“As palavras ‘não tem batimento, tens de decidir que opção tomar’ pareciam-me noutro idioma, tentei pedir para repetir e ainda com a roupa no fundo das pernas já me estava a ser marcada uma curetagem cirúrgica”. Estas palavras são de Inês Cristóvão Silva, que, aos 28 anos, sofreu um aborto espontâneo. As memórias do momento em que soube que a sua gravidez não iria progredir não são claras, mas Inês lembra-se de se sentir muito pequena, como se a sala onde estava fosse tão grande e barulhenta que a pudesse engolir. “Foi tudo rápido e frio, parecia irreal”, conta. Aconselhada por “amigas da área”, acabou por decidir não realizar a cirurgia e optou por recorrer a medicação para expulsar o embrião. Inês estava grávida de oito semanas.
Cerca de 80% dos abortos espontâneos ocorrem antes das 12 semanas de gravidez e mais de metade destes casos estão associados a anomalias cromossómicas ou genéticas do embrião, como trissomias, por exemplo. “Outras causas conhecidas de aborto espontâneo são doenças maternas quando não existe um controlo adequado, tal como diabetes mellitus ou doenças da tiroide, tabagismo e consumo de álcool ou drogas, distúrbios da coagulação maternos hereditários ou adquiridos, disfunções hormonais ou anomalias anatómicas do útero”, explica à VISÃO Osvaldo Moutinho, médico obstetra e Diretor do Serviço de Ginecologia-Obstetrícia do Centro Hospitalar de Trás-Os-Montes e Alto Douro.
Os fatores de risco mais relevantes para a ocorrência de abortos são a idade materna – o risco aumenta progressivamente à medida que a idade da mãe avança, apesar de poder acontecer em qualquer idade – e a existência de antecedentes de aborto, já que o risco de novo aborto após um anterior pode rondar os 20 por cento. Segundo o mesmo especialista, a partir de três ou mais abortos estabelece-se o diagnóstico de abortos recorrentes, segundo a maioria das sociedades internacionais, embora haja algumas entidades que definam esta situação após a ocorrência de dois.
Após este diagnóstico, caso a mulher manifeste essa vontade, realiza-se um estudo clínico e laboratorial de condições médicas que estão relacionadas com a ocorrência de abortos, como a existência de malformações uterinas ou trombofilias – que alteram o processo da coagulação sanguínea e interferem na implantação da placenta. “Pode ser também pedido o estudo genético do produto do último aborto, no sentido de perceber se há alguma alteração genética que possa ter origem nalgum dos progenitores”, acrescenta Osvaldo Moutinho.
Frustração e fracasso
“As consequências emocionais dos abortos espontâneos são sérias e profundas”, começa por dizer Andrea Moniz, psicóloga e diretora do Centro de Psicologia Dra. Andrea Moniz, em Cascais. “Há um sentimento de frustração e fracasso que, dependendo dos casais, pode ser mais ou menos duradouro. Há casais que reagem querendo logo que possível engravidar novamente e outros em que isso leva mais tempo, porque têm receio de voltar a passar pela situação”, acrescenta.
Para Inês Silva, foi importante fazer, primeiro, o luto do bebé que perdeu antes de pensar numa nova gravidez. “Sinto que muitas vezes pensa-se em tentar novamente cedo demais, por imposição da sociedade que está completamente incapacitada para lidar com este assunto, ou até para tentar aliviar a dor ocupando a cabeça com um novo sonho. Para nós, isto não fazia sentido, nada nem ninguém vai ocupar o lugar do nosso bebé”, afirma. Inês acredita que, depois de meses de um processo de cura e crescimento, o casal tem-se preparado cada vez melhor para encarar uma nova gravidez.
Os homens também sofrem
Em março deste ano, a deputada não inscrita Cristina Rodrigues entregou ao Parlamento um projeto-lei que propõe o direito a três dias consecutivos de luto, sem qualquer perda de remuneração, para a mãe e para o pai. Esta proposta não pretende anular o direito a uma licença que existe atualmente, mas sim complementá-lo.
“Aquilo que existe atualmente é um direito a baixa, portanto, tem uma componente, acima de tudo, fisiológica e não emocional, para recuperação da perda”, diz à VISÃO a deputada. “O que defendo é que legalmente deve ser reconhecido o direito ao luto, que em nada se confunde com o direito a ter baixa médica, que não necessita de qualquer intervenção de terceiro para ser concedido, e que abrange qualquer das pessoas que sofreu a perda, seja a mãe, pai ou beneficiários da gravidez de substituição”, acrescenta. Cristina Rodrigues defende que este período de luto é importante “não só porque a perda não é só sentida pela mãe mas também porque é um momento em que muitas vezes as famílias precisam de apoio mútuo, e, muitas vezes, quem está de fora não percebe o que estão a passar”.
“Acho que os pais sabem que a dor deles não se sente no corpo como a nossa, então assumem a responsabilidade de não nos deixarem afogar, mas não deixa de ser uma dor enorme, pesada, feia e injusta”, diz Inês Cristóvão Silva, que defende a aprovação do projeto-lei apresentado por Cristina Rodrigues. “Somos ambos pais, a partir do momento em que vemos a risquinha no teste. Qualquer pai deveria ter tempo para interiorizar uma perda de um filho, seja de que tipo for”, diz.
De acordo com a psicóloga Andrea Moniz, a procura de terapia nestes casos é em casal, uma abordagem que resulta muito bem. “Os homens acompanham a ansiedade das mulheres, mas obviamente não a vivem de forma tão intensa quanto elas”, acrescenta.
Estima-se que cerca de 25% a 30% de todas as fecundações se percam numa fase em que ainda não foi detetada a gravidez e que entre 10% e 15% das gravidezes identificadas terminem num aborto espontâneo. “Esta taxa tem-se mantido mais ou menos constante ao longo dos anos, mas, como atualmente dispomos de mais meios, principalmente de ecografias mais precoces, cada vez mais cedo são detetadas as gravidezes, assim como maior é o número de abortos que se vão registando do que há décadas”, explica Osvaldo Moutinho.
Apesar de os abortos espontâneos acontecerem a tantas mulheres, ainda não se fala quase nada sobre este tema. “Descobri que aborto é um assunto de que as pessoas não querem falar porque lhes é demasiado desconfortável, e isso pesa, na grande maioria dos casos, mais do que a dor de quem perdeu”, diz Inês Cristóvão Silva. “Não há espaço para nós. Há demasiadas coisas que me disseram que nunca se devem dizer (…) mas o que me marcou mais foi o imporem-me aquilo que a sociedade encara como força neste assunto: ‘tu és forte, vais ficar bem rapidamente’, quando a mensagem devia ser ‘tu és forte, vais conseguir encarar isto no teu tempo, da forma que precisares'”, acrescenta.
Cristina Rodrigues concorda. “É definitivamente um assunto tabu e principalmente muito desvalorizado, especialmente se se tratar de uma perda gestacional que ocorre no primeiro trimestre”, afirma, referindo que a perda gestacional, independentemente do momento em que ocorre, pode representar uma interrupção repentina de um projeto de vida. “Acredito, por isso, que é muito importante o reconhecimento desta perda e o respeito pelos impactos emocionais que tem para os envolvidos”, defende.
De acordo com a psicóloga Andrea Moniz, este assunto não é falado porque é negativo e visto como um grande fracasso pela parte do casal. “Num mundo onde se vive a partilhar sucessos nas redes sociais, um aborto não desejado é a última coisa de que se vai falar”, refere. Muitas vezes, a mulher ou o casal não partilham com ninguém este acontecimento e vivem a dor de forma muito solitária e é por isso, também, que é importante falar sobre este tema: para que as mães e pais não se sintam sós e saibam que muitos outros passam por isso.
“É importante dizer que tive pessoas maravilhosas comigo, que me deram o meu espaço mas diariamente mostravam que estavam ali de formas subtis”, diz Inês Silva. A mais bonita, conta, veio de uma amiga cuja família fala de aborto sem tabus: contou-lhe que a sua mãe perdeu duas gémeas e que e ainda hoje rezam por elas. “Disse-me o que eu precisava saber: é possível dar um lugar a estes bebés na nossa família, encarando com naturalidade e respeito”, acrescenta.
Um longo caminho por percorrer
“Ainda falta fazer muita coisa”, afirma Cristina Rodrigues. Muitas mulheres que passam por abortos espontâneos queixam-se de não haver uma distinção do espaço entre as mães que vão ou acabaram de dar à luz e as mulheres que perderam o seu filho. “Esta situação não protege nem respeita estas mulheres, sendo desejável que estes casos fossem tratados em alas ou pelo menos quartos separados”, refere a deputada.
Algumas mulheres relatam, também, experiências no processo de aborto em que se sentem pouco apoiadas e compreendidas pelos profissionais de saúde relativamente à sua dor, além de sentirem demasiada frieza e insensibilidade ao longo de todo o processo.
O apoio psicológico disponibilizado às mulheres e homens nestas alturas, para os ajudar a lidar com a perda, é outra questão importante. “Infelizmente, sabemos que o Serviço Nacional de Saúde não possui respostas suficientes ao nível do acesso a cuidados de saúde mental”, diz Cristina Rodrigues.
A Associação Projecto Artémis tem denunciado que nem sempre é disponibilizado este apoio aos casais e que, quando acontece, é, geralmente, disponibilizado em casos de perda no terceiro trimestre de gravidez. Mesmo nestes casos, demora bastante tempo a iniciar-se o acompanhamento. Os pais são obrigados a recorrer a ajuda psicológica no privado, o que não é financeiramente viável para todos os casais. “O Serviço Nacional de Saúde deve ser reforçado para garantir o acesso destes pais a apoio psicológico. E, sendo certo que o tempo que os casais precisarão deste apoio depende das suas necessidades específicas, entendemos que a primeira consulta deve ocorrer num curto espaço de tempo, garantindo que os pais iniciam este acompanhamento logo após a perda”, acrescenta a deputada.
“A nível psicológico, as mulheres podem sentir-se muito receosas em tentar uma seguinte gravidez e ter sintomas de ansiedade”, acrescenta Osvaldo Moutinho, referindo que, em casos mais graves, e sobretudo quando se trata de abortos de repetição, as mulheres podem mesmo “apresentar quadros de depressão que devem ser valorizados”, devendo, por isso, ser oferecido apoio psicológico ou psiquiátrico.
Sobre estas matérias, Cristina Rodrigues apresentou também um projeto-resolução que foi aprovado por unanimidade, aguardando agora, “com expectativa que o Governo lhe dê execução”.
“Falem sobre isto, contem aos vossos círculos”, apela, ainda, Inês Silva a todas as mulheres que passam por abortos espontâneos e não partilham a dor. “A cura pessoal e social deste assunto começa no diálogo sobre o aborto. Normalizar este assunto, para que nenhuma mulher tenha vergonha e sofra sozinha no momento em que deveria ser mais acarinhada e abraçada. E quem não conseguir, pode procurar esse conforto nas redes sociais, há algumas páginas que são lugares seguros de partilha”, remata.
Pode saber mais sobre a história de Inês Silva aqui.