Se acreditássemos que as pessoas dão voltas no túmulo depois de mortas, imaginaríamos Guccio Gucci outra vez num turbilhão. Quando os escândalos da sua família já pareciam ter sido esquecidos com a passagem do tempo, eis que um filme veio colocar novamente o apelido Gucci debaixo da luz crua dos holofotes.
Ao longo de duas horas e meia, Ridley Scott (realizador de clássicos como Alien, Blade Runner e Gladiador) revisita três décadas na vida desta família que esteve à frente de um dos maiores impérios italianos. E muitas das cenas protagonizadas pelos descendentes de Guccio não são bonitas de ver.
Como se percebe pelo trailer, o foco de Casa Gucci, nos cinemas nacionais a partir de 25 de novembro, é o assassínio de um dos seus netos, Maurizio, a mando da ex-mulher, Patrizia Regianni. Mas sobra película para assistirmos a parte das intrigas e das disputas entre os herdeiros que acabaram por levá-los a perder a marca de luxo hoje quase centenária.
‘Estamos verdadeiramente desapontados’
Comece-se por notar que Casa Gucci é um daqueles filmes que não temem ser postos de lado por causa de spoilers. Já se sabe que tudo aquilo que o realizador e o elenco, também ele de luxo, transportam para o grande ecrã aconteceu mesmo na vida real. Tanto o que se foi passando nos bastidores como nos tribunais (sim, nos tribunais, já lá iremos) apareceu profusamente nos jornais e nas revistas da época.
Claro que os diálogos que ajudam a contar a história não são uma reprodução ipsis verbis. Mas o livro em que se baseia o guião é tão consistente que ninguém na família veio gritar “mentira!”.
Escreva-se que a família também pouco falou em 2000, quando foi publicado House of Gucci: A Sensational Story of Murder, Madness, Glamour, and Greed (à letra, Casa Gucci: uma história sensacional de assassínio, loucura, glamour e cobiça), de Sara Gay Forden, uma jornalista americana que durante mais de 15 anos cobriu a indústria da moda a partir de Milão. Mas ainda o filme de Ridley Scott estava a ser rodado e já os Gucci torciam o nariz ao que se ia sabendo sobre ele.
“Estamos verdadeiramente desapontados. Falo em nome da família”, dizia à AP, em abril deste ano, Patrizia Gucci, uma das bisnetas de Guccio.
Mais do que o foco do filme no assassínio de Maurizio, os Gucci estavam incomodados com o facto de Hollywood ir fazer dinheiro à custa da sua privacidade, sublinhava Patrizia. E também não aprovavam a escolha de alguns dos atores.
“O meu avô [Aldo] era um homem muito bonito, como todos os Guccis, e muito alto, com os olhos azuis e muito elegante”, recordava Patrizia. “É interpretado por Al Pacino, que já não é muito alto, e a sua fotografia [tirada por um paparazzo, durante a rodagem do filme] mostra-o gordo, baixo, com patilhas, mesmo feio. É uma vergonha, porque não se parece nada com ele.”
Patrizia também não gostou da maneira como Jared Leto, que faz de seu pai (Paolo Gucci), aparece em algumas cenas: com o cabelo despenteado e de fato de veludo cotelê lilás. “Horrível, horrível. Ainda me sinto ofendida ”, dizia ela, na mesma ocasião.
Além de Al Pacino e de Jared Leto, o filme traz outros pesos pesados. Os lugares de maior protagonismo couberam a Adam Driver, que interpreta Maurizio Gucci, e a Lady Gaga, que faz de Patrizia Regianni, a mulher com quem esteve casado doze anos e acabou a mandar matá-lo. Jeremy Irons surge no papel de Rodolfo Gucci, pai de Maurizio, e Salma Hayek é a vidente Giuseppina “Pina” Auriemma, amiga e cúmplice de Patrizia.
Em liberdade desde 2016, depois de ter cumprido 18 anos de prisão, Patrizia Regianni já veio dizer-se ofendida por não ter sido contactada antes da rodagem. Nem sequer por Lady Gaga.
Mas estamos a adiantar-nos na história. O homicídio de Maurizio, em março de 1995, foi o clímax de uma série de escândalos que quase destruía a família. Para encontrarmos o princípio do fim temos de recuar algumas décadas.
As guerras em tribunais
Talvez devamos recuar aos anos 70, tal como faz Ridley Scott. Casa Gucci começa na altura em que Maurizio e Patrizia se conhecem, numa festa, e pouco depois temos o pai dele a opor-se ao casamento de ambos.
Maurizio diz-se apaixonado, mas Rodolfo está convencido de que Patrizia é uma caça-fortunas. Embora com dinheiro, a família Regianni não ocupa uma posição de relevo na sociedade italiana. E mesmo a sua fortuna não se compara com a dos Gucci.
O pai de Patrizia criara “um pequeno império de transportes terrestres”, diz Maurizio, de peito feito, ao que Rodolfo, irónico, responde com uma pergunta: “Quantos camiões tem?” E ameaça riscar o filho do testamento.
Patrizia não nascera num berço de ouro, mas o seu pai mimara-a desde pequena. Aos 12 anos, ao receber de presente o seu primeiro casaco de vison, fizera finca pé em ter uns mocassins a condizer e o signor Regianni acabou a dizer-lhe que sim. O mimo continuaria em adulta. Não admira, por isso, que ela tenha feito uma vida luxo com Maurizio, que havia de lhe oferecer o iate Creola, que pertencera a Stavros Niarchos e era, então, o maior veleiro de madeira do mundo.
Os dois também iriam comprar casas em Milão, Nova Iorque, Acapulco e nos Alpes suíços. Tinham um carro com a matrícula “Mauizia” e pertenciam ao círculo de amigos dos Kennedy. Num registo sempre em festa (mais ela do que ele), atravessariam a década de 1980 como um dos casais mais famosos italianos.
Essa década havia de ser também marcada pelas disputas entre os herdeiros de Guccio, que morreu em janeiro de 1953, uns dias depois de o seu filho Aldo abrir uma loja Gucci em Nova Iorque. A primeira ação em tribunal surgiu logo em 1980, quando Paolo, um dos primos de Maurizio, saiu do grupo para tentar lançar uma linha própria. E foi como um rastilho – só num período de cinco anos, houve quinze ações judiciais.
Em 1986, Aldo confessou-se culpado por evasão fiscal (7 milhões de dólares) nos Estados Unidos e esteve preso um ano. Estava com 81 anos, mas não teve outro remédio depois de o seu filho Paolo, em jeito de vingança, o denunciar publicamente. Maurizio seria, por sua vez, acusado por esse mesmo primo de falsificar a assinatura do pai, que morrera em 1983 e supostamente transferira 50% das ações da empresa para o seu nome.
De ‘Lady Gucci’ e ‘Viúva Negra’
Em 1989, depois de uma longa batalha judicial, Maurizio conseguiu ser nomeado presidente do grupo Gucci. Dois anos depois, fez uma pequena mala e informou Patrizia que iria ausentar-se por uns/cinco dias, numa viagem de negócios. Passado esse tempo, mandou o médico de família lá a casa, avisá-la que não voltaria.
Maurizio tinha ido morar com Paola Franchi, uma designer um pouco mais nova do que ele. Quanto aos negócios da família, iam por água abaixo, muito por causa da sua inépcia. A marca estava tão mal que, em 1993, não teve mesmo outro remédio se não vender a sua parte à Investcorp, uma empresa de capitais árabes, que assim ficava com a totalidade da Gucci.
Terá sido essa a gota de água para Patrizia. Segundo contaria mais tarde Paola, a partir dessa data ela passou a telefonar constantemente para Maurizio, com ameaças mais ou menos veladas. “Ela estava a fazer-nos perseguir-nos.”
Patrizia tinha medo que o ex-marido delapidasse a fortuna, prejudicando a heranças das duas filhas, Allegra e Alessandra. Por sua vez, Paola temia pela vida do companheiro, chegando a aconselhá-lo a contratar um guarda-costas.
Numa manhã de março de 1995, quando estava a chegar ao trabalho, Maurizio foi abatido com três tiros à queima-roupa. Tinha 46 anos e a polícia desconfiou logo da máfia, seguindo pistas nesse sentido ao longo de 23 infrutíferos meses.
No funeral, Patrizia Regianni disse lamentar “humanamente” a sua morte, “mas não do ponto de vista pessoal”. E, numa das poucas entrevistas que deu na altura, garantiu que o ex-marido se preparava para deixar Paola, só não sabia como fazê-lo sem causar uma grande confusão – e ele odiava confusões.
Quase dois anos depois, foi preciso um homem vangloriar-se à pessoa errada para Patrizia passar de “Lady Gucci” a “Vedova Nera” (viúva negra). O homem fizera parte do quarteto que matara Maurizio a pedido da ex-mulher.
Em tribunal, provou-se que Giuseppina “Pina” Auriemma, vidente e confidente de Patrizia, se encarregara de contactar os três homens envolvidos no complô. Aos juízes, Patrizia admitiu ter-lhe pago o equivalente a 238 mil euros, mas negou qualquer ligação ao homicídio. Ela seria, ainda assim, condenada a 29 anos de prisão (a vidente seria sentenciada a 25 anos e o atirador contratado a prisão perpétua).
“Naquela época, estava convencida de que alguém como Maurizio não merecia viver”, diria Patrizia ao diário Il Giornale, pouco depois de sair da prisão de São Vittore, em Milão. E, numa entrevista a um canal de televisão, disse que contratara alguém para matar o ex-marido porque ela própria não via bem o suficiente para a acertar na pontaria. A sua calma num excerto disponível no YouTube impressiona.
A história do patriarca
O escândalo iria naturalmente abalar a família Gucci, mas a marca não sofreu por aí além. Por essa altura, Tom Ford já a relançara, com êxito. O sucesso comercial da sua coleção de inverno 1995, inspirada no Studio 54, foi, aliás, tão grande que o estilista se tornou sócio de Domenico de Sole, então CEO da Gucci.
Em 1999, a marca seria comprada pelo grupo Pinault Printemps-Redoute (atual Kering). Longe iam os tempos em que ela era propriedade de um só homem, Guccio Giovanbattista Giacinto Dario Maria Gucci.
Como denuncia o seu longo nome, Guccio pertencia à aristocracia italiana. A família era brasonada e ainda hoje existe um Palazzo Gucci em San Miniato al Tedesco, uma pequena cidade toscana situada entre Pisa e Florença.
Em San Miniato, os Gucci foram exercendo cargos importantes e recebendo honras variadas, sublinha a sua bisneta Patrizia, no livro Gucci, la Vera Storia di una Dinastia di Successo (Gucci, a verdadeira história de uma dinastia de sucesso), que publicou em 2015. Mas Gabriello Gucci, o pai de Guccio, era um artesão que trabalhava numa fábrica de chapéus em Signa, nas proximidades de Florença, então um centro famoso pelo artesanato em palha. Quanto à sua mãe, apenas se sabe que se chamava Elena Santini e era oriunda de uma terra vizinha, Lastra a Signa.
Nascido a 26 de março de 1881, Guccio tinha 17 anos quando decidiu emigrar para Inglaterra. A fábrica onde o pai trabalhava entrara em crise e ele sonhava com um futuro diferente e melhor para si próprio. “Queria ver o mundo, longe de casa, como muitos rapazes da sua época”, escreve Patrizia, orgulhosa desse antepassado tão curioso e corajoso.
A Florença, na altura muito visitada por estrangeiros, chegavam notícias de como Londres era uma cidade vibrante e umas das capitais mais cobiçadas da boa sociedade europeia e americana. Em 1898, o jovem Guccio embarcou, então, rumo a Inglaterra, sozinho e quase sem dinheiro no bolso.
Uma vez em Londres, seguiu direto ao Hotel Savoy, na altura o hotel mais elegante da cidade. Era um miúdo, mas tinha muito bom ar e vestia-se de um modo sóbrio; a sua única fraqueza seriam os seus coletes um pouco frívolos. Foi logo admitido para trabalhar nos elevadores, que naquele tempo eram uma novidade.
Guccio estava tão encantado com o ambiente que não se importava de ter um emprego cansativo e humilde. E, sempre que tinha um dia ou uma noite livre, aproveitava para estudar inglês, alemão e francês.
Pelo hall do hotel passava gente importante e muitas celebridades. Sem precisar de ser particularmente observador, o rapazinho dos elevadores haveria de reparar na bagagem dos hóspedes, de pele, luxuosa, quase sempre com as iniciais dos seus donos gravadas. Essa iria ser a maior influência quando criou a sua própria marca, iria confidenciar mais tarde.
O nascimento da marca
Ao fim de quatro anos longe da sua Toscânia natal, reza a história na família que Guccio não aguentou as saudades e regressou a Itália. Estaria, também, com vontade de se casar? A verdade é que, logo em 1902, trocou alianças com Aida Cavelli, uma enérgica costureira com quem teria seis filhos.
Em Florença, Guccio começou por trabalhar para uma fabricante de artigos em couro, a Franzi. Só em 1923, aos 42 anos, abriria o seu primeiro ateliê e loja, a pensar nos cavaleiros. Mas, em 1937, já fabricava também malas e mudara-se para uma loja maior, numa rua melhor. E, um ano depois, estava de portas abertas num bairro chique em Roma.
O percurso seria sempre ascendente. Guccio tinha olho para o negócio e para as oportunidades que iam surgindo.
Entre as duas grandes guerras, quando o couro começou a escassear por causa das sanções que a Liga das Nações aplicou à Itália, virou-se também para o vestuário. E da roupa passaria rapidamente para os acessórios. Em 1947, surgiu uma mala com pega de bambu que se tornou icónica, e no início dos anos 1950 já havia mocassins de homem com os dois “G” cruzados.
A década de 1950 seria a década de ouro da Gucci. A marca abriu uma loja em Nova Iorque, como já se viu, e Hollywood apaixonou-se pela marca. De Elizabeth Taylor a Peter Sellers, todos usavam os seus acessórios, a começar pela mala Hobo, vendida como unissexo (e que Jackie Onassis haveria de adotar como sua).
Na década seguinte, seria Grace Kelly a levar à criação de mais um ícone. A atriz-feita-princesa era amiga de Rodolfo Gucci, que tivera algum êxito como ator, antes da Segunda Guerra Mundial; foi ele quem, a seu pedido, desenhou um lenço cheio de flores de cores vivas – hoje conhecido como “Flora”.
Esta e outras histórias não aparecem no filme de Ridley Scott, rodado em parte na Villa Loubenó, no Vale de Aosta, em Itália, que está à venda por 990 mil euros no Idealista. O que deixa espaço para imaginar uma sequela ou, quem sabe, uma outra longa-metragem sobre a saga da família Gucci.