Camisas pretas, bandeiras portuguesas ao vento e um silêncio (quase) absoluto. Foi assim que cerca de três centenas de pessoas – bem menos do que se esperavam – caminharam, esta quinta-feira à tarde, por algumas das principais artérias da capital, ao lado de Rui Fonseca e Castro, no dia em que o agora ex-juiz soube que tinha sido demitido, com efeitos imediatos, com perda de vencimento e reforma, pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM).
Rui Fonseca e Castro tinha regressado à função de juiz em março deste ano, exercendo no Tribunal de Odemira, depois de ter requerido uma licença sem vencimento, durante dez anos, para se dedicar à advocacia. Antes, já tinha cumprido quatro anos como magistrado, sem registo de qualquer problema disciplinar. No início desta pandemia, no entanto, Fonseca e Castro criou um grupo no Facebook a que chamou “Juristas pela Verdade”, que usou para contestar as versões oficiais sobre a pandemia e a sua gestão pelo Governo português. Com o aumento de seguidores, migrou para o canal Habeas Corpus – hoje seguido por mais de 29 mil pessoas –, passando a publicar vídeos a incentivar à violação da lei e das regras sanitárias relativas à Covid-19 e a insultar vários dirigentes e políticos, razões (entre outras) que viriam a justificar a sua expulsão de juiz.
Num vídeo que se tornou viral, por exemplo, chegou a chamar “pedófilo” ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, que, pouco tempo depois, seria verbalmente atacado, com ofensas do mesmo teor, enquanto almoçava, acompanhado pela sua mulher, num restaurante próximo do Parlamento, por pessoas que participavam numa manifestação de negacionistas – um episódio que resultou na abertura de um inquérito pelo Ministério Público.
A caminhada desta quinta-feira começou pouco depois das 12h30, a hora marcada, a partir do Marquês de Pombal. O anúncio da decisão conjunta e unânime do plenário do CSM, sobre os três processos abertos contra Rui Fonseca e Castro – visivelmente apanhando todos de surpresa (pois era expectável que apenas o primeiro processo ficasse, hoje, fechado) –, levou a que os organizadores alterassem o percurso anunciado. “Não vale a pena passar pelo CSM, pois perderíamos muito tempo”, disse, a quem o acompanhava de perto, Fonseca e Castro.
O ex-juiz, que teve sempre ao seu lado a sua mulher, liderou a massa humana que, durante as três horas seguintes, acompanhada de perto por duas dezenas de agentes da PSP, marcou posição em cinco locais diferentes: Procuradoria-Geral da República, embaixada da Austrália, liceu Passos Manuel, Assembleia da República e, por fim, Palácio de S. Bento, residência oficial do primeiro-ministro. Em todos eles, Rui Fonseca e Castro reservou um momento para se dirigir aos presentes, através de discursos breves – partilhados, em direto, através das redes sociais, para milhares de seguidores –, que serviram para confirmar as teorias da conspiração sobre pandemia, vacinas, comunicação social e políticos (como António Costa, Ferro Rodrigues ou Paulo Pedroso) que, no último ano e meio, tem vindo a defender.
Diálogos negacionistas
“Você já abraçou o nosso herói? Eu já fui abraçá-lo”, diz Filomena Santos, residente na Graça, Lisboa, à companheira a quem empresta o braço. Mesmo na casa dos setenta, esta autonomeada “lutadora pela liberdade” manteve-se firme, durante as três horas de caminhada – muitas vezes ascendente –, que decorreu debaixo de um sol de verão tardio. “Estou aqui para estar perto e ouvir o sr. dr. Rui Fonseca e Castro, que é uma das poucas pessoas honestas que existem neste País”.
Entre as três centenas de pessoas (40 das quais vieram de autocarro do norte do País), João Mendes, de Almada, rodeado por cinco pessoas, discorre como esta pandemia “é apenas um plano global para controlar as pessoas”, e vai lamentando o que considera ser “a ignorância das pessoas em Portugal, mal informadas por uma comunicação social corrupta”. “Em Portugal, TVs, jornais e revistas não noticiam as manifestações com milhões de pessoas que acontecem em França ou na Austrália. Parece que somos poucos, mas, na verdade, não somos. Mas é também por isso que os portugueses continuam sem sair à rua”, afirma, desgostoso, no largo à frente do Parlamento.
Soraia Carmo veio de mais longe, da região de Leiria, mas não é por isso que perde o fôlego, mesmo quando sobe a pique a calçada da Estrela. Por quem passa, tenta convencer das suas razões: polícias, jornalistas ou apenas transeunte não escapam às suas explicações. “Leia, leia sobre o óxido de grafeno que está dentro das vacinas [está cientificamente comprovado que as vacinas para a Covid-19 não têm este elemento]. Daqui a uns anos vocês vão todos ver os efeitos das injeções, e depois eu quero ver…”, alerta, ao mesmo tempo que critica, com S. Bento à vista, “a gente burra que não se informa nos sítios certos e que acredita em tudo o que Governo e comunicação social dizem”.
Ao longo da ação, o tema não varia – a pandemia ocupa todos e quaisquer pensamentos. E, quando Rui Fonseca e Castro começa a discursar, é como se todas as opiniões e vozes ali presentes se concentrassem numa única pessoa. A linguagem, essa, já pouco difere da utilizada por líderes populistas, como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, que, durante a crise pandémica, rejeitaram máscara, distanciamento social e vacina, ao mesmo tempo que alimentaram diversas teorias da conspiração sobre a origem do vírus, curas alternativas ou, simplesmente, ataques à reposta dada à doença por governos e instituições de saúde.
Os discursos de Fonseca e Castro denotam, aliás, uma aproximação à retórica do movimento Qanon, nascido nos Estados Unidos, que defende que Trump está a liderar um combate secreto contra uma organização global dominada por pedófilos e canibais, controlada por democratas, celebridades de Hollywood, o milionário George Soros ou Angela Merkel, entre outros. O agora ex-juiz decidiu fazer uma adaptação da ficção à realidade portuguesa.
Abordado pela VISÃO, Fonseca e Castro recusou prestar declarações. Fica-se, assim, sem se perceber se o juiz demitido pensa em recorrer da decisão do CSM para o Supremo Tribunal de Justiça (tem 30 dias para o fazer) ou se, em alternativa, pretende dar um novo rumo à sua carreira. Mas promete: “Prefiro morrer a lutar do que deixar um mundo aos meus filhos em que eles são escravos. Liberdade ou morte”, sentencia, para gáudio dos presentes, que, a cada oportunidade, o abraçam e beijam. O futuro? “Vamos voltar. Isto não pode acabar assim”, grita um indivíduo entre uma multidão que começa a dispersar.