No Dia Internacional da Mulher, a violência de género não pode ficar de fora. Dirigente da UMAR e professora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Maria José Magalhães, 63 anos, diz, nesta entrevista à VISÃO, que “formas de violência contra as mulheres”, como a violação e o assédio sexual e moral, “não estão completamente cobertas em Portugal, nem em termos legislativos nem no apoio às vítimas”. E defende uma solução: “No crime particular, ou semipúblico, os direitos da vítima não estão assegurados. Mesmo que queira ir fazer queixa, vai enfrentar o mundo sozinha. Já se for crime público, terá os procuradores do seu lado.”
Na sua opinião, como estamos em Portugal quanto à prevenção e punição da violência contra as mulheres?
Na legislação relativa à violência doméstica estamos bastante bem, comparando com o resto da UE. Mas há outras formas de violência contra as mulheres e de género que ainda não estão completamente cobertas em Portugal, nem em termos legislativos nem no apoio às vítimas. Refiro-me à violação, que ainda é um crime particular e depende de apresentação de queixa pela vítima para que o Ministério Público inicie o processo contra o agressor ou agressores. Também se encontra na mesma situação o assédio sexual, tanto em espaços públicos como no trabalho, em que não está ainda prevista, por lei, a responsabilização dos agressores. Esta questão é sobretudo sensível no local de trabalho, em que não se protege o posto de trabalho da vítima, o que igualmente vale para o assédio moral.
O que acontece nesta questão do assédio?
“Quando começámos o debate, nos anos 1980, sobre a violência doméstica, também se dizia que as mulheres vítimas é que sabiam se queriam ou não queixar-se”
Por exemplo, o assédio sexual no local de trabalho está previsto no código laboral, mas apenas como um incumprimento da entidade empregadora, que pode ser sujeita a uma coima.
Qual é a medida que a UMAR defende como mais urgente em relação à violência contra as mulheres?
A violação e o assédio sexual e moral deviam passar a ser crimes públicos. Ou seja, como hoje acontece com a violência doméstica, o respetivo procedimento criminal deixava de estar dependente da apresentação de uma queixa, formal ou informal, por parte da vítima, sendo apenas necessário haver uma denúncia ou o conhecimento do crime, para que o Ministério Público promovesse o processo.
Mas estas são situações tremendas para as vítimas, que podem não querer avançar com o processo, também ele muito difícil. Se for essa a sua vontade, como pode ser respeitada?
Como acontece nos processos de violência doméstica, o direito da vítima a não seguir para a frente tem de estar presente. O processo é iniciado porque alguém fez queixa, ou a vítima fê-la, porque foi violada ou sofreu assédio sexual no trabalho. E o processo de averiguações e de constituição das respetivas peças inicia-se, a vítima é chamada e ela pode remeter-se ao silêncio. Se assim for, o processo não continua. Mas não é arquivado – no crime público isso não existe. O que há é uma suspensão provisória do processo. E se houver outra denúncia contra o mesmo perpetrador sobre a mesma vítima, o processo deixa de estar suspenso e é retomado.
O que ganha a vítima com a passagem dos ilícitos que refere a crimes públicos?
No crime particular, ou semipúblico, os direitos da vítima não estão assegurados. Mesmo que queira ir fazer queixa, vai enfrentar o mundo sozinha. Já se for crime público, terá os procuradores do seu lado. O sistema judicial vai ter de atuar, porque tem interesse em que esse tipo de violência não exista. E, portanto, vai procurar os indícios. O ser crime público é essa mensagem e essa assunção por parte das instituições, nomeadamente as policiais e as judiciais, de que é do interesse da sociedade que essa violência não aconteça.
Mas, no caso das vítimas de violação, a situação é especialmente complicada…
Quando começámos o debate, nos anos 1980, sobre a violência doméstica, também se dizia que as mulheres vítimas é que sabiam se queriam ou não queixar-se. Do ponto de vista da UMAR, há duas coisas a considerar: uma delas é a pressão, o medo e a ameaça do agressor sobre a vítima. A violação não é feita apenas por desconhecidos. Pode ser feita por um tio, um amigo, um conhecido, um colega… Há pressão e ameaça por parte do agressor, que não deixa que a vítima possa decidir com liberdade. Depois temos uma outra dimensão – a da crítica social e do exercício de revitimização da vítima. Isto acontece quando a vítima faz queixa e quer continuar em frente e, depois, em tribunal perguntam-lhe se dormiu ou não com outros, se vestia uma saia curta ou comprida… Tudo isto fica às costas da vítima, que tem de carregar com as ameaças do agressor e, ao mesmo tempo, com esta revitimização social e institucional. Ora, se for crime público, isso significa que é do interesse da nossa sociedade que não exista violação. Que não haja uma pessoa que seja obrigada a praticar atos sexuais contra a sua vontade. E sendo do interesse público, que foi o processo que se passou com a violência doméstica, o ónus recai sobre o Ministério Público, ou seja, sobre as entidades judiciárias e judiciais. É o sistema judicial, insisto, que tem interesse em que esse tipo de violência não exista – e vai atuar. Porque a pessoa que viola a vítima “A” não vai ficar por essa violação. A violação não é um problema de satisfação sexual, mas de poder. Por isso, a seguir à vítima “A” haverá a “B”, a “C” e por aí fora.