Sinto-me frágil

Sinto-me frágil

Margarida Tavares chama-lhes as suas “paranoias” e estava habituada a conviver com elas, mas, nestes meses pandémicos, parece que se agigantaram. “Já carregava nos botões dos elevadores com os nós dos dedos, na altura da gripe A, por ter nojo de tocar nas coisas e medo de contaminar-me”, esclarece a produtora de 45 anos. Agora, que está vacinada contra a Covid-19, não consegue explicar porque continua refém dos rituais de limpeza: “No local de trabalho, estou sempre a analisar o ambiente e a desinfetar a secretária; cumprimentos, nem pensar ou, então, desvio a cara.” Sempre munida de álcool-gel, dá dois passos atrás se alguém vier em sua direção, por exemplo, numa festa de aniversário, e mantém a máscara posta, até a cozinhar com pessoas próximas. “Chego ao cúmulo de estar numa esplanada, usar o galheteiro e desinfetar logo as mãos.” Por enquanto, libertar-se disto é uma impossibilidade, pois até em casa, onde só vivem ela e o marido, não resiste a limpar maçanetas e interruptores: “A pandemia atrofiou-me muito.”

Ninguém previa que o início dos “loucos anos 20” ficasse marcado por um vírus letal, com um impacto devastador na saúde física mas também mental de milhões de pessoas. Confirmam-no os resultados de um megaestudo divulgado, em outubro, pela revista científica The Lancet, que analisou a prevalência da depressão e da ansiedade em mais de duas centenas de países. As estimativas não são animadoras: a pandemia terá sido responsável por 53 milhões de casos adicionais de depressão e por mais 76 milhões de perturbações de ansiedade, o que representa um aumento superior a 25% face aos níveis pré-pandemia, sendo que dois terços destes valores recaem nas mulheres. Ignorar o “elefante na sala” – o problema de saúde pública, à escala global – deixou de ser possível.

Teresa Esteves da Fonseca

Ansiedade social e agravamento da depressão

Foto: Luís Barra

“Ainda se pensa que falar disto é partilhar demais”

Depois de bater no fundo, a tradutora e revisora, 30 anos, inscreveu-se no ginásio, envolveu-se com outro afinco na terapia e retomou o trabalho. “Já tenho mais armas para me defender, os amigos estão em alerta e faço por estar com pessoas.” Pelo meio, partilhou os seus sentimentos no Instagram e até escreveu um livro que ela pensa publicar. “É urgente falar sobre as doenças do foro mental”

Os estudos realizados em Portugal, no contexto da pandemia Covid-19, desenham o retrato possível de uma população em sofrimento. Segundo o relatório Saúde Mental em Tempos de Pandemia (SM-COVID19), do Instituto Ricardo Jorge, um terço dos inquiridos (33,7%) reportou sinais de sofrimento psicológico (nos profissionais de saúde foram 44,8%), o que não pode ser dissociado dos efeitos socioeconómicos da pandemia na vida das famílias. Outro estudo, conduzido pelos psiquiatras Henrique Prata Ribeiro e André Ponte, durante o primeiro mês de distanciamento social em Portugal, revelou que 30,2% dos 1 626 portugueses analisados tinham sinais de depressão, 53,1% de ansiedade e 36,3% de insónia. Na mesma linha, um grupo de investigadores da Universidade do Minho verificou, numa amostra de 1 280 portugueses, que 12,4% apresentavam sintomas graves de síndrome obsessivo-compulsiva.

“Qualquer um de nós pode ter sintomas e vê-los intensificar-se, como sucedeu na pandemia, mas estar triste, deprimido ou com insónia é bem diferente de ter uma doença psiquiátrica propriamente dita”, tranquiliza Miguel Xavier, diretor do Programa Nacional de Saúde Mental. Importa dizer, também, que sintomas surgidos na sequência de crises como a da Covid-19 são autolimitados, ou seja: “quando desaparece o fator desencadeante, eles terminam”. Os médicos contactados pela VISÃO confirmam: mais do que doenças psicóticas ou depressões profundas, a pandemia precipitou estados ansiosos e depressivos, e trouxe medo, angústia, inquietação e situações de stresse pós-traumático. Como estão os portugueses a lidar com o embate do SARS-CoV-2?

A 2 de dezembro, o Conselho de Ministros aprovou a criação de uma coordenação nacional e de coordenações regionais de saúde mental, nas ARS do País, “responsáveis por implementar medidas no terreno”

Ir ao tapete e levantar-se  
Maria Helena e José Luís Sabugueiro, 77 e 74 anos, eram um casal alegre, ativo e saudável, que nunca teve medicamentos em casa. Até janeiro deste ano, trabalhavam numa oficina de reparação de viaturas, no concelho do Seixal, mas a infeção trocou-lhes as voltas. “O meu marido ficou internado 18 dias e, quando o enfermeiro me mostrou uma fotografia dele, não o reconheci”, conta Maria Helena. Ela achava que o pior já tinha passado, mas, ao ver-se fechada em casa a ser cuidadora de José Luís, com síndrome pós-Covid-19 e em fisioterapia de reabilitação pulmonar e muscular, quebrou também: “Senti-me perdida, ansiosa, sem dormir, e perdi a alegria que tinha; tem sido muito pesado, tudo isto.” Ambos foram diagnosticados com depressão, e os comprimidos passaram a fazer parte das suas rotinas.

Após quase um ano sem melhoras, a mulher, que um dia perguntou à médica “Doutora, será que vou voltar a rir?”, quer agora retomar a atividade física e a hidroginástica. “Estou a fazer o desmame do antidepressivo e peguei no carro para levar o marido a passear.” Tem receio de que ele não volte a ser o mesmo, de que ande esquecido e triste e não possa conduzir. “As coisas ainda estão muito cruas, mas já faz pequenos arranjos em casa e cuida do jardim, com dificuldade.” O negócio é agora gerido pela filha, e Maria Helena pensa positivo: “Isto há de ir ao sítio.”  

Jéssica Vigário

Burnout e estado depressivo

Foto: José Carlos Carvalho

“Pensei mesmo em mudar de profissão”

Em 2020, o combate na linha da frente chegou a representar 60 horas de trabalho semanais para esta enfermeira do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures. A fatura, pagou-a em 2021, quando lhe foi diagnosticado um burnout. Segundo o relatório Saúde Mental em Tempos de Pandemia, do Instituto Ricardo Jorge, 44,8% dos profissionais de saúde reportaram sofrimento psicológico. O suporte da família, do parceiro e de um novo animal de estimação ajudam no regresso à vida e ao trabalho

Recuemos a março de 2020, ao Hospital Beatriz Ângelo, em Loures. Confrontada com os doentes Covid-19 e situações de morte numa dimensão nunca vista, a enfermeira Jéssica Vigário, 25 anos, começou por procurar ajuda no próprio hospital. “Chegava a trabalhar 60 horas semanais, com uma folga. Ficava muitas horas sem comer, sem beber e sem ir à casa de banho, com o equipamento de proteção individual. Só me apetecia dormir e chorar, queria morrer”, recorda.

Alento: os sintomas de sofrimento psicológico surgidos na sequência de crises como a da Covid-19 são autolimitados, ou seja, “quando desaparece o fator desencadeante, eles terminam”

No final desse annus horribilis, foi infetada e ficou com Covid longa e depressão. Em abril, foi-lhe diagnosticado um burnout e esteve em baixa psiquiátrica até setembro. Está medicada com antidepressivos e antipsicóticos, e recebe psicoterapia em regime semanal: “Foi muito complicado”, admite. O regresso precoce ao trabalho correu mal, “comecei a chorar, desalmadamente, pensei mesmo em mudar de profissão”. Entretanto voltou ao ativo e, apesar de temer uma recaída, nota que o “psiquiatra e a psicoterapia fizeram a diferença”.

Que o diga a eurodeputada Marisa Matias, a quem foi diagnosticado um burnout no início de 2020, oito meses depois de sentir na pele os sinais do esgotamento profissional. Na altura, atribuiu o aumento da ansiedade, a falta de ar, a dor no peito, a perda no controlo dos braços e das pernas e as insónias a uma doença neurológica, mas, depois de reconhecer o problema (em janeiro de 2022, o burnout passará a vigorar na lista das doenças da Organização Mundial da Saúde), esteve três meses sem trabalhar, tempo que coincidiu com o confinamento. “Se não tivesse tido apoio antes, as consequências podiam ter sido mais trágicas e drásticas”, assegura, reforçando a convicção de que “é preciso incluir a saúde mental nas redes de serviços públicos, com psicólogos nos centros de saúde e mais consultas de psiquiatria nos hospitais”. 

Disrupção e resiliência
Ao contrário de outras especialidades médicas, em pausa nos primeiros meses da crise, a psiquiatria teve indicação para continuar a acompanhar por telefone ou videochamada os doentes urgentes e com perturbações mais graves. Tanto o diretor do serviço de psiquiatria do Hospital de Santa Maria, Luís Câmara Pestana, como o do Hospital de São João, Miguel Bragança, referem que o número de consultas presenciais, sobretudo primeiras consultas, diminuiu em 2020, devido também ao medo de os doentes se deslocarem ao hospital.

Marisa Matias

Diagnosticada com burnout,  pouco antes do confinamento

Foto: Luis Barra

“É preciso incluir a saúde mental nas redes de serviços públicos”

A eurodeputada pelo Bloco de Esquerda demorou oito meses a reconhecer os sintomas que ela associava a uma doença neurológica, quando eram, na realidade, indícios de um burnout. Após três meses em que esteve parada (coincidiram com o confinamento), falou da doença, por forma a quebrar o estigma e a alertar para a importância de se levar a sério a saúde mental, bem como de se melhorar o acesso aos cuidados públicos

Nessa altura, apareciam essencialmente os pacientes que Miguel Bragança define como “expectáveis” – doentes mentais prévios, idosos, pobres, desempregados ou sem-abrigo –, “que agravaram ou perpetuaram o seu estado de saúde mental precário”, e, ainda, pessoas que tiveram Covid-19, que perderam alguém para a doença e desenvolveram alterações neuropsiquiátricas na sequência da infeção ou que estiveram demasiado tempo isoladas. “A pandemia foi muito disruptiva não só do ponto de vista social mas também pessoal, devido ao isolamento, que é um problema muito grave para a patologia mental”, sublinha Miguel Bragança. E acrescenta: “Aristóteles dizia que quem consegue viver isoladamente ou é um deus ou uma besta; um ser humano não é.”

Já em 2021, “o número total de consultas e de primeiras consultas é muito superior ao de 2020, como se esperava, mas também superior a 2019, para o período homólogo deste ano”, revela Luís Câmara Pestana. A norte, a tendência é semelhante. Miguel Bragança afirma ter tido, nos últimos meses, um aumento considerável de pedidos de primeiras consultas de psiquiatria pelos cuidados de saúde primários. Luís Câmara Pestana sublinha, porém, que o aumento de consultas pode ser “apenas um resultado dos que ficaram à espera durante a pandemia”, uma vez que os médicos de medicina geral e familiar “têm estado ocupados, e continuam, com atividades de trace Covid”.

No Hospital de Santa Maria, a consulta de adolescência foi aquela em que mais aumentou a procura. O diretor de psiquiatria explica que “o isolamento fez crescer, exponencialmente, o tempo que as famílias passaram fechadas na mesma casa”, com os jovens sujeitos a elevadas expressões emocionais, “um fator de risco no desenvolvimento de estados de ansiedade”.

Os adolescentes e os jovens adultos, mais vulneráveis à privação da socialização, podem ter-se ressentido mais. “Dos comportamentos autolesivos e de ideação suicida seguidos em consulta, a maioria já tinha uma perturbação depressiva”, afirma o psiquiatra Diogo Guerreiro. Entre os mais novos, “noto atrasos reversíveis; ficaram mais coxos no seu desenvolvimento social, por sentirem que a vida, como a conheciam, lhes foi retirada”. Chegaram-lhe, ainda, pedidos de ajuda para sintomas de ansiedade, depressivos e obsessivos por parte de quem não tinha patologia psiquiátrica. Apesar disso, defende, “os humanos têm uma capacidade de resiliência grande”.

Encontrar as armas
Importa lembrar que é nas crises que se descobrem forças para se lidar com a adversidade. Veja-se o estudo longitudinal, coordenado pelo investigador Pedro Morgado, da Escola de Medicina da Universidade do Minho, entre março de 2020 e de 2021, com uma amostra de 2 133 pessoas. “No primeiro estado de emergência, registou-se o dobro dos sintomas de ansiedade, depressão, stresse e obsessivo-compulsivos face aos esperados em condições normais”, revela o psiquiatra. Com a passagem do tempo, “a maioria da população desenvolveu estratégias para lidar com isso”. Já no segundo confinamento, “diminuíram os estados de ansiedade, apesar dos fenómenos agudos de sofrimento”. Por nem todos sofrerem da mesma maneira, houve grupos que não se adaptaram, ficando mais expostos ao risco de doenças psiquiátricas: “As mulheres, os fumadores, os que não praticam exercício físico, os que têm piores condições em casa, desempregados e estudantes.”

Familiarizada com os estados depressivos desde os 18 anos, Teresa Esteves da Fonseca, hoje com 30, geria-os com acompanhamento clínico e tinha uma vida funcional. O primeiro confinamento prometia ser um mar de rosas para a revisora e tradutora, em regime liberal, e apreciadora do conforto doméstico. Não contava com o desnorte que se seguiu, no desconfinamento: “Desabituei-me dos contactos sociais, vieram os ataques de pânico e a ansiedade social, que eu já tinha desde a adolescência.” Isolou-se, perdeu o ritmo de trabalho e refugiou-se no consumo diário de drogas leves: “Fazia-o para anestesiar a solidão, o sofrimento e a ideação suicida.”

Depois de bater no fundo, parou os consumos, inscreveu-se no ginásio, ajustou a medicação, envolveu-se com outro afinco na terapia e retomou o trabalho. “Já tenho mais armas para me defender, os amigos estão em alerta e faço por ir aos sítios, pois necessito de estar com pessoas.” Pelo meio, partilhou os seus sentimentos na página do Instagram e até escreveu um livro, que pensa publicar. “É urgente falar sobre as doenças do foro mental”, faz saber. E acrescenta: “Ainda se pensa que falar disto é partilhar demais.” 

Maria Helena  e José Luís Sabugueiro

Ambos ficaram com depressão

Foto: Luís Barra

“Isto há de ir ao sítio”

Saudável, ativo, alegre e sem problemas de saúde, este casal de reformados viu a vida virada do avesso após contrair Covid-19. Foram tempos pesados, e Maria Helena chegou a perguntar à médica: “Doutora, será que vou voltar a rir?”. Agora, já quer retomar a hidroginástica. “Estou a fazer o desmame do antidepressivo e peguei no carro para levar o marido a passear. As coisas ainda estão muito cruas, mas ele já faz pequenos arranjos em casa e cuida do jardim”

É verdade que a saúde mental é um grande tabu e que ser medicado ou recorrer à ajuda de um psicólogo causa estranheza e pode ser motivo de vergonha e de estigma. Felizmente, as novas gerações parecem querer falar diretamente com o “elefante na sala”. Para isso, usam o humor – e basta ver os inúmeros memes sobre depressão e ansiedade que povoam as redes sociais – e contam com o apoio de cada vez mais figuras públicas que não hesitam em dar a cara e dizer “eu sofro”. Toda a gente ouviu a tenista Naomi Osaka dizer alto e bom som: “É OK não estar OK.”

Reformar a Saúde Mental
Segundo a análise da Fundação Francisco Manuel dos Santos, uma em cada cinco pessoas (19,8%) viu-se em situação de pobreza ou de exclusão social. O estudo Portugal Covid-19 Snapshot Monitoring (COSMO Portugal), divulgado em janeiro, evidenciou alterações nos hábitos de vida, com impacto negativo na alimentação (24%), no ritmo da atividade física (47%) e no aumento do consumo de álcool (21%) e de tabaco (12%). Os grupos mais propensos a níveis elevados de sofrimento psíquico são os jovens, pessoas separadas ou viúvas, bem como as mulheres, sobre quem recai, ainda, a sobrecarga de tarefas familiares e profissionais.

O diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, Miguel Xavier, defende que a prioridade é aumentar o número de psicólogos nos centros de saúde. “Quando o médico de família não tem a opção de encaminhar os casos moderados para um psicólogo, o que ele faz? Medica”

Susana Vilas Boas, 48 anos, é investigadora e cuidadora da avó, que tem 93 anos e está acamada, com demência, condição que levou a portuense a tomar ansiolíticos. Porém, o confinamento sem apoio domiciliário culminou numa depressão: “Caiu tudo em cima de mim; era um cansaço extremo e muita tristeza, dormia e chorava muito”, conta. O médico de família prescreveu-lhe antidepressivos, que ainda toma, mas as nuvens negras só se dissiparam, em março deste ano, com o regresso ao trabalho presencial e ao ginásio, e após duas semanas de férias, intervaladas, no verão. Susana recorda-se dos medos, “fazia muitos testes e, sempre que tinha sinusite, telefonava para a Linha SNS 24”. A vacina foi um bálsamo, tornando os dias mais suportáveis. 

“Somos um dos países da UE com maior prevalência de perturbações mentais, sendo expectável o agravamento, neste cenário”, observa Tiago Pereira, coordenador do Gabinete de Crise Covid-19. Entre abril de 2020 e outubro deste ano, a Linha Aconselhamento Psicológico do SNS 24 fez 112 mil atendimentos gratuitos e continua com elevados níveis de procura. Tal como no estudo da The Lancet, “os mais jovens, as mulheres, os desempregados e os trabalhadores precários foram aqueles que mais recorreram ao serviço”, adianta o psicólogo. Embora esteja prevista a continuidade do serviço nos próximos três anos, “este apoio importante na estabilização emocional é brutalmente insuficiente, por não ter ligação aos cuidados de saúde primários, com apenas 250 psicólogos. Restam os privados, para quem consegue pagar.”

Olhando para o copo meio cheio

O que a pandemia trouxe de positivo

1 – Visibilidade

Passou a falar-se mais, sobretudo entre os mais jovens, de um problema transversal, mas de que mal se falava ou face ao qual se fechavam os olhos (perturbações mentais)

2 – Solidariedade

Iniciativas espontâneas na sociedade civil, como projetos de entreajuda, incluindo o apoio, material e psicológico, a profissionais de saúde

3 – Novas opções no acesso

Consultas a preço social (público e privado), linhas de apoio psicológico, comparticipações nas seguradoras e em subsistemas de saúde

4 – Conexão

Mesmo sem se estar no mesmo barco, os constrangimentos na forma de trabalhar e de socializar levaram-nos a valorizar o contacto humano e a investir nele

5 – Criatividade

As muitas perdas revelaram-se oportunidades de crescimento e de mudança e, em alguns casos, para melhor

6 – Imunidade psicológica

Explorar competências pessoais que não sabíamos ter, até sermos confrontados com novos cenários, tornando-nos mais resilientes

7Gratidão

A satisfação com a vida centrou-se mais em aspetos que, antes, nos passavam ao lado (presença, afetos)

As dificuldades de acesso aos serviços de saúde mental no nosso país são crónicas. “Não se pode tentar recuperar num ano o que não se investiu em vinte”, afirma o diretor do Programa Nacional de Saúde Mental (PNSM), Miguel Xavier. Lembrando que não temos o trabalho de casa feito, quando a reforma da Saúde Mental começou há 30 anos na Europa Ocidental, defende que a prioridade é aumentar o número de psicólogos nos centros de saúde. “Quando casos com sintomas de ansiedade moderados, como os da pandemia, chegam ao médico de família e este não tem a opção de encaminhá-los para um psicólogo, a fim de se fazer terapia não farmacológica, o que é que ele faz? Medica.”

O psiquiatra reconhece que é preciso articular o trabalho hospitalar com os cuidados de saúde primários. Esta vai ser a missão de 40 equipas comunitárias, que o Governo quer criar até 2026, e que irão a casa das pessoas para identificar precocemente, por agora, apenas situações de doença mental mais grave. Embora a reforma da Saúde Mental seja da competência do Ministério da Saúde, a Direção-Geral da Saúde não tem poder executivo para a implementar. A inexistência de apoio político sustentado e a falta de investimento juntam-se aos obstáculos a contornar.

Elisabete Borges

Doente bipolar e com depressão

“Aqui podemos brincar e dizer o que quisermos”

Durante a pandemia, a ajudante de cozinha (na foto com a filha Patrícia) ficou em layoff e sem acompanhamento médico. Ganhou alento desde que entrou em contacto com o teatro para mulheres com problemas psicológicos, através do projeto SenteMente, iniciado em maio e dirigido pela encenadora e atriz Susana Gaspar. Todas as semanas, reúnem-se ali perto de duas dezenas de mulheres de condições distintas

O primeiro passo foi dado no dia 2 de dezembro, com a aprovação, em Conselho de Ministros, de um decreto-lei que determina a criação de uma coordenação nacional e de coordenações regionais de saúde mental, nas ARS do País, “responsáveis por implementar medidas no terreno”. O investimento de 85 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) foi muito bem-vindo, mas os apoios sociais do Estado não podem ficar de fora, posição defendida pelos médicos Ricardo Baptista Leite, Miguel Bragança e Miguel Xavier. A falta desses apoios, a par do desemprego de longa duração e da dívida terão um impacto direto na saúde mental dos cidadãos.

O diretor do PNSM deixa uma nota: “Mais do que dar serviços de psiquiatria, é preciso dar boas condições de vida às pessoas que vivem em países com grandes franjas de pobreza, como é o nosso, que tem dois milhões de pobres e uma desigualdade social enorme.” Miguel Bragança acredita que, se o Estado ajudar as pessoas, “dando-lhes esperança com vacinas, apoio económico com moratórias ou apoio social aos sem-abrigo, manterá as pessoas vivas e resilientes”. Como resume Ricardo Baptista Leite, “hoje compreendemos muito bem que isto é um problema real. Agora, é preciso atuar em conformidade”.

A procura de serviços de apoio psicológico gratuitos ou com preços sociais, em associações e estabelecimentos universitários, tornou-se uma tendência, como
o Programa
Cuida-te+, para jovens dos 12 aos 25 anos

À procura de apoio
Perante as dificuldades do Serviço Nacional de Saúde, exploram-se alternativas, porque, apesar de os tempos de espera para consultas, nos principais serviços de psiquiatria do País, estarem dentro dos limites recomendados (30 dias para casos muito prioritários, 60 para prioritários e 150 para situações normais), quem vai à procura de ajuda, fá-lo, geralmente, como último recurso e precisa dela “para ontem”.

A ADSE comparticipa consultas de psiquiatria e de psiquiatria da infância e da adolescência e deixou de exigir prescrição médica para as consultas de psicologia (até 12 por ano). No universo das seguradoras, a AdvanceCare disponibiliza programas de consultas de psicologia e, desde novembro, a Fidelidade (que detém a Multicare) tem cobertura para consultas de psiquiatria, psicoterapia e internamento sem custos acrescidos. Mesmo assim, a Ordem dos Psicólogos entende que esta oferta é, ainda, residual.

Entretanto, a procura de serviços de apoio psicológico gratuitos ou com preços sociais, em associações e estabelecimentos universitários, tornou-se uma tendência. O Programa Cuida-te+, de atendimento gratuito, confidencial e especializado, para jovens dos 12 aos 25 anos, em parceria com o Instituto Português da Juventude, está a funcionar em pleno e, desde novembro, recebeu um reforço de 19 estagiários da Ordem dos Psicólogos. A coordenadora nacional, Natacha Torres da Silva, refere “um aumento de 30% na procura, no último trimestre do ano de 2021”, e “novas tipologias de queixas”, como o uso excessivo de ecrãs, ansiedade devido à expectativa de maior produtividade em menos tempo, bem como problemas de comunicação associados à suspensão de tomadas de decisão e novos tipos de relação amorosa.

A Unidade W Mais, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, presta apoio psicológico semanal e gratuito a pessoas com vulnerabilidades biopsicossociais e, segundo a diretora, Sónia Santos, “foi vista como um lugar seguro pelos utentes no contexto pandémico”, numa altura em que aumentaram os pedidos de ajuda e as intervenções em crise. Durante os confinamentos, mantiveram os grupos de teatro terapêutico online, o que “foi fundamental para manter a sanidade mental das pessoas”.

Rodrigo Santos tem 21 anos e foi aí que se reencontrou, depois de ter passado um mau momento: “Fechado em casa, fiquei ansioso e com a sensação de estar sem saída.” Um dia, fez o impensável: “Não queria, mas cortei-me nos braços para aliviar o estado de aflição em que estava, talvez por me lembrar de coisas passadas.” Abandonado pelo pai e censurado pela mãe, que lhe tirava a chave e lhe controlava os passos, por não aceitar a sua orientação sexual, saiu de casa “para poder respirar”. Viveu numa instituição e, já adulto, Rodrigo estava numa casa partilhada quando perdeu o controlo. No ano passado, conheceu a psicóloga que ainda hoje o acompanha e com quem venceu o medo de estar só. “As sessões ajudaram-me a pensar, o teatro também; hoje sou uma pessoa diferente, retomei os estudos e voltei a sonhar.” 

A saúde mental ainda é um grande tabu, e ser medicado ou recorrer à ajuda de um psicólogo pode ser motivo de estigma. Felizmente, as novas gerações encaram o problema de outra maneira e parecem querer falar com o “elefante na sala”

Acabar com o estigma
Os dias de Elisabete Borges, 47 anos, que sofre de doença bipolar e de depressão, também ganharam outro alento, desde que tomou contacto com o teatro para mulheres com problemas psicológicos, na Casa da Juventude da Tapada das Mercês, no concelho de Sintra. Sem fins terapêuticos, o projeto de arte participativa SenteMente, iniciado em maio e dirigido pela encenadora e atriz Susana Gaspar, do centro de difusão cultural Chão de Oliva, “tem por meta criar um espaço seguro de expressão e de troca de experiências e acabar com o estigma da doença mental”.

Todas as semanas, reúnem-se ali perto de duas dezenas de mulheres em condições distintas – refugiadas, imigrantes, mães solteiras ou que perderam filhos ou maridos – e, durante hora e meia, “perdem a timidez, ganham confiança, contam histórias, cantam, dançam e criam o próprio material”, que resultará numa peça a representar em maio de 2022.

A severidade dos sintomas e os internamentos de Elisabete levaram-na a ficar temporariamente sem a guarda das filhas. Durante a pandemia, a ajudante de cozinha entrou em layoff e deixou de ter acompanhamento médico, estando há quatro meses com baixa psiquiátrica. “Era stressante lidar com a rapidez dos serviços de takeaway e, com águas quentes e facas por perto, eu tinha medo de não conseguir controlar-me”, explica. A filha mais velha, Patrícia, 27 anos, que viu a mãe passar pelo pior e vem com ela aos encontros, alegra-se ao vê-la “bem melhor, a partilhar coisas dela. Aqui podemos brincar e dizer o que quisermos”, confessa.

Susana Vilas Boas

Ansiedade e depressão

Foto: Lucília Monteiro

“A vacina foi um bálsamo”

O médico de família prescreveu-lhe antidepressivos, que ela ainda toma, mas as nuvens negras só se dissiparam em março deste ano, com o regresso ao trabalho presencial e ao ginásio. A investigadora portuense recorda-se dos medos: “Fazia muitos testes e, sempre que tinha sinusite, telefonava para a Linha SNS 24.” A vacina tornou os dias mais suportáveis

Aqui e ali, descobrem-se espaços seguros onde se pode desabafar. E os portugueses parecem encontrar nos profissionais de saúde o seu porto seguro. O estudo Covid-19 Pandemic: Effect on Confidence Levels of Portuguese Towards People of Different Professions, da autoria de Miguel Ricou, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigador do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, com uma amostra de 1 455 portugueses, entre os 19 e os 79 anos, revela que os médicos e os enfermeiros são os profissionais que merecem mais confiança da parte dos portugueses (entre 43% e 44%), seguidos pelos investigadores (37%), farmacêuticos (35%), psicólogos (33%), professores e educadores (32%).

Se as perturbações mentais ganham cada vez mais espaço mediático e se 2020 foi o ano da sua globalização, catalisada pelo SARS-CoV-2, este ficará marcado, espera-se, pelo tão aguardado pontapé de saída nas políticas de saúde pública. Sem medo de olhar e de ouvir os “elefantes na sala”.

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