Helena Trigueiro vive atualmente em Bruxelas, mas foi quando ainda estava em Portugal que testou positivo à Covid-19, no final de agosto de 2020. Sim, 2020. Um ano depois, ainda lida com as sequelas que a doença deixou. Os médicos e cientistas referem-se a este problema como Long Covid ou Síndrome pós-Covid-19 e apontam que um mínimo de 80 mil doentes venha a sofrer com estes efeitos em Portugal, com base em estudos internacionais que afirmam que 10% dos doentes que tiveram Covid podem ter sequelas e manter sintomas a longo prazo.
A história desta jovem de 26 anos, e saudável antes da infeção, alerta para o pouco que se sabe sobre o quão e por quanto tempo podemos ser afetados pelo vírus Sars-CoV-2. Durante as duas primeiras semanas, tempo que esteve em isolamento, teve os sintomas normais, febre, desconforto muscular, falta de apetite e ausência de olfato e paladar.
“Durante a infeção não fui um caso grave, eu mesma fazia a monitorização dos níveis de oxigénio e estava tudo bem, por isso era só a questão da febre e do desconforto muscular. Mas quando testei negativo pensei: agora é mais ou menos uma semana de recuperação e à partida volto ao normal, só que tal não aconteceu” contou Helena à VISÃO.
Nos primeiros dois/três meses teve grandes dificuldades em fazer qualquer tipo de atividade física devido às intensas dores musculares e às dificuldades respiratórias. “Acordava sempre com muitas dores musculares, como se tivesse estado a noite inteira a treinar, principalmente as pernas. E, por outro lado, havia a parte respiratória que não estava bem, eu notava que não era só falta de resistência física, quando tinha de subir escadas, um piso, por exemplo, ou fazer o mínimo esforço sentia muitas dificuldades a nível respiratório”, acrescentou. Ir ao supermercado também se tornou um problema muito grande, não só pela “violência” das deslocações e o simples carregar dos sacos de compras, como pelo medo de uma reinfeção.
Depois de um exame aos pulmões, que não revelou qualquer problema de saúde e à medida que aceitou e se habituou a viver com os sintomas, que por vezes pareciam ter leves melhoras, três meses depois de ser infetada começou a ter sintomas cognitivos que afetaram a memória a curto prazo e a capacidade de concentração.
Névoa do cérebro ou Brain Fog
O brain fog é um termo utilizado pelos cientistas e está presente na lista de sintomas da Long Covid. Caracteriza-se por um raciocínio mais lento, confuso e menos intuitivo, o que coincide exatamente com o que Helena descreveu. “Claro que é normal as pessoas irem a uma divisão da casa e não saberem o que lá iam fazer, mas aqui não estamos a falar disso, estamos a falar de eu ter uma conversa e passada meia hora não me lembrar ou estar a fazer um trabalho e não ter qualquer memória de o ter feito e ter de rever e-mails e chamadas para perceber de facto o que aconteceu”.
Quase diariamente estes episódios se repetiam e Helena viu tanto o contexto pessoal como profissional ser afetado. Enquanto nutricionista, que dá consultas em mais do que uma língua, tornou-se complicado gerir a rotina de trabalho, a agenda não podia estar tão ocupada e o horário de trabalho era menor. Tinha dificuldade em focar-se numa ideia, de transmitir uma ideia, comunicar e terminar um raciocínio que fosse mais exigente. “Sentia o meu vocabulário muito reduzido, parecia que as palavras me fugiam. Aquele brain fog que os cientistas têm falado era uma realidade e, portanto, eu às vezes tinha muita dificuldade durante reuniões ou consultas, porque as palavras me fugiam e parecia que eu não sabia falar”.
A fadiga que sentia durante o dia obrigava-a a recorrer a pequenas sestas e o trabalho era afetado pela dificuldade de concentração. “Acontecia muitas vezes ter necessidade de mudar, constantemente, num curto espaço de tempo, de tarefa, porque não me conseguia concentrar ou não conseguia formar frases mais complexas e se havia dias que isso estava mais ou menos controlado, havia outros que quase chegava a ser ridículo para mim”.
Segundo a OMS, as manifestações conhecidas de condições pós-Covid incluem uma gama de sintomas físicos preocupantes, como fadiga severa e aumento do risco de danos ao coração, pulmões e cérebro. Os dados indicam que cerca de um quarto das pessoas com Covid-19 sofre de sintomas 4–5 semanas após o teste ser positivo e cerca de 1 em cada 10 apresenta sintomas após 12 semanas ou mais.
A ansiedade provocada pela incapacidade de se reconhecer, transformava-se em revolta e incompreensão, tanto da parte dela, que não sabia quanto tempo ia ficar assim, tanto da parte dos outros que tinham dificuldade em compreender algo tão abstrato. “Sentimo-nos um bocadinho inúteis porque mesmo nas atividades de lazer não conseguimos ter o nível de energia que a nossa família, amigos, namorado esperam e nas questões profissionais, eu senti-me muito revoltada porque não conseguia corresponder ao nível a que estava habituada e já tinha passado tanto tempo, não era um ou dois, tinham passado oito meses ou mais e então acabava por ser muito frustrante a relação com os efeitos”.
Helena passou a depender de agendas e lembretes para tudo, desde o mais básico como tomar banho, até trabalhar ou estudar. Percebeu que havia partes inteiras do dia que não se lembrava, mesmo atividades que exigiam uma grande interação da sua parte e que repetia as mesmas ideias ou conversas. “Acabei por perder um pouco a confiança na minha memória, não me sentia tranquila em relação a nada do que fizesse. Acho que a situação mais caricata acabou por ser no meu aniversário deste ano, em abril, já tinha passado bastante tempo desde setembro de 2020 e houve pessoas que me ligaram e eu não pude atender, então acabei por devolver a chamada mais do que uma vez, porque não me lembrava que já tinha falado com elas e é desconfortável explicar as pessoas o porquê disto me acontecer”.
Numa fase inicial, Helena não se apercebia do que estava a acontecer. Na realidade, só quando começou a sentir melhorias é que se foi apercebendo da gravidade da situação. “Só aí comecei a perceber: ah ok não me tornei numa pessoa menos competente, mas agora já me estou a reconhecer, comportar e fazer as coisas como fazia antigamente”. Chegou até a acontecer-lhe não se lembrar de locais onde tinha ido “ás vezes ia jantar a algum sítio e não tinha memória disso no dia seguinte, isso era bastante comum”.
O facto de perceber que não era a única no mundo a enfrentar esta situação deu-lhe algum alento e segurança. Aceitou que o tempo fosse passando e aproveitou para descansar. A importância dos artigos científicos que iam saindo foi crucial no processo de aceitação, fazendo a jovem acreditar que afinal havia um motivo plausível para o que se estava a passar com ela.
Agora já vacinada e com as sequelas a darem tréguas, Helena quer dedicar mais tempo à recuperação, depois de um período em que desvalorizou os sintomas. “Estava perdida e não sabia bem o que fazer, só no último mês é que comecei a ter um bocado mais de perceção. Como escrevi no Twitter, já consigo, por exemplo, correr três lanços de escadas. Foi uma vitória, porque embora já tenha energia para fazer o dia a dia e chegar relativamente bem ao fim do dia, a recuperação ainda está a ser difícil do ponto de vista físico e é algo que vou começar agora a investir e a procurar ajuda para voltar aos meus níveis de atividade normais, porque ainda não está de todo reposto”.
Na conta pessoal do Twitter, Helena quis despertar a atenção quanto à forma leviana com que algumas pessoas encaram a doença e, enquanto sobrevivente, mostra-se revoltada pela desvalorização do valor da vida.