Online são difundidas diariamente milhares de teorias da conspiração, de informação errada e de desinformação. A diferença estará entre quem as lê nas suas redes sociais e não lhes dá crédito ou tenta saber mais sobre o assunto, apurando origens e consequências e os que preferem acreditar sem duvidar, nem questionar e partilham essas teses com os outros. Teorias da conspiração sempre existiram, “a transposição para as redes sociais faz com que haja uma maior multiplicação de canais. O que nem sempre existiu é o maior alcance, velocidade e impacto”, explica Felisbela Lopes, professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho.
São cada vez mais os especialistas debruçados em perceber como este tipo de pessoas são enredadas para movimentos como o Qanon, por exemplo, fenómeno iniciado nos EUA, em outubro de 2017, com o intuito de ameaçar as organizações que passam informação, sejam os órgãos de comunicação social, as autoridades ou os políticos, especialmente os adversários de Donald Trump. São pessoas que, legitimamente, desconfiam das autoridades governamentais, consideram a polarização política revigorante e procuram informações que confirmem os seus próprios pontos de vista, o que pode torná-las mais vulneráveis a mentiras. É cada vez mais importante existir uma cultura dos media, em que o fact-checking (a verificação de factos) e a capacidade de um pensamento crítico vai ajudar a combater a relação entre desinformação e saúde mental debilitada. Mas há outras formas. “Combater a iliteracia a partir de grupos mais novos, por exemplo. Não é difícil perceber que em algumas circunstâncias a informação está a ser manipulada”, aconselha Felisbela Lopes, doutorada em Ciências da Comunicação. Um processo educacional que passa por ensinar as pessoas a levantarem questões, a confrontarem, a desconstruirem processos de comunicação, a identificar as fontes diretas do jornalismo e, no fim, a perceberem que os blogs e redes sociais não cumprem os requisitos jornalísticos de isenção, rigor, imparcialidade, equidistância e dever de informar.
“Nos adultos terá um efeito imediato, mas nos mais novos, que ainda não sabem diferenciar canais, só a longo prazo”, avisa a professora.
No verão de 2020, um estudo realizado pelo Pew Research Center, em Washington, concluiu que 71% dos americanos já ouviu falar de uma teoria da conspiração que circula online, alegando que pessoas com muito poder no mundo planearam intencionalmente o surto do novo coronavírus. Em setembro do ano passado, outro estudo publicado no Journal of Personality descobriu que os traços psicológicos associados às crenças nas teorias da conspiração podem ser muito mais normais do que se pensa.
Karen Douglas, professora de psicologia social na britânica Universidade de Kent, co-publicou, em 2019, um artigo científico sobre o assunto, evidenciando que estas teses conspiratórias atraem pessoas cujas principais necessidades psicológicas não foram colmatadas. Os crentes anseiam por conhecimento, desejam segurança, proteção e precisam manter a auto-estima positiva. “Em tempos de crise e quando é preciso tomar decisões difíceis, essas necessidades psicológicas são particularmente ameaçadas e as pessoas procuram maneiras de lidar com os desafios que enfrentam”, explica a docente ao Mashable, site de notícias e multiplataforma de media.
Quem sofre de doença mental não é violento
As teorias da conspiração, que às vezes podem ser verdadeiras, ajudam a explicar o desconhecido, dando às pessoas uma profunda sensação de satisfação, mesmo que seja temporária. Uma nova onda de investigações conduzidas durante a pandemia sugere uma ligação plausível entre incerteza, ansiedade e depressão, isolamento social e emoções negativas e uma maior probabilidade de acreditar em teorias da conspiração.
Depois de na última década, a “Era do Big Data”, terem sido desenvolvidas ferramentas para extrair, estruturar e visualizar dados de maneiras nunca antes possíveis, agora estamos na “Era do Insight”. Não basta ter grandes quantidades de dados, é preciso investigá-los, saber o que significam e perceber como podem provocar uma ação.
Em abundância, as redes sociais “vendem” a verdade e essa transmissão de confiança tornou-se um antídoto para a infelicidade de não saber o que viria a seguir.
De acordo com Alice Marwick, estudiosa do tema, a desinformação compreende informações falsas, estereótipos distorcidos e descaracterizações como parte de uma campanha de persuasão. A desinformação pode incluir teorias da conspiração apresentadas como factos, e aqueles que partilham a desinformação normalmente recusam-se a admitir quando estão errados.
A complexa relação entre saúde mental e informações falsas tem efeitos a longo prazo, mas é habitualmente negligenciada. É um campo de pesquisa relativamente novo e subfinanciado. Também existe uma preocupação legítima em encontrar uma doença para certas crenças ou pontos de vista. Torna-se cada vez mais claro a necessidade de atender de forma significativa às necessidades de saúde mental das pessoas, antes ou depois de se envolverem profundamente em teorias da conspiração e desinformação. Só tratando a saúde mental se combate a desinformção.
Sophia Moskalenko, psicóloga social e clínica, estudiosa da radicalização terrorista, com o surgimento do QAnon investigou o que motivava as pessoas a juntarem-se a este fenómeno. A investigadora do Georgia State’s Evidence-Based Cybersecurity Group analisou entrevistas da comunicação social e registos judiciais relacionados com cerca de 24 seguidores conhecidos do movimento, acusados de cometer um crime, como transportar armas para impedir um suposto grupo de tráfico sexual infantil. Moskalenko descobriu que muitos dos que tinham cometido um crime tinham histórico de doenças mentais. Já em fevereiro de 2021, investigadores do Consórcio Nacional para o Estudo do Terrorismo e Respostas ao Terrorismo publicaram um relatório revelando que mais de dois terços dos 31 adeptos do QAnon que tinham sido acusados de um crime antes ou depois da insurreição de 6 de janeiro de 2021 em Washington, apresentou graves condições de saúde mental, incluindo transtorno de stress pós-traumático, esquizofrenia e transtorno bipolar. Muitas das mulheres da amostra envolveram-se no QAnon depois de saber que o seu filho tinha sido abusado física ou sexualmente por um namorado ou membro da família.
Em geral, a maioria das pessoas que sofre de doença mental não é violenta. O mais provável é que sejam vítimas de violência. A alta prevalência de doenças mentais entre os crentes do QAnon acusados de um crime pareceu a Moskalenko fora do comum. Para a psicóloga os terroristas raramente são diagnosticados com doença mental e de um modo geral apresentam características como foco, pensamento estratégico, planeamento e execução, que os ajudam a cumprir objetivos complexos ou violentos. Sophia Moskalenko suspeita que as pressões da pandemia, incluindo incerteza, ansiedade, medo e isolamento, levaram as pessoas a abraçarem um conjunto de visões falsas ou improváveis que ofereciam certeza – um trauma que pode servir de gatilho para a radicalização. “Algumas pessoas que já tinham problemas de saúde mental provavelmente eram especialmente vulneráveis a esses ambientes sociais online semelhantes a tocas de coelho nos quais foram espremidas durante o isolamento pandémico. Foi uma tempestade perfeita que arrastou muitas pessoas para esta paisagem pantanosa de teorias da conspiração, onde existe uma comunidade online que os aceita e dá as boas-vindas à sua criatividade”, explica Moskalenko, co-autora do livro Pastels and Pedophiles: Inside the Mind of QAnon.
Não temos objetividade na leitura da realidade, até porque cada palavra arrasta consigo subjetividade. Estas pessoas estão sempre a ver o avesso das coisas, numa desconfiança permanente
Felisbela Lopes,
professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho
A culpa é do Bill Gates
Tanto Moskalenko como Joanne Miller, especialista em psicologia política, acreditam que ao abordar a crise de saúde mental da América, inicia-se o fim de movimentos como QAnon. No verão passado, o Canadian Journal of Political Science publicou a análise de Joanne Miller de uma pesquisa online sobre teorias da conspiração com 3 019 adultos norte-americanos. Miller descobriu que quase metade dos entrevistados acreditava que a Covid-19 era definitivamente ou provavelmente uma arma biológica chinesa e que Bill Gates definitivamente ou provavelmente tinha planos para injetar um dispositivo de rastreamento na vacina contra a Covid-19. Ambas as teorias da conspiração dominaram a discussão online da pandemia.
Joanne Miller acredita que, embora as intervenções dos media – como a verificação de factos – sejam importantes, ignoram a motivação pela qual as pessoas recorrem às teorias da conspiração e à desinformação. A especialista em psicologia política descreve a dinâmica como “lidar por conspiração”. “Descobrir maneiras mais eficazes de recuperar o controlo quando sentem que o estão a perder ou quando se sentem inseguros é tão importante quanto o lado da alfabetização mediática”, afirma.
Ninguém está imune
Duas outras pesquisas sobre bem-estar emocional e teorias da conspiração realizadas durante a pandemia tiveram resultados intrigantes. Uma com 797 participantes nos EUA e no Canadá descobriu que metade dos entrevistados acreditava, em pelo menos, uma grande teoria da conspiração sobre Covid-19, como a de que o vírus é uma arma biológica e uma forma de vender vacinas. Uma segunda pesquisa de acompanhamento com os participantes originais revelou que essas crenças conspiratórias estavam associadas a uma ansiedade maior. Os investigadores, que publicaram as suas descobertas na revista Personality and Individual Differences, também mediram como os participantes se sentiam em relação a si próprios. Os psicólogos referem-se a essas visões como um “auto-esquema” – uma estrutura que orienta como as pessoas veem o mundo. Quanto mais alguém se sentir negativo em relação a si e aos outros, maior será a probabilidade de acreditar em teorias da conspiração sobre Covid-19. “Auto-esquemas” positivos, no entanto, eram protetores contra essas crenças conspiratórias. Pessoas com uma visão mais positiva de si mesmas, que podem acreditar que são boas ou bem-sucedidas, podem ter mais facilidade para ver as suas próprias virtudes, mesmo quando estão a passar por um momento difícil.
“Há uma grande cobertura dos media sobre o papel das teorias da conspiração na redução da probabilidade de vacinação ou adesão aos requisitos de distanciamento social, no entanto, é importante lembrar que acreditar nas teorias da conspiração também tem um impacto negativo sobre a pessoa que acredita nelas”, alerta Talia Leibovitz, principal autora do estudo e investigadora do departamento de psicologia da Universidade de Toronto.
Em abril de 2021, foi publicado no Frontiers in Psychology um estudo feito em larga escala com 8 806 pessoas de oito países, e na sua maioria não encontrou associação entre ansiedade e teorias da conspiração. Os analistas descobriram que os sentimentos de depressão estavam mais intimamente ligados a essas opiniões em todos os países. As teorias de conspiração apresentadas aos entrevistados incluíam acreditar que a indústria farmacêutica está envolvida na disseminação do coronavírus e que há uma ligação entre a tecnologia 5G e o coronavírus. Outros fatores também influenciaram as crenças conspiratórias, incluindo o consumo de media digital e a confiança nas fontes de informação.
David De Coninck, principal autor do estudo e pós-doutorado no Centro de Pesquisa Sociológica da Katholieke Universiteit Leuven, na Bélgica, explica que é possível que a ansiedade tenha desempenhado um papel nas crenças da teoria da conspiração, mas que a depressão anulou esse efeito. De Coninck descreve a teorização da conspiração como uma “característica da mente” que molda “a certeza e o controlo em tempos de incerteza e stress”, daí que as pessoas com tendência a fazer associações e inferências negativas possam ser muito mais vulneráveis à tentação de teorias da conspiração.
Felisbela Lopes alerta: “Nós não somos imunes a teorias da conspiração. A comunicação e os conteúdos têm sempre impacto mesmo nas pessoas mais racionais. Chama-se ‘agenda setting’, ou em português ‘efeito de agendamento’. A comunicação social não nos diz como pensar, mas no que pensar.”