Quando fica nervosa, Mariana Van Zeller expira pela boca com força e enrola uma mecha do seu cabelo loiro. Também bate com os polegares no volante enquanto conduz ou vira-se para trás, num olhar cúmplice com o operador de câmara, quando vai à pendura. Por vezes, a jornalista portuguesa radicada nos EUA é guiada pelos chefes da polícia em rusgas ou por jornalistas locais em lugares mais problemáticos; outras vezes, é a própria quem conduz em busca de explicações, pondo-se cara a cara com o “inimigo”.
Sabendo que por pouco não foi raptada na Nigéria, contraiu leishmaniose na Amazónia, infiltrou-se como acompanhante de luxo e entrou nas favelas do Rio de Janeiro, quando lhe perguntamos em que situações o medo se sobrepõe à curiosidade, responde: “Às vezes, quase nunca. É muito importante ser racional. Quando se está nessas situações há sempre momentos em que se tem de ponderar o risco, mas na luta constante que existe entre o medo e a curiosidade, a curiosidade geralmente ganha.”
É a normalidade do seu comportamento e da sua atitude que na maior parte das vezes desarma os criminosos, permitindo-lhe chegar à fala com proxenetas, traficantes de esteroides, de cocaína e de fentanyl, contrabandistas de armas, burlões e toda a espécie de vigaristas. “Trato toda a gente com o mesmo nível de respeito, dignidade e confiança. Sou sempre muito transparente e digo: ‘Estou aqui para ouvir e entender a tua história e não para julgar. Posso não concordar, mas estou curiosa e quero entender como chegaste até aqui’”, explica a jornalista, em entrevista à VISÃO via Zoom.
Nos oito episódios da série documental Trafficked – Na Rota do Tráfico, com estreia este sábado, 13, no canal National Geographic, Mariana Van Zeller, 44 anos, mergulha num ambiente americano muito explorado nos thrillers e que comprova, mais uma vez, como a realidade supera sempre a ficção. No capítulo centrado no tráfico de sexo, Mariana é guiada pelo chefe da polícia de Oakland, na Califórnia, a cidade com mais queixas e casos de lenocínio. “Foi muito difícil ouvir as histórias do que fazem às mulheres, como arrancar a planta dos pés para demonstrar quem manda”, lembra. “Só entendendo o porquê, chegamos à raiz do que está a levar ao crescimento desses mercados”, analisa.
Ilegal e lucrativo
A jornalista chegou a casa vinda do Gana, em África, a 1 de fevereiro. Andou em gravações desde julho passado, a preparar uma dezena de novos episódios para a segunda temporada de Trafficked. Passar a pandemia a viajar pelo mundo foi “um desafio ainda maior para fazer uma série que já é superdesafiante”. Ao longo destes meses, a sua investigação revelou como trabalham e crescem os mercados negros em tempos de pandemia e de crise. “Sempre que as pessoas perdem o emprego, têm de arranjar uma maneira de alimentar a família, de sobreviver. É nessas ocasiões em especial que se viram para os mercados negros, talvez a única oportunidade de fazer dinheiro. Aconteceu com pessoas que conheci dentro deste mundo.
Trabalhavam em lojas, em restaurantes ou noutros negócios que fecharam. Depois dizem-lhes: ‘Estás sem trabalho, vou passar-te metade da heroína ou do fentanyl que tenho para vender. Ajudas-me a vender e ficas com parte do dinheiro.’ Assim surge mais um distribuidor de drogas, mais alguém envolvido no tráfico e no crescimento dos mercados em geral.”
O seu trabalho de investigação revela como operam e crescem os mercados negros em tempos de pandemia e de crise
Até há cinco anos, o fentanyl era praticamente uma substância desconhecida, mas este opioide sintético faz agora parte da revolução do negócio da droga nos EUA e merece um episódio por conta própria. Para Mariana Van Zeller, era um mistério como é que os cartéis mexicanos chegam às substâncias químicas para fazer fentanyl em pó ou em comprimidos. É esta a droga que mais está a matar nos EUA, tendo em conta que é 15 vezes mais forte do que a heroína. No meio do mar, presencia como os traficantes apanham os barris com essas substâncias em estado líquido – são dezasseis os barris que vão para laboratórios secretos para serem transformados: 350 mil dólares que passarão a valer milhões quando forem vendidos nas ruas da América.
Nos episódios dedicados aos mercados negros dos tigres, da contrafação, da cocaína, das armas e das burlas, denuncia mais uma série de irregularidades e ilicitudes, incluindo os esquemas de fraude de milhões de dólares em que muitos americanos já caíram. Em Montego Bay, na Jamaica, para lá dos resorts com tudo incluído, existe um grande contraste entre os muito ricos, que ali fazem turismo, e os muito pobres, que os servem. As bases de dados dos hotéis e dos call centers de empresas americanas e europeias ali a operarem permitem que algumas pessoas acedam a contactos dos idosos americanos, os preferidos para dar o “golpe da lotaria”. É graças a esta burla gigante que muitos jamaicanos conseguem pagar a água, a luz e a comida.
Combater as “fake news”
Estar em Nova Iorque no dia 11 de setembro de 2001 marca o início da sua carreira. Mariana Van Zeller tinha 24 anos e uma experiência na SIC. No dia do ataque terrorista às Torres Gémeas fez um direto para a estação portuguesa. “Estava supernervosa, quando terminou senti-me no topo do mundo”, lembra a sensação. Mas, minutos depois, nas ruas de Nova Iorque, à medida que se cruzava com pessoas que andavam à procura dos seus familiares, caiu na realidade. “Percebi que o tipo de jornalismo que queria fazer não era o do imediato. Era para entender o porquê.”
Passado um ano, muda-se para a Síria, fingindo ser estudante, mas aprendendo árabe de verdade. Ter passado uma temporada de oito meses em Damasco fez com que hoje lhe seja mais fácil compreender o conflito naquele território. “É um povo sem liberdade nenhuma. Um dos meus melhores amigos sírios, quem me levou à fronteira para fazer a reportagem, por falar inglês e por dar-se com pessoas estrangeiras como eu, foi preso seis meses e torturado com choques elétricos em todo o corpo, porque achavam que era um espião do Governo americano ou de governos europeus. Cada vez que eu queria falar com os sírios sobre o Presidente, tinha de ser a sussurrar, porque os telefones dos estrangeiros eram alvo de escutas. Irem para a fronteira lutar com os iraquianos contra os americanos era o resultado de um sistema político de supressão total e de sentirem ali um escape, um objetivo e de fazerem parte de algo – naquele caso foi a Al-Qaeda.”
A reportagem sobre os militantes mujahedin sírios que estavam a entrar no Iraque para lutar contra os americanos foi o seu primeiro trabalho como freelancer. “Reparei que mesmo no caos, nestes meios ilegais e ilícitos há uma organização, um sistema, uma hierarquia, são paralelos às economias legais. A humanização dos inimigos também a impressionou. “Passar tempo com admiradores da Al-Qaeda fez-me perceber que são humanos como nós. Pode não se concordar com o que eles acreditam, mas no fim do dia são pessoas que têm esperança, sonhos e aspirações.”
Desde os 12 anos que a curiosidade para “saber um pouco de tudo” foi o que a levou a querer ser jornalista. Num dos episódios que está a preparar, Mariana centra-se numa das suas mais fortes preocupações de momento: o tráfico de ideias e de ódio. “Tem havido uma divisão gigante, uma propagação enorme de mentiras, uma não procura pela verdade, um ataque aos jornalistas, e isso causa-me um medo enorme”, confessa. “O que se passa nos EUA tem uma ligação direta ao que se está a passar na política em Portugal. Pessoas como André Ventura não existiriam se não houvesse infelizmente um Trump no mundo. Acho mais importante tentar entender porque votam em Trump. Ouvi Proud Boys, americanos extremistas que moram na Europa e neonazis europeus para entender como se chegou a esta situação.”
Mariana Van Zeller acredita que dar o benefício da dúvida aos criminosos é o que caracteriza uma abordagem feminina nas grandes investigações jornalísticas. “Há duas coisas que favorecem muito o ser mulher: não nos veem como uma ameaça. Sentem-se mais confortáveis em abrir a vida deles a uma mulher do que a um homem. E nós, mulheres, encaramos o mundo com mais empatia, estamos mais inclinadas para tentar entender do que a julgar o mundo à nossa volta.”
Quem é…
Mariana Van Zeller
44 anos
Nasceu em Cascais, mas fixou-se há 20 anos nos EUA.
Só à terceira tentativa entrou na Columbia University Graduate School of Journalism, cumprindo um sonho que tinha desde os 12 anos.
A trabalhar em exclusivo para o canal National Geographic, a jornalista já recebeu os prémios People Voice Webby (Obama’s Army), o Peabody (The OxyContin Express) e o Livingston para Jovens Jornalistas (Rape on the Reservation).