Podemos dizer, porque já estamos habituados à máscara, ao distanciamento e ao álcool gel em cada esquina, que a vida nas imediações da Igreja de São João de Brito, em Alvalade, corre mais ligeira desde que o anunciado desconfinamento a conta-gotas chegou a este bairro. O sol ajuda a que só se sintam prenúncios de um regresso à normalidade, sem aspas, porque já nada disto cheira a novo.
Lurdes Gonçalves, 48 anos, tem nas mãos duas folhas pautadas A4, rasgadas de um caderno escolar e escrevinhadas a tinta. Percebe-se, de imediato, que serviram para desenrascá-la, assim que, na 5ª feira à hora do jantar, António Costa anunciou ao País que a abertura dos cabeleireiros e barbeiros estava permitida para daí a três dias – o seu telefone não parou mais de tocar.
À sua frente está o senhor António, como lhe chama, de cabelos brancos de um comprimento que o envergonha. “Esta semana as senhoras estão desesperadas. Já só consigo atendê-lo na 5ª feira, às 10h30. Pode ser?” Que remédio. Este cliente do cabeleireiro Pedro Amaral terá de esperar pela sua marcação – aqui só entram quatro pessoas de cada vez e apenas com o nome na agenda. E como se nota pelos papéis de Lurdes, a coisa não está fácil. “Somos quatro a trabalhar com outras quatro em espelho e mais duas manicuras com os seus gabinetes individuais. Estamos um bocadinho assoberbadas, mas é agora no regresso, em que temos muitos cabelos para pintar, cortar ou fazer madeixas.” E depressa se põe a tratar dos cabelos de uma cliente, visivelmente desejosa de se livrar da gadelha que acumulou em 60 dias.
Desde o primeiro desconfinamento, em maio de 2020, faça frio, chuva ou sol, a porta desde cabeleireiro está sempre aberta e o ar condicionado desligado. Mesmo da cadeira, enquanto se espera que a tinta atenue os cabelos brancos e o cansaço dos dias em casa, consegue-se avistar o movimento constante da pastelaria Doces Santa Clara. Apesar de ainda não poderem estender a esplanada pelo passeio, venderam um quilo de café no primeiro dia em que a bica saiu de novo à rua. E aqui, recomendamos, ela sabe ainda melhor quando acompanhada de uma léria caseira, mesmo que os dedos fiquem lambuzados de ovos moles.
A vista das janelas do cabeleiro Paulo Amaral também chega ao pequeno jardim com lago, arrumado no Largo Frei Heitor Pinto, como que a dar início à Avenida da Igreja. Já não há fitas da polícia a aprisionar os bancos que rodeiam aquele pedaço de água e onde, nos dias bonitos como o de hoje, apetece mesmo ficar.
As colegas Ana e Clara deram azo ao apetite. Estão, cada uma na sua ponta do banco, a beber um abatanado do café Sabores da Avenida, e a pôr as saudades em dia. “Antes íamos à esplanada, mas ainda assim isto soube-me pela vida”, conta Ana Cerejeiro, 46 anos, quando acaba a bebida e se prepara para um cigarro antes de voltarem as duas aos escritórios da imobiliária onde se conheceram. Estiveram estes meses em casa, a trabalhar à distância, a fazer visitas virtuais a casas, a marcar escrituras e a atualizar a carteira de clientes. Hoje sentem-se mesmo satisfeitas por as portas da agência Era já estarem abertas – nota-se até nos sorrisos. É para lá que se dirigem, quando o sino dá o toque das onze.
Dentro das portas da igreja São João de Brito há apenas 30 pessoas a ouvir o padre, muito distanciadas nos bancos de madeira corridos, e abrigadas na espaçosa nave central, com tetos brancos, abobados, despidos e marcados pela humidade. A missa regressou e a rotina das 8h, 11h e sete da tarde vai trazendo, a medo, alguns fiéis – afinal, estamos na quaresma.
Fernanda Bento Leal, 73 anos, já estava cansada de assistir à homilia pela televisão, por isso voltou a ser presença diária na paróquia. “Fazia-me falta, sou uma mulher de fé.” Pelo meio também já arranjou o cabelo e as mãos, bebeu a bica no café Joaninha, mesmo aqui ao lado, e lanchou com a neta. Na agenda de hoje, depois de ter vindo à missa, tem pedicura e outra sessão de acupunctura.
O livro que celebrizou Carlos Ruiz Záfon, A Sombra do Vento, está exposto na montra ao lado do mais recente de Margarida Rebelo Pinto. Dentro desta livraria, Armando Lourenço, 44 anos, dá outro retoque no escaparate das novidades. Depois de dois meses em lay-off, está tão feliz com o regresso à Multinova, com grande enfoque em livros religiosos, como os clientes habituais que logo no primeiro dia apareceram para sentir os cheiro dos livros. “Têm vindo em família, para transmitir a ideia de que nada substitui o manusear das obras”, ressalva.
Maria do Carmo, 67 anos, sabe como as suas clientes gostam de tocar na roupa, ver se as calças, saias ou blusas lhes assentam bem, se os sapatos são do número certo. Por isso, tem-se desdobrado em manobras para vender a roupa da loja Maria Teresa, fechada desde dia 15 de janeiro. “Nunca pensei que corresse tão bem”, confessa. Ninguém pode passar pela mesa que pôs a barrar a entrada, mas o atendimento nunca foi tão personalizado. É daqui que pedem para ver as peças, experimentar sapatos e até túnicas – depois, se não levarem o que provam, há que fazer 24 horas de quarentena no armazém. O que lhe vale são os 10 anos a atender as senhoras neste bairro, já lhes conhece as manhas, os gostos, os tamanhos.
Nem todos os comerciantes estiveram para abrir nestas condições. Em Alvalade serão à volta de metade os que não temem a modalidade do postigo. E qualquer negócio é válido para se arriscar, depois de dois meses à míngua – decoração, brinquedos, sapatarias, galerias, antiguidades… E qualquer objeto serve de barreira à entrada de clientes, desde móveis das lojas a uma tábua de passar a ferro. E não falta o álcool gel, nunca.
A certa altura, somos atraídos pelo bruáááá das crianças a brincar no recreio da escola. Foram 50 dias em que este som esteve desligado nas rotinas do bairro. E chega a ser reconfortante observá-las a correr, a jogar à bola, a gritarem, quase todas sem máscara, porque são sub-10. Bem perto, na creche A Tartaruga e a Lebre, os meninos já almoçam no jardim. Sabemos que a testagem em massa de professores e auxiliares começará nesta tarde, na escola Padre António Vieira, por enquanto vazia de alunos.
Pela Avenida da Igreja fora, essa hora do almoço é sinónimo de filas, sempre o foi. Nem faltam os carros mal parados, como quem vai ali a correr a uma loja e volta já. Quase todos os cafés, restaurantes e churrasqueiras agregam pessoas à porta para poderem levar a comida para casa ou para o jardim, que agora já se pode – os bancos estão finalmente libertos das amarras da pandemia.