Parece que o pior já passou. A imunidade de grupo há-de vir e, agora que os dias são maiores e já só se pensa no fim dos estados de emergência, contam-se os dias até chegar a vez de ‘levar a pica’ que nos deixará mais seguros, aliviados e libertos para retomar rotinas sem o fantasma da contaminação mas… indeterminada é a espera, e quem espera desespera.
Um pouco por todo o mundo, surgem notícias de quem se chegou à frente sem fazer parte dos grupos prioritários, o que contribui para um crescente mal-estar e um sentimento separatista, entre o “eles” e o “eu”. Ou melhor, o “nós”, confinados e desprotegidos, “a assistir a tudo isto sem poder fazer nada”.
É sabido que nós, Sapiens, somos imbatíveis em matéria de criatividade linguística. No ano passado, o Instituto Leibniz para a Língua Alemã catalogou 1200 palavras novas associadas à pandemia. Entre elas, o termo “Impfneid” (a combinação das palavras “Impfung”, que significa vacina, e “Neid”, inveja), ou a inveja que nos pode tomar de assalto ao vermos outros a concluírem o seu processo de vacinação (enquanto nós não).
Na imprensa americana, chamam-lhe “Inveja da Vacina”, que resulta da sensação de falta de controlo e do aumento da ansiedade, duas visitas indesejadas que vieram à boleia do novo coronavírus. Não saber se as remessas chegam para todos, quando é que se pode baixar a guarda, estar à vontade com amigos e familiares ou planear viagens sem restrições ou receios, gera angústia, frustração e uma pontinha de inveja.
Quando “o teu é melhor que o meu”
Porquê a inveja, uma emoção que consta na lista dos sete pecados mortais? Miguel Ricou, presidente do Conselho da Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos, apresenta os três componentes desta emoção aprendida. Primeiro, “ao contrário do ciúme, que envolve o medo de partilhar o que se tem com outro, invejamos uma coisa ou qualidade do outro, que queremos obter e está ao nosso alcance”. Quer isto dizer que é mais provável invejar o carro do vizinho do que Bill Gates (fora do radar comparativo) e, ao mesmo tempo, é menos provável reconhecê-lo, pelo desconforto e a dor que causa. Por isso embarcamos numa tendência perigosa, a de racionalizar essa emoção, com base na falácia do mundo justo: “Encontramos na justiça as razões ou argumentos que justifiquem o que sentimos e escondemos de nós mesmos, na medida em que nos diminui.” Em terceiro lugar, o invejoso pauta-se por motivos individuais: “Eu sou mais importante do que tudo o resto.”
Num cenário de escassez – de vacinas ou de outros recursos – e em que as decisões governamentais se apoiam numa avaliação feita em nome do bem comum, todas as razões são válidas para legitimar ações em benefício próprio. O nosso lado sombra a sussurrar “que se lixe o bem comum” ou “eu é que mereço”.
Bem comum, mal comum
Em teoria, nós, Sapiens, estaríamos mais equipados do que em séculos anteriores para lidar com uma nova “peste”, pelo acesso a meios sofisticados no plano médico e científico e por sermos capazes de gestos solidários à escala global. De facto, multiplicaram-se os esforços para financiar a investigação e conseguir a tão almejada vacina em tempo recorde.
Na prática, quando tudo parecia possível, o caos instalou-se e a convergência diluiu-se, dando lugar a uma onda de mal-estar coletivo que faz lembrar o mito da Torre de Babel. No início, era o medo do desconhecido. “Se a esmola é grande, o pobre desconfia” (sendo a esmola a taxa de eficácia da vacina e a desconfiança os seus eventuais efeitos secundários).
À medida que iam sendo aprovadas novas moléculas, tornou-se evidente a disparidade de critérios adotados pelos governos quanto às medidas de contenção do SARS-CoV-2. Paralelamente, os acordos entre a indústria farmacêutica e alguns países ricos e a distribuição desigual das vacinas trouxe uma onda de críticas que fizeram esquecer o espírito do “vai ficar tudo bem”.
A este respeito, os mais avançados na linha do tempo decerto se lembram da série de desenhos animados Calimero, o pintainho negro com uma casca de ovo na cabeça que, quando confrontado com as vicissitudes quotidianas, costumava dizer, num tom indignado: “É uma injustiça!”
Não sendo o mundo justo, mas antes aquilo que é – o espírito colaborativo coexiste com o individualismo e a competição – não admira que, em tempos incertos e marcados por vulnerabilidades várias, a tendência seja identificar-se com quem pensa como nós, tendo em comum os mesmos interesses e dores, e aliar-se a eles. De novo, a palavra ao psicólogo Miguel Ricou: “O grupo de pertença sustenta a legitimação da inveja, ou seja, a ideia de que a culpa daquilo que nos acontece, a nós, é dos outros; eles é que se portaram mal e merecem castigo, ou que lhes seja tirado aquilo que têm.”
Por exemplo, olhando para a situação de Israel ou do Reino Unido, apelidados de campeões da vacinação, “achar que se pode maltratar os turistas na praia”. A raíz do problema está na comparação e na negação da inveja, escudada no “nós é que temos razão”, amplificado pelas redes sociais.
E sair deste filme?
Não é algo que se resolva por decreto. Reconhecer que esta emoção é natural é o primeiro passo para não validar as razões que se arranjam para justificar atos cegos, o que envolve, acrescenta Miguel Ricou, “um exercício de autoconsciência, o estar bem consigo mesmo”.
Aceitar a realidade sem ficar refém de mecanismos de controlo e de emoções negativas, pode ser mais saudável e adaptativo, psicológica e socialmente falando, mas não há uma receita para isso.
“A inveja é um traço psicológico que tem a ver com o lidar mal com a pequenez própria e a constante comparação com terceiros que parecem estar bem melhor”, observa Luís Fernandes, professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Na dimensão coletiva, a complexidade é outra: “Nos casos em que as pessoas se valem de estatutos para passar à frente, não é tanto a inveja que está em evidência mas sim a lei do mais forte das sociedades capitalistas.”
Por oposição às sociedades que se pautam pela lógica do “todos iguais” – onde a inveja perde terreno – aquelas que promovem a ambição e treinam os cidadãos para superar a concorrência tanto criam oportunidades como desigualdades. A demonstrá-lo, a vacina de Oxford, produzida no Reino Unido, “não foi à toa que investiram tanto dinheiro, teriam de ter algum privilégio”, e as avultadas quantias para colocar uma sonda em Marte ou construir o maior radiotelescópio do mundo (Portugal fazer parte do consórcio) para aproximar-nos mais da origem do Universo.
Tudo isto para dizer que “a pobreza e a exclusão social não são prioritárias nas agendas políticas e sociais, se fossem já teriam sido resolvidas” e que, no que toca à vacinação para a Covid-19, “até estava à espera de mais oportunismos”, ironiza Luís Fernandes.
Na mensagem deixada pelo Papa Francisco, na Missa do Ano Novo, referia-se que além de uma vacina contra o coronavírus, o mundo precisava de uma “vacina para o coração”. Admitindo que temos a capacidade de aprender e de aperfeiçoar competências emocionais, enquanto seres humanos, o que pode ser diferente hoje, individual e coletivamente?
“Não é uma pedagogia moralista que vai mudar o mundo”, replica o docente, referindo-se à inveja e a formas de organização social que a alimentam. Porém, à semelhança da vacina que ninguém esperava tão cedo, deixa uma nota: “A nossa pessoa nunca está fechada à possibilidade de lidar melhor com a sua realidade interna e com o que está à sua volta.” Vamos crer que sim.