Passou o tempo da diabolização dos tubarões como os vilões dos mares, tarefa de que se encarregaram filmes, livros e documentários. O que hoje assusta a comunidade científica e as organizações ambientalistas é a diminuição dramática das populações de espécies de tubarões, que oscila entre 70% e 90%, por causa da pesca intensa e excessiva.
Se o equilíbrio de muitos ecossistemas do oceano dependem de populações estáveis de tubarões, a verdade é que mais de 100 milhões destes predadores são mortos todos os anos, no mundo. E Portugal ocupa aqui uma posição relevante: na União Europeia (UE), é o terceiro país que mais tubarões captura, a seguir a Espanha (1.º) e à França (2.º). A nível mundial, é o 12.º país que pesca mais tubarões, o 6.º que mais exporta carne destes animais e o 8.º que mais importa.
Segundo estimativas de organizações ambientalistas como a Associação Natureza Portugal, a Sea Shepherd ou a Loving the Planet, a média anual de capturas no nosso país situa-se acima das cinco mil toneladas, que correspondem a cerca de 1,5 milhões de tubarões pescados por embarcações nacionais. A discreta e, sobretudo, surpreendente faceta de Portugal enquanto grande matador de tubarões é agora descortinada na sequência de uma Iniciativa de Cidadania Europeia (ECI, na sigla em inglês), apoiada por mais de 70 organizações ambientalistas e de bem-estar animal. Intitulada Stop Finning – Stop the Trade, aquela ECI procura reunir, até ao próximo dia 31, um milhão de assinaturas de cidadãos de países da UE, por forma a introduzir na agenda do Parlamento Europeu uma petição que visa obter uma alteração legislativa que proíba a exportação, a importação e o trânsito comercial de barbatanas de tubarão no espaço comunitário.
Com um valor, no mínimo, 11 vezes superior ao da carne, as barbatanas “são vendidas a 20, 30 euros por quilo” logo no momento da exportação, diz João Correia, biólogo marinho doutorado em pesca comercial de tubarões e raias. Depois, “seguem em regra para Hong Kong e, a partir daí, são distribuídas pela Ásia inteira, para a famosa sopa de barbatana de tubarão”, acrescenta o também professor na Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar do Instituto Politécnico de Leiria.
A sopa de barbatana de tubarão é, claro, caríssima. “Nos restaurantes, custa entre 70 e 100 euros – por vezes até mais”, testemunha aquele biólogo. Mas o seu consumo disparou, quando “o desenvolvimento económico da China começou a alavancar uma crescente classe média alta, com um poder de compra cada vez maior”, diz João Correia, também dirigente da ONG Loving the Planet.
Qual é, afinal, o encanto gastronómico da famosa sopa, que as organizações ambientalistas consideram responsável pelo acentuado declínio de espécies de tubarões? Ao que aquele cientista descreve, não justifica de forma nenhuma o custo para a bolsa e, antes de mais, os danos ambientais que provoca. “Equivale à nossa canja – é um caldo que também leva frango e outros ingredientes, para lhe dar sabor”, conta. “As fibras secas das barbatanas de tubarão entram na receita apenas para lhe conferir textura.” Porque tem, então, tamanha procura nos mercados asiáticos? “É uma exibição de status”, responde João Correia. “Trata-se de um alimento que historicamente era exclusivo da realeza e de famílias brutalmente ricas”, acrescenta.
Na Ásia, o consumo da sopa de barbatana de tubarão também é uma “exibição de ‘status’”, diz o biólogo João Correia
“Pancada à bruta”
Até há cerca de oito anos, ainda era legal nos navios e nas águas da UE o chamado finning, a forma mais cruel de obter barbatanas de tubarão. O finning consiste em cortar as barbatanas dos tubarões a bordo de uma embarcação de pesca e em atirar depois os animais ao mar, na maioria das vezes ainda vivos. Se a prática economiza espaço de carga, trazendo apenas as lucrativas barbatanas para terra, os tubarões amputados devolvidos ao oceano hão de morrer em pouco tempo, de hemorragias ou de asfixia.
Em 2013, porém, a pressão de organizações ambientalistas resultou numa lei que obriga, no espaço da UE, a que os tubarões sejam desembarcados ainda com as barbatanas, que só são cortadas em terra. Contudo, dizem os dinamizadores da ECI Stop Finning – Stop the Trade, “o sucesso esperado não se concretizou”. Exemplificam com o tubarão-azul, a espécie mais capturada no Atlântico. “Inicialmente, os números caíram, mas viriam a atingir inimagináveis 53 mil toneladas logo em 2016, ainda mais do que em 2013”, argumentam. Por isso, justificam, lutam agora pela proibição total do comércio de barbatanas de tubarão na UE.
Aos poucos, a comunidade científica e as ONG conservacionistas têm vindo a obter vitórias, com decisões políticas importantes. Em 2007, foi proibida a pesca de tubarões de profundidade em águas da UE, quando o declínio das suas populações, segundo vários estudos, já ia em mais de 70 por cento. Outra decisão, tida como “histórica”, foi tomada em novembro último – a UE e mais 51 países proibiram a pesca do tubarão-anequim (cujas barbatanas são especialmente apreciadas) durante dois anos, num plano de recuperação da espécie no Atlântico Norte. As frotas pesqueiras portuguesa e espanhola eram responsáveis por 70% das capturas de tubarões-anequim, espécie que está classificada, desde 2019, como “em perigo”, na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza.
Já será bem mais difícil conseguir uma decisão política semelhante para o tubarão-azul, a espécie agora mais desembarcada nos portos de pesca portugueses, entre as cerca de quatro dezenas que existem nas águas do Continente, da Madeira e dos Açores. Apesar de haver registos de diminuições na sua população na ordem dos 80% a 90%, o tubarão-azul tem uma especificidade que, ao mesmo tempo, o prejudica e o torna afortunado.
“A sorte do tubarão-azul, e o motivo porque ainda não está extinto, é a taxa de reprodução bastante rápida que tem”, diz o biólogo João Correia. “Têm ninhadas de 20, 30 crias a cada dois anos”, explica o cientista. Ao contrário, a generalidade das outras espécies de tubarões têm uma “taxa de reprodução muito lenta, à imagem dos mamíferos – duas ou três crias, a cada dois ou três anos”, acrescenta.
Mas, afinal, qual é mesmo a importância dos tubarões para o equilíbrio dos ecossistemas oceânicos? “Se removermos ou perturbarmos o topo de uma cadeia alimentar, os habitats desfazem-se como se fossem peças de dominó a cair”, responde João Correia. “Há espécies que vão desaparecer, outras vão tomar o lugar dessas e podem ser espécies atreitas a dar cabo, por exemplo, de todo o plâncton”, continua o cientista. “São cenários completamente catastróficos que ninguém consegue muito bem prever que dimensão devastadora podem ter”, avisa.
No mundo, as espécies de tubarões rondam as 400, e estes predadores existem nos oceanos há cerca de 400 milhões de anos. E, além das barbatanas, há um autêntico multiuso de outras partes do corpo destes animais nas indústrias alimentar, farmacêutica e de cosméticos. Por tudo isto, como diz com desassombro João Correia, “os tubarões estão a levar pancada à bruta há 50 anos, pelo menos”.