A estrada estende-se, escura, à nossa frente e vamos apressados para um jantar. De repente, uma ave dirige-se em direção ao carro e fica imobilizada no meio do caminho, sem nunca mais se mexer. Travamos a fundo, fazemos sinais de luzes. Em vão. Vale-nos haver aqui passageiros muito bem informados acerca da vida selvagem açoriana: “Isto é um cagarro!”
Ainda não sabíamos, mas o resto da noite haveria de ser animado – rapidamente nos dedicámos a apanhar as indefesas aves marinhas, que nesta altura do ano precisam mesmo de ajuda para não morrerem atropeladas. É por isso que se deve sair do carro para as apanhar, coisa que não é muito complicada de executar.
Há caixas de cartão que se podem recolher nos quartéis dos bombeiros, por exemplo, mas qualquer embalagem, desde que suficientemente arejada, serve para o efeito. Nessa noite, o nosso carro transportou oito cagarros, entregues depois nos bombeiros de São Roque e num contentor de portas abertas estacionado num descampado, à chegada a Madalena. Quando são deixados, deve preencher-se uma ficha de contacto.
Desde 1995, e por iniciativa de um cidadão do Corvo, o Governo dos Açores promove anualmente a Campanha SOS Cagarro, de 1 de outubro a 15 de novembro, para alertar a população açoriana (e visitantes) da necessidade de preservação desta espécie protegida que nidifica essencialmente nas ilhas portuguesas, salvando os cagarros juvenis encontrados, como estes que apanhámos, junto às estradas e nas bermas.
Este é o período que coincide com a saída das aves dos ninhos para o seu primeiro voo oceânico, sem auxílio dos pais. Esses chegaram a terra em fevereiro para construírem os ninhos nas rochas. Entre maio e junho puseram o ovo (só fazem uma postura) que eclodiu lá para julho. Até outubro, as crias estão protegidas pelos cuidados parentais, mas só até ganharem gordura suficiente.
É quando deixam os ninhos, à procura do mar para se estrearem em altos voos, com cerca de três meses, que correm perigo, porque se desorientam e podem ser colhidos por condutores mais distraídos. Nas estradas do Pico, pelo menos, há algumas marcas desses fatais descuidos.
Naquela noite, além da nossa colheita, houve mais 76 salvamentos. E por isso são precisas duas carrinhas dos ajudantes da natureza, do Parque Natural do Pico, para transportar os animais na manhã seguinte para o local escolhido para a sua libertação. Convém que estejam nas caixas o menor número de horas possível, claro.
Pelas 10 da manhã de um dia chuvoso e de mar agitado, a equipa de meia dúzia de vigilantes chega ao porto de São Caetano, aonde as condições marítimas são mais favoráveis a estes salvamentos. O momento tem o seu quê de coreografia e quase podia ser um bailado bem ensaiado.
As caixas são abertas, as aves agarradas pelas asas, os vigilantes sobem a um pequeno muro que os aproxima do mar, dão balanço com o braço e lançam o cagarro para lá da rebentação. A ave bate as asas e voa pela primeira vez na vida. Passados poucos segundos, desaparecem no horizonte. Lá ao longe, podemos ver que alguns aproveitam o embalo das ondas.
“Nas ilhas com praias este momento do salvamento é menos épico”, explica Paulo Freitas, que já anda nisto há 17 anos, sempre na ilha do Pico. Nesses casos, os cagarros – ou pardelas-de-bico-amarelo – são simplesmente largados na areia, pois encontram sozinhos o caminho até ao mar.
A população açoriana está bastante atenta neste período e é costume ver famílias à caça de cagarros na estrada. Não admira: trata-se da maior campanha de sensibilização ambiental das ilhas, com uma forte componente de educação e já dura há quase 30 anos. A sua importância para a espécie é enorme – apesar de também nidificarem na Madeira, nas Canárias e nas ilhas do Mediterrâneo, 75% da população mundial nasce nos Açores.
No final da dança, a vigilante Lídia dedica-se a medir o bico, a asa e a anilar alguns cagarros para que, quando aqui voltarem, daqui a seis ou sete anos, já adultos, possa fazer-se a sua monitorização. “Há pouco tempo, apareceu uma ave numa praia no Brasil com quase 40 anos”, conta Paulo, acrescentando que, depois de libertadas para o mar, a maioria das aves aprende a pescar e encontra o seu caminho rumo a outras paragens mais a sul.
Na campanha do ano passado, e com a ajuda das brigadas diárias que percorrem as ilhas de lés a lés, todas as noites, foram salvos 6427 cagarros, um decréscimo de duas mil unidades em relação a 2019, mas ainda assim um número que dá alento para continuar.