Estamos no laboratório da Crioestaminal, em Cantanhede. Marcelo, um dos técnicos, prepara a adição de um açúcar de alta densidade, substância que vai facilitar a deposição dos glóbulos vermelhos no fundo de uns sacos, nos equipamentos de sedimentação. O propósito final é retirar, por centrifugação, a maior parte deste tipo de células antes do processo de criopreservação, já que os glóbulos vermelhos não são relevantes para o processo, pelo contrário. “O objetivo é ter a amostra final o mais pura possível”, explica à VISÃO Mónica Brito, diretora de operações e administradora da empresa.
Ao mesmo tempo, chegam novas amostras de sangue com células estaminais, prontas para o processo de triagem: descartam-se as agulhas, faz-se a limpeza do saco e pesa-se o mesmo, para se perceber a quantidade de sangue que se recebeu. “Há valores mínimos de volume exigidos para se poder avançar no processo de criopreservação. O que pedimos aos profissionais de saúde é que colham a maior quantidade de sangue possível, já que quanto mais sangue conseguirem retirar, mais células estaminais se vai ter e os pais conseguem ter uma amostra mais concentrada”, esclarece a administradora. É retirada ainda uma pequena amostra de sangue do saco para se fazer um controlo preliminar e conseguir calcular-se a diferença do número de células no início e final do processo, avaliando a sua performance. Também existe, esclarece a bioquímica, um teste de viabilidade, que permite saber, para uma célula em específico, qual a taxa de sobrevivência durante o processo.
A empresa onde nos encontramos, fundada em 2003, realiza a criopreservação de células do sangue e do tecido do cordão umbilical, sendo este banco acreditado pela Associação Americana de Bancos de Sangue para a realização deste processo. É o maior da Península Ibérica e o segundo maior da Europa em termos de capacidade de armazenamento.
Multiplicar as células do cordão umbilical em laboratório
Até agora, cerca de 70 mil famílias portuguesas optaram por guardar as células dos seus bebés neste laboratório. O processamento do sangue, que dá origem às células estaminais criopreservadas, inclui um segundo tratamento para determinadas amostras: quando se percebe que o rendimento não foi suficiente, é possível realizar-se um segundo processamento e recuperar-se o remanescente de células. No final da amostra, existem dois sacos, um mais concentrado do que o outro, ou seja, os pais ficam com acesso a mais células estaminais. Mas se, à partida, uma amostra não for viável por não ter muitas células vivas, já não será guardada para utilização clínica.
Existem bancos em certos países que guardam as células estaminais por um tempo indeterminado, mas neste laboratório a criopreservação é realizada durante 25 anos, sendo que as células ficam disponíveis para utilização imediata após serem criopreservadas. Uma vez que o processo é estável e as amostras encontram-se nos recipientes a temperaturas de cerca de 190 graus negativos, existe a possibilidade de estas células continuarem a ser viáveis por mais tempo. Contudo, como ainda não existem evidências concretas que suportem essa teoria, o laboratório optou por este período de armazenamento.
Durante o tempo de criopreservação, as amostras que são doadas para investigações e procedimentos de controlo de qualidade vão sendo descongeladas todos os meses, com tempos diferentes de criopreservação. Até agora, foram descongeladas amostras com 12 anos e, após o descongelamento, percebe-se que as células estaminais mantêm uma viabilidade de 95 por cento.
Ao fim de vários anos da realização de um ensaio clínico, que está agora na sua fase final, conseguiu chegar-se a uma forma para, em laboratório, multiplicar uma amostra de células de sangue do cordão umbilical para um volume muito superior de células, que têm capacidade proliferativa. “É como pegar em 500 mil células e criar 5 milhões delas. Até agora, ainda não tinha sido possível fazer isto em laboratório de forma controlada. Neste momento, estamos muito perto disso”, refere Mónica Brito.
“Qualquer uma destas amostras pode vir a salvar uma vida”
Até agora, foram libertadas amostras de células estaminais criopreservadas para a realização de 18 tratamentos, 10 dos quais em crianças portuguesas. Existe um recipiente próprio, em azoto, que transporta as células para o local de tratamento, e o processo acontece apenas na data em que o hospital ou clínica vai realizá-lo. “Tem de haver uma coordenação muito forte entre todas as entidades”, diz a administradora. O descongelamento das células, que tem de acontecer rapidamente, é feito apenas quando o doente já está preparado para receber o tratamento.
Na sala ao lado de onde nos encontramos, preparam-se as amostras que chegam com tecido de cordão umbilical, que foi limpo previamente e que, por isso, já está branco no momento do seu processamento. Vários instrumentos cirúrgicos são utilizados para abrir o cordão e retirar os vasos sanguíneos. As células mesenquimais situam-se à volta dos vasos sanguíneos, no interior do cordão. Através da maceração, tritura-se em pedaços muito pequenos essa parte do cordão, até se tornar uma geleia, que é guardada em vários tubos e criopreservada tal como as células do sangue.
O controlo de qualidade deste tecido permite perceber, em 30 dias, se vai haver células estaminais viáveis ou não. Este processo é mais complexo do que o que envolve o sangue do cordão umbilical, sendo que cerca de 10% das amostras não resistem a estes processos. “Aqui, tentamos sempre passar a mensagem aos nossos profissionais de que qualquer uma destas amostras pode vir a salvar uma vida. Se tivermos isto em mente, damos sempre o nosso melhor”, refere ainda Mónica Brito.
Passamos para uma zona bem mais fresca, que inclui o laboratório de processamento e o banco, onde as células estaminais ficam, por fim, criopreservadas. Há um vidro apenas a separar-nos da zona onde estão os recipientes que vão receber as amostras. Nos seus topos, onde estão as sondas, a temperatura está a cerca de 180 graus negativos; nos fundos, local de repouso das amostras, a 196 graus negativos. As amostras vão arrefecendo gradualmente, cerca de 10 graus por minuto, depois de haver uma programação de controlo da temperatura.
“São células que vão para o lixo todos os dias”
O processo de criopreservação das células estaminais é utilizado no tratamento de mais de 80 doenças convencionais. Relativamente a terapias que ainda estão em fase de ensaios clínicos, este número é ainda maior. “No conjunto dos bancos familiares e público, hoje em dia, guardamos cerca de 10% das amostras de tecido e sangue dos partos que ocorrem no País. São células que vão para o lixo todos os dias, e isso é um desperdício quer para as famílias quer para outras pessoas que precisem, mas também para os projetos de investigação”, diz Mónica Brito.
As famílias que não pretendem guardar as células estaminais dos seus bebés podem doá-las e, consoante as características das amostras, são direcionadas para determinados projetos científicos. “Já libertámos amostras em parceria com o IPO de Lisboa, a pensar nos doentes que recebem um transplante de medula óssea de um dador que possa não ser 100% compatível, o que aumenta o risco de desenvolver a Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro”, explica.
Este fenómeno acontece na sequência de um transplante que não é 100% bem sucedido e em que as células que foram transplantadas no doente desenvolvem o seu próprio sistema imunitário, agindo contra as células do organismo recetor. “As células mesenquimais do tecido do cordão umbilical têm uma caraterística espetacular, porque regulam o sistema imunitário de forma a que ele não seja tão agressivo. Podem ser utilizadas em conjunto com o transplante de medula óssea para minimizar os seus efeitos adversos”, esclarece a bioquímica.
O caso de Henrique e o potencial destas células em doenças como o autismo
A primeira libertação de amostra que este laboratório fez para um tratamento foi entre irmãos: uma das crianças nasceu com um problema hereditário e o seu próprio sangue do cordão umbilical, embora também tivesse sido guardado, não permitia corrigir o defeito porque já existia nas células à nascença. Como tinha um irmão compatível, foram as suas células que lhe salvaram a vida.
Já em 2019, foi libertada uma amostra de sangue do cordão umbilical de Henrique, um bebé a quem foi diagnosticada anemia aplástica após o nascimento, doença que pode levar a um tumor do sangue. Estas células foram libertadas para o IPO de Lisboa, onde o tratamento foi feito, eliminando totalmente o risco de haver uma rejeição.
Entre os irmãos, filhos da mesma mãe e pai, existe uma probabilidade de 25% de as células estaminais serem 100% compatíveis. “Mas como são células mais imaturas, mesmo que a compatibilidade não seja 100%, os riscos de tratamento não são tão grandes como quando se fala em tratamentos com medula óssea”, refere Mónica Brito.
Tanto o sangue como o tecido do cordão umbilical têm vindo a ser cada vez mais utilizados no estudo de doenças do foro neurológico, pelo facto de estas células poderem proliferar e dar origem a novas células, mas também pelo efeito indireto que estas células têm, porque não só modulam a resposta neurolológica como permitem que os tecidos lesados tenham um ambiente mais favorável e possam recuperar.
Além disso, e apesar de ainda não se saber qual o seu mecanismo de ação, estas células têm sido estudadas em doenças como o autismo e a paralisia cerebral. Isto porque nos transtornos do espectro autista há um processo inflamatório desencadeado em determinadas regiões do cérebro e prevê-se que as células estaminais possam ter um efeito indireto na regulação da resposta imunológica ao nível do cérebro. “Ao reduzir essa reação exacerbada do sistema imunológico, favorece-se a recuperação”, explica a investigadora, acrescentando que se tem observado em estudos que há uma faixa etária ótima para que a infusão com as próprias células do cordão umbilical seja feita e, depois disso, a comunicação das crianças seja melhorada.
Na paralisia cerebal, o que tem sido testemunhado com a utilização destas células é uma melhoria na função motora. “Isto pode ser determinante e fundamental na vida destas famílias, porque se a criança começar a ter uma maior mobilidade e autonomia, mesmo que seja apenas na alimentação, já é um avanço enorme”, diz Mónica Brito. “Se as células estão disponíveis, não há porque não utilizá-las”, remata.
Muitas investigações em curso
A primeira coisa que salta à vista quando se entra no primeiro compartimento à esquerda do laboratório são os retratos de Marie Curie, Rosalind Franklin, Virginia Apgar, Carolina Beatriz Ângelo, Elizabeth Helen Blackburn e Françoise Barré-Sinoussi, cujos nomes representam cada sala do compartimento: estamos na unidade onde são desenvolvidos os projetos de investigação, por uma equipa “constituída maioritariamente por mulheres”.
Na unidade de investigações, que são realizadas em parceria com universidades e grupos de investigação, o foco tem sido os estudos relacionados com doenças cardiovasculares e diabetes. Existem também dois projetos autorizados para ensaios clínicos, um deles na área do acidente vascular cerebral (AVC), que envolve pessoas com alguma idade que não têm as células do cordão umbilical preservadas. Tem sido feita a colheita da medula óssea dos doentes, na fase aguda do AVC, e, com um equipamento próprio, tem-se realizado na própria unidade a separação e isolamento de umas células muito particulares das amostras, que são purificadas e reinfundidas depois nos doentes. Estas células, que são direcionadas para o local da lesão, têm o propósito de regular o processo inflamatório que se gera naturalmente e possibilitar a regeneração dos tecidos e da vascularização.
Outro dos projetos pretende desenvolver uma metodologia para produzir em larga escala células mesenquimais a partir do tecido do cordão umbilical: uma amostra de tecido de cordão umbilical pode ser multiplicada e produzir várias doses, com potencial para tratar vários doentes, principalmente no que diz respeito a doenças autoimunes como a esclerose múltipla e lúpus.
Um terceiro projeto, que está a ser desenvolvido em conjunto com o hospital pediátrico de Coimbra, tem o objetivo de infundir recém-nascidos com complicações na altura do parto, que lhes reduziu os valores de oxigénio que deviam chegar ao cérebro. O objetivo é recolher o sangue do cordão umbilical e fazer o processo de separação das células estaminais mas sem realizar a criopreservação, ou seja, fazer a reinfundição imediatamente na criança. Os estudos têm concluído que estes bebés acabam por não desenvolver paralisia cerebal ou, pelo menos, de uma forma tão grave.