Faltavam poucos minutos para as 10 da noite de 24 de abril de 1974 quando Otelo Saraiva de Carvalho, um major de 37 anos, chegou ao quartel do Regimento de Engenharia 1, na Pontinha. Ali iria funcionar o Posto de Comando da operação que nessa noite deveria acabar com o regime. Não fosse o seu temperamento impetuoso e teria todas as razões para ir apreensivo. Nunca tinha, obviamente, comandado uma missão com a dimensão da que ia seguir-se. E, se é verdade que o plano de operações saira da sua mão, dificimente poderia considerar-se um plano muito amadurecido: só o ultimara há dez dias.
Entrou à civil. Vinha direto do Jornal do Comércio, no Camões, onde procurara o capitão António Ramos, ajudante de campo de Spínola, a quem fizera chegar um recado: “A operação vai começar agora. Está aqui o plano de operações que mandei distribuir. Entrega-o ao general.”
A Pontinha tinha-lhe sido sugerida por um oficial de lá, Ferreira de Macedo, e por Fisher Lopes Pires, que fora o segundo-comandante. As vantagens eram várias: tratava-se de uma unidade periférica e, sobretudo, podiam contar que o comandante, Lopes da Conceição, embora não fosse do Movimento dos Oficiais das Forças Armadas, não oporia resistência. Assim, ao final da tarde, depois da saída do pessoal, Ferreira de Macedo pôde fazer o black out, o que aqui significa ter tapado as janelas com cobertores. E Garcia dos Santos montara o sistema de comunicações.
Otelo foi a uma sala fardar-se antes de entrar no Posto de Comando, onde, essa noite, teria consigo Garcia dos Santos, Fisher Lopes Pires, Hugo dos Santos, Sanches Osório e Vítor Crespo. E tinha à sua espera a primeira má notícia: a Amadora, afinal, não aderira, ou “borregara”, para usar a gíria militar. Logo aquela unidade, que iria a Caxias libertar os presos políticos.
“Receávamos que o regime exercesse alguma represália sobre os presos”, conta Otelo. Nessa noite só “borregou” à última hora outra unidade, da região de Castelo Branco. Mas o seu desapontamento maior foi com os comandos, liderados por Jaime Neves. Dos dez grupos que estavam previstos, conta, “só dois cumpriram as missões”: o que ocupou o Rádio Clube Português e o que prendeu Rafael Saraiva, do Regimento de Cavalaria 7, na Ajuda. Esta unidade constituía o maior receio de Otelo: “Era a mais poderosa em meios. Tínhamos de prender cinco oficiais superiores ou era previsível um confronto.” Deviam ser detidos de madrugada, à saída de casa para a unidade. Otelo até lhes destinara uma sala na Pontinha, onde ficariam sob prisão. Mas dos cinco, só Rafael Saraiva apareceu, entregue por um grupo de comandos.
“Quanto ao resto, tudo correu mais ou menos como eu esperava”, reconhece hoje Otelo. Em linhas muito gerais, imaginara o seu plano assim: os quartéis-generais de Lisboa e Porto eram os objetivos prioritários; seguiam-se os órgãos de comunicação social (Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Renascença e RTP), a ocupação do Aeroporto da Portela e o encerramento das fronteiras: “Era preciso evitar quer a entrada de forças pedidas a Franco quer a saída do peixe graúdo.” Outro pressuposto era garantir que a Força Aérea, pelo menos, não interviria.
A operação teria de ser desencadeada durante a noite, não só porque as estradas estariam sem trânsito, mas também porque os aviões não poderiam voar: “Sabíamos lá se nos aparecia alguma força de paraquedistas enviada de Espanha!” Assim, o arranque das tropas das unidades foi marcado para as 3 da manhã.
Otelo certificou-se pessoalmente de que a potência dos Emissores Associados de Lisboa chegava a Santarém. Salgueiro Maia, que comandaria a coluna da Escola Prática de Cavalaria (EPC), saída daquela cidade, pôde assim captar a primeira senha do Movimento. Eram 22 e 55 quando ouviu Paulo de Carvalho em E depois do Adeus. Tinha de começar imediatamente a reunir homens e viaturas para que, às 3 horas, pudessem arrancar. Corresse tudo bem e, às 5, estariam no Terreiro do Paço.
À procura de ‘uma isca’
O plano de operações só fora ultimado por Otelo a 15 de abril, num apartamento em Oeiras. Mas por essa altura já ele tinha adquirido uma experiência que lhe permitira tirar conclusões. Talvez a mais importante fosse a de que, naquela noite, ali na Pontinha, se jogava o tudo ou nada: o Movimento não sobreviveria a um segundo abanão ao Governo, depois do fracassado golpe de 16 de março uma ação precipitada, para tentar evitar a exoneração dos dois principais responsáveis das Forças Armadas, os generais Costa Gomes e António de Spínola.
A causa mais direta fora um livro, Portugal e o Futuro, publicado por Spínola em 22 de fevereiro de 1974, onde o vice-chefe de Estado Maior das Forças Armadas punha em causa a política colonial do Governo, defendendo que a solução para a guerra não era militar. Outra afronta: o número um das FA, Costa Gomes, dera-lhe luz verde, com “um despacho elogioso”.
E, no entanto, o livro estivera para não sair. Uma noite, parara Otelo no semáforo de um cruzamento próximo da Avenidade da Liberdade, em Lisboa, quando viu um vulto no carro ao lado baixar o vidro e dirigir-se a ele: era Spínola. Cumprimentou-o e perguntou-lhe pelo tal livro que, ao que constava, o general andaria a preparar.
“O Marcelo não me deixa publicar. Diz que se demite.” Otelo responde que ainda bem. “É isso mesmo que nós pretendemos. E nem acredito que Américo Tomás aceitasse a demissão.” Sugere a Spínola que avance, pois pode contar com o apoio do Movimento. Recebe de volta uma frase grandiloquente: “Não serei um general que colabore em qualquer ação que leve ao derrube deste Governo.” Enfim, não contassem com ele como conspirador.
E o semáforo ficou verde.
Publicado o livro, Marcelo terá ido, de facto, apresentar a demissão a Tomás, que a recusou. E o regime engendrou uma resposta rápida: convocou para a Assembleia Nacional uma cerimónia, com todas as chefias militares, para apoio à política do Governo em África. A iniciativa, que ficaria conhecida pela Brigada do Reumático, foi marcada para 14 de março. O ajudante de campo de Spínola, António Ramos, procurou então Otelo, a dizer que era preciso evitar a todo o custo a cerimónia, porque se destinava à exoneração de Costa Gomes e de Spínola que, obviamente, não iam comparecer. E trazia-lhe uma proposta: “Vocês podiam vestir a farda número 1 com as condecorações e irem para o pé da Assembleia Nacional protestar.” Otelo achava um absurdo: “Isso significaria o fim do Movimento, pois seríamos todos presos. E o Movimento não morre se eles forem exonerados.” Otelo contou então a conversa a Casanova Ferreira, acabado de chegar da Guiné, que concordava que era preciso tentar tudo para evitar a exoneração. As propostas iam de absurdo em absurdo. Alguém propunha que se lançasse uma bomba de 250 quilos em cima da Assembleia Nacional. O futuro estratego do 25 de Abril dispôs-se então a ir às Escolas Práticas, auscultar as sensibilidades para uma ação súbita. Concluiu que “os jovens militares estavam entusiasmadíssimos”. Mas começou também a encontrar resistências. Por exemplo, Santarém achava a operação sem consistência e não alinharia. Por volta das 18 horas de dia 13, Otelo desconvocou o golpe. A 14 de março a Brigada do Reumático cumpriu o ritual e, no dia seguinte, Costa Gomes e Spínola eram exonerados.
Assim, na madrugada de 16 de março, a unidade das Caldas da Rainha, por sua decisão, saia sozinha para rua. Ainda esteve para ser secundada por Lamego, que desistiu. Otelo procurou então Vítor Alves: do triunvirato que o Movimento elegera em Óbidos, como direção permanente da Comissão Coordenadora, só restavam eles os dois. O terceiro elemento, Vasco Lourenço, fora transferido para os Açores.
Era uma baixa que Otelo tentara evitar, sugerindo que o sequestrassem. Lourenço seria colocado 24 horas num apartamento vazio em Miraflores, alimentado por umas sanduíches que Otelo e Diniz de Almeida lhe levavam. No dia seguinte Lourenço achou que bastava daquele “sequestro estapafúrdio” e preferiu apresentar-se.
Perante o previsível fracasso da operação de 16 de março, Otelo avisava Vítor Alves: “Isto vai dar buraco e vou ser preso. Ficas tu sozinho na direção, mas isto tem de continuar.” Vítor Alves pedia-lhe: “Não te metas nisto.” A resposta de Otelo não podia ser mais sincera: “Mas já meti.” Milagrosamente, escaparia por cinco minutos de ser preso à porta de Manuel Monge, onde a PIDE tinha ido fazer uma busca. No dia seguinte, Otelo apresentava-se na sua unidade, como se nada se tivesse passado.
E a sua calma foi tomada por inocência.
No dia 24 de março Otelo convocou para uma casa de Oeiras a Comissão Executiva. Fez o mea culpa pela precipitação do 16 de Março e avaliou os estragos: tinham sido presos 200 militares, mas capitães próximos deles muito poucos. Agora sim, havia que agir rápido, ou “o Movimento morreria na praia”.
No último grande plenário que tinham feito, a 5 de março, em Cascais, fora decidido avançar para um golpe que derrubasse o regime. Mas não havia data marcada.
Era apenas algo que eles estavam determinados a fazer. Por isso o 16 de Março os apanhara desprevenidos, ainda sem qualquer plano de operações: «Não tínhamos nada», confessa Otelo.
Em Oeiras, então, Otelo decidiu que teriam de avançar no máximo até à última semana de abril. Nessa altura andaria a PIDE entretida, a prender os suspeitos do costume, militantes do PCP, do MDP e da extrema-esquerda, para evitar as manifs do 1.° de Maio. “Depois, iriam começar os interrogatórios dos militares presos no 16 de Março «e poderia alguém dar com a língua nos dentes”.
Otelo ofereceu-se para fazer um plano que, desta vez, fosse mesmo para valer: “Agarro na choca do Estado-Maior do Exército e distribuo as missões.” Por “choca” deve aqui entender-se o formulário que tem de ser preenchido antes de qualquer operação militar, indicando quais as forças amigas e inimigas, qual a situação que irá encontrar-se e qual o tipo de operação a que se destina. Neste último item, não havia dúvidas: o objetivo era derrubar o regime.
Mas, se no 16 de Março ele só tinha “umas ideias” sobre o que fazer, aprendera naquele dia uma lição: o plano de Humberto Delgado, que levaria ao golpe de Beja de 1961, de que bastaria uma unidade sublevar-se e as restantes adeririam, estava errado. Também a saída isolada das Caldas da Rainha fora um fracasso.
Em contrapartida, desenvolveu ele outra teoria: “uma isca” sim, isso era preciso. Teria de sair uma unidade, que chamasse sobre si todas as atenções do regime. E o Governo pensaria que era outra ação isolada, a ver se desta vez corria melhor. A partir daí as outras unidadas do País podiam movimentar-se à vontade.
Cedo Otelo se convenceu de que não haveria melhor “isca” do que a Escola Prática de Cavalairia (EPC), de Santarém: “Era a mais espetacular.” Com toda a sua parafernália de carros de combate, atrairia facilmente as atenções do regime. Não se desviou desta ideia.
O major chamou então a sua casa Salgueiro Maia. Mas o capitão da EPC queria resposta a duas perguntas antes do sim.
“Temos algum programa sobre o que fazer seguir?” A essa, a resposta era fácil. Melo Antunes, que se dispusera a ser candidato da oposição nas eleições de 1969, tinha levado à reunião de Cascais um programa já bastante desenvolvido a que chamou O Movimento, as Forças Armadas e a Nação. Entretanto seguira para os Açores, mas deixara-o a Vítor Alves. Já a segunda questão de Maia era de resposta mais complicada. “Temos generais?” “Menti-lhe piedosamente”, confessa Otelo. Nem Costa Gomes nem Spínola se envolveram propriamente no golpe.
Depois da anuência de Maia, Otelo explicaria a missão: “Trazes carros de combate, chaimites, tudo o que puderes.” Por volta das 5, deveria estar em posição no Terreiro do Paço, onde prenderia algum membro do Governo que lá pudesse estar.
O capitão de Santarém mostrava-se um pouco dececionado: “Então e só faço isso?” Não sabia então que iria escapar por pouco de ser morto.
Outra medida drástica de Otelo era colocar a Escola Prática de Artilharia (EPA), de Vendas Novas, ao lado do Cristo Rei, com seis obuses apontados para Monsanto, onde o Governo se refugiara no 16 de Março. “Se fossem para lá outra vez e recusassem render-se, devia ser intimidação suficiente”. Mas as comunicações intercetadas cedo lhes permitiram perceber que, afinal, Marcelo se refugiara desta vez no Quartel da GNR do Carmo.
À meia-noite e 20, a Rádio Renascença, que chegava a todo o País, transmitiu a segunda senha, Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso. E, com exceção da tal unidade que “borregara” em Castelo Branco, as restantes previstas no Norte, Centro e Sul, começaram a preparar-se: o golpe estava em marcha. Otelo ainda apanhou alguns sustos – como o da fragata Gago Coutinho, comandada por Seixas Louçã, que ia a descer o Tejo a caminho do Mediterrâneo, para uma missão da NATO, ser mandada regressar e posicionar-se em frente ao Terreiro de Paço. E sobretudo pôde confirmar os seus receios sobre a unidade da Ajuda.
Era já dia quando ele levantou um dos cobertores que cobriam as janelas e viu um avião civil, um Super Constellation, dirigir-se para o aeroporto da Portela e, depois, afastar-se outra vez. A ocupação do aeroporto estava a funcionar. Aos poucos e poucos as peças do seu puzzle iam-se encaixando como ele previra.
Aquele abraço
Pouco passava das 4 e 30 da tarde, quando Otelo recebeu um telefonema de Spínola, ainda em casa, a comunicar-lhe que Marcelo o chamara ao Largo do Carmo para lhe passar o poder. Por isso, o general queria saber se o Movimento concordava com isso ou se queria mandar algum dos seus representantes com ele. “Meu general, considere-se mandatado pelo Movimento”, respondeu Otelo. Ao mesmo termpo informava-o de que tanto o primeiro-ministro como outros governantes que lá se encontrassem deviam ser levados ali para a Pontinha.
Por volta das 8 noite, segundo recorda Otelo, Spínola irrompia pela sala do Posto de Comando, direito a Otelo, e dava-lhe um abraço. “Creio que foio o único abraço que demos na vida.” Mas o general era um homem que ele conhecia há muito, de relativamente perto e sobre quem tinha e tem até hoje sentimentos contraditórios.
Otelo, que nascera em Moçambique em 1936 e sonhara ser ator, acabou por seguir a carreira militar e ser colocado em Angola, logo em 1962. Aí conhecera um tenente-coronel de Cavalaria, que se oferecera para comandar um batalhão, António de Spínola, que começava a criar a sua própria lenda. Participava pessoalmente em operações, e era “dos primeiros homens na frente da coluna, despindo, por vezes, durante a marcha, o dólman camuflado, mas mantendo invariavelmente calçadas as luvas de pelica, o pingalim na mão e o monóculo encaixado no olho direito”, escreveria mais tarde Otelo no livro Alvorada em Abril.
Ali, Otelo faz descrições de atos de Spínola até de alguma crueldade, mas ao mesmo tempo, admirando-o: “Como chefe, não como homem.” Viria a conhecê-lo bem mais de perto na Guiné. Ali trabalhou no Quartel-General, em Bissau, com várias funções, inclusive no acompanhamento de jornalistas estrangeiros. E Spínola era já nessa altura não só o comandante militar, com o governador: “Tinha defeitos gigantescos e, ao mesmo tempo, excelentes qualidades de comando.” Nos relatos de Otelo sobre os preparativos do 25 de Abril e as suas conversas com outros revoltosos, quando ele se refere ao “general” é habitualmente a Spínola.
O estratego da Revolução não se surpreende com o comentário: “Era muito popular entre quem tinha estado com ele na Guiné, especialmente entre os soldados. Podia desautorizar um comandante de batalhão ou mesmo demiti-lo à frente dos subordinados, se estes se queixassem, nem que fosse da comida.” Os três anos que passou na Guiné custaram a Otelo uma tragédia pessoal – lá perderia uma filha, Cláudia, de 7 anos, atingida subitamente por paludismo cerebral.
Mas foi ainda em Bissau que começou a envolver-se na contestação ao decreto do Governo que só terminaria com o 25 de Abril.
Sobre a sua relação com Spínola, seria ainda o general que, já depois da Revolução, pretenderia promovê-lo a general de quatro estrelas para lhe entregar a chefia das Forças Armadas. Otelo responderia que nem pensar: “Eu era um jovem major de 37 anos. Seria um seu subordinado. Ficava comigo na mão.”
E depois do adeus
Otelo só saiu do quartel da Pontinha a meio do dia 26 de abril. Nessa altura, tudo estava consumado. A Junta de Salvação Nacional já aparecera na RTP, na noite anterior, a ler o seu comunicado.
E foi sem surpresa, diz, que viu Spínola como presidente da Junta, embora Costa Gomes tivese sido o nome mais votado quando o Movimento escolhera os generais que, após o golpe, queria ver como líderes: “Estou convencidíssimo de que foi Costa Gomes que assim quis. Sabia que o verdadeiro poder seria o que ele teria: o comando das Forças Armadas.” E também o Movimento das Forças Armadas já fora lendo, durante o dia, os seus comunicados. E entre a Junta e o MFA logo ali começaram duas linhas divergentes, que só não eram completamente paralelas porque iriam cruzar-se daí em diante várias vezes, mas para colidirem.
Otelo diz que foi por proposta do MFA que Spínola viria a entregar-lhe o comando do COPCON. Mas, se o ex-governador da Guiné iria encabeçar a ala mais à direita da Revolução, acabando por fugir do País após o golpe de 11 de março de 1975, Otelo por seu lado radicalizava cada vez mais à esquerda. Embora ele conte que iam parar ao seu organismo os casos mais díspares, desde ocupações de fábricas e casas ate à mulher do forcado Nuno Salvaçao Barreto a queixar-se de violência doméstica, geraram polémica algumas das prisões feitas pelo COPCON. Otelo seria, por sua vez, preso mais de um mês, depois do golpe da extrema-esquerda, em 25 de novembro, e passado compulsivamente à reserva.
Mas Otelo continuava a ser tão popular entre os setores derrotados no 25 de Novembro, que tentaria, em 1976, uma candidatura à Presidência da República, de onde sairia com mais de 16 por cento.
Mais tarde acabaria por se ver envolvido no processo político mais mediático do novo regime, o julgamento das FP-25, que lhe valeria, em 1984, um regresso à prisão, desta vez “por 1789 dias”, uma conta que ele diz saber de cor, por ser a data da Revolução Francesa. Mas foram dias que viriam a revelar-se não propriamente uma perda de tempo na sua vida pessoal: em Caxias conheceria a sua segunda mulher, uma guarda prisional, de nome Filomena.
Antes do processo, ainda fora reintegrado nas Forças Armadas, por sugestão de um ex-companheiro daquela longa noite na Pontinha, Garcia dos Santos, que entretanto se tornara chefe do Estado-Maior do Exército, e aproveitando uma amnistia concedida pelo então Presidente, Ramalho Eanes. Acabaria a carreira como coronel, o posto de que, aliás, muitos dos Capitães de Abril nunca passaram. Mas, na imprensa internacional, manteve-se até hoje como a figura mais emblemática dos que derrubaram o regime.
Otelo só deixou o quartel da Pontinha a meio do dia 26 de abril. Saiu sozinho.
Diz que a essa hora não estava lá mais ninguém: até Marcelo já seguira rumo à Madeira. Fechou a porta e começou a descer as escadas. Iria provavelmente exausto. Nem sequer dormitara desde que ali entrara a “Revolução dos homens sem sono” ainda mal começara. Se se recorda do que sentiu nessa altura? Uma sensação difusa de missão cumprida, sim.
Afinal, tantos camaradas tinham confiado nele. Mas é um Otelo divertido, de uma sinceridade desarmante, quando conta o pormenor que melhor retém dessa sua saída da Pontinha. O homem que acabara de derrubar o regime olhou para o relógio e viu, satisfeito, que era 1 e 30: “Ainda vou a tempo de ir almoçar a casa. Finalmente, uma refeição de jeito!”
(Artigo publicado na VISÃO História de abril de 2019)