Em nome do levantamento da apreensão de 96 cães e dez gatos, que dura há mais de um ano, sem que o Tribunal de Vila Franca de Xira o decida, por forma a viabilizar as suas adoções, o PAN (Pessoas-Animais-Natureza) engoliu um sapo. Recentemente, o deputado e porta-voz do partido, André Silva, dirigiu um requerimento ao juiz titular do processo (magistrado por agora inexistente, porque os autos ainda não foram à distribuição), em que, nas alegações que expõe para obter aquela decisão judicial, defende a aplicação “subsidiária” a animais de disposições do Código do Processo Penal e do Código Civil “relativas às coisas”. A leitura do documento é tanto mais estranha quanto foi por iniciativa do PAN que, em maio de 2017, se deu uma alteração histórica no Código Civil: os animais (em especial os de companhia) passaram de “coisas” a “seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica”.
O caso remete para uma operação da GNR que, após dois meses de investigação, apreendeu, em fins de novembro de 2019, 98 cães e 11 gatos, resgatados a uma mulher que os tinha amontoados em condições deploráveis na sua habitação, na Arruda dos Vinhos, distrito de Lisboa. “Os animais viviam em más condições higieno-sanitárias, sem qualquer tipo de assistência médico-veterinária, encontrando-se a superfície do alojamento coberta de dejetos”, descreveu a GNR, na ocasião, em comunicado.
A União Zoófila (UZ) seria designada fiel depositária daqueles cães e gatos, acolheu-os e tratou-os (dois cães e uma gata não resistiram às doenças que traziam e morreram), mas nunca conseguiu que a procuradora titular do inquérito-crime, do Ministério Público (MP) de Vila Franca de Xira, respondesse a vários requerimentos que lhe enviou, em que solicitava o levantamento da apreensão e a autorização para encaminhar os animais para adoção. Isto quando, como consta dos autos do processo, a arguida declarou não se opor ao encaminhamento para adoção dos animais que lhe foram apreendidos.
Resultado: ao cabo de mais de um ano e três meses, os 96 cães e dez gatos sobreviventes, todos com alta clínica, continuam nas instalações da UZ, necessariamente em boxes, apesar de devidamente cuidados. No entanto, como dizem ativistas dos direitos dos animais conhecedores do caso, “estes cães e gatos estão sujeitos ao stresse de um abrigo, e, quanto mais tempo passa, mais oportunidades perdem de serem adotados, até porque envelhecem”.
Em 5 de janeiro passado, a procuradora titular do inquérito exarou um despacho de acusação contra A., 57 anos, a mulher que foi alvo da referida operação da GNR, de resgate dos mais de cem animais que tinha amontoados em condições chocantes na sua habitação, na Arruda dos Vinhos. A magistrada acusou a arguida de 109 crimes de maus-tratos a animais de companhia e de três crimes de maus-tratos a animais de companhia, “agravados pelo resultado” (ou seja, a morte de três deles). E promoveu a “perda a favor do Estado” dos 96 cães e dez gatos em causa, “tendo em vista a sua adoção”. Mas não resolveu o problema – antes chutou a sua resolução para o juiz ao qual o processo for atribuído.
Foi neste cenário que o deputado e porta-voz do PAN, André Silva, agora interveio, em representação do seu partido. No requerimento que enviou ao juiz que receber o processo, alega que, “nos termos do disposto no artigo 185.º do Código do Processo Penal, e na ausência de demais legislação aplicável, a autoridade judiciária pode ordenar a sua afetação a finalidade socialmente útil quando a apreensão verse sobre bens perecíveis ou deterioráveis”. Traduzindo: os “bens perecíveis ou deterioráveis” são os 96 cães e dez gatos, e a “afetação a finalidade socialmente útil” é o encaminhamento dos animais para adoção.
Depois de sublinhar que estes cães e gatos já não são necessários como meios de prova, porque “existem relatórios e fotografias no processo que se revelaram suficientes para a prolação do despacho de acusação”, o dirigente do PAN recorre ainda ao artigo 201.º-C do Código Civil, nos termos do qual, e “na ausência de lei especial, podem ser aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza”, alega. E, acrescenta, “no caso presente a aplicação supletiva de tais normas vai ao encontro da salvaguarda do bem-estar dos animais”. De seguida, reforça que “o acolhimento num abrigo deve ser uma situação temporária, sendo fundamental para a sua socialização e bem-estar que seja possibilitada a oportunidade de serem adotados e consequentemente encaminhados para uma nova família”.
“Se decorre da lei esta possibilidade, temos de usá-la em favor dos animais”, diz a presidente do grupo parlamentar do PAN, Inês Sousa Real
Contactada pela VISÃO, Inês Sousa Real, presidente do grupo parlamentar do PAN, explicou que as alterações ao Código do Processo Penal e ao Código Penal que permitem evitar uma permanência prolongada em canis e gatis de animais resgatados de maus-tratos, e que sejam considerados como meios de prova em inquéritos-crime, apenas entraram em vigor em outubro último, cerca de um ano após a operação da GNR na Arruda dos Vinhos, que ocorreu em fins de novembro de 2019. E “a lei penal não pode ser aplicada retroativamente”, esclareceu a também jurista.
Por isso, e “sem conceder que os animais sejam considerados coisas”, os termos do requerimento enviado por André Silva ao juiz do Tribunal de Vila Franca de Xira representam “a única alternativa supletiva” disponível para alcançar, neste caso, o objetivo pretendido, diz Inês Sousa Real. “Se decorre da lei esta possibilidade, temos de usá-la em favor dos animais”, acrescenta a presidente do grupo parlamentar do PAN.
A VISÃO apurou que o Departamento de Investigação e Ação Penal, do MP de Vila Franca de Xira, emitirá em breve um despacho com a sua posição definitiva sobre o levantamento da apreensão dos 96 cães e dez gatos e o seu encaminhamento imediato para adoção. Há a expectativa na UZ (que tem despesas mensais de 15 mil euros em cuidados veterinários e alimentação daqueles 106 animais, montante a cargo da associação e de voluntários) e no PAN de que tal despacho acolha os seus apelos e leve o MP a promover junto de um juiz a libertação do processo dos 96 cães e dez gatos. Se assim não for, os animais arriscam-se a ter de aguardar o trânsito em julgado do caso, significando isso mais um longo período de permanência no abrigo. É esperar para ver.