do desenvolvimento permite aos pais gerir as suas expectativas e ajustar as consequências ao comportamento.
3. Ser consistente e contingente: O comportamento desadequado deve ser sempre corrigido e, quando possível, no momento em que ocorre, não devendo ser adiado para outra ocasião.
4. Dar o exemplo: A modelagem é uma das melhores formas de ensinar à criança qual o comportamento que se espera dela.
5. Envolver a criança na solução: Quando a ação da criança resulta numa consequência direta, os pais podem envolvê-la na resolução do problema e na reparação do “dano”.
6. Escolher as “batalhas”: Alguns comportamentos não têm o peso que os pais lhes dão, por exemplo, fazer barulho enquanto brincam. Zangar-se ou castigar a criança não é adequado.
7. Dizer à criança o que se espera dela
8. Negociar as consequências: Combinar com a criança aquilo que é uma consequência ajusta-da à ação que realizou.
9. Fazer uma pausa (tanto pais, como crianças)
CONTACTOS ÚTEIS
Linha SOS Criança: 116 111
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