O abalo do primeiro confinamento, decretado a 8 de março de 2020, uma semana antes do resto do País, ainda se fazia sentir em Felgueiras. Terra de indústria, habituada à azáfama diária, viveu naquele período “um silêncio assustador”, recorda Sílvia Cunha, 42 anos, residente na freguesia de Idães, uma das mais afetadas pela pandemia. Só na sua família, teve 25 pessoas contaminadas. Comercial na área do calçado, três meses depois retomava o trabalho e as visitas aos clientes nas fábricas. “Chegou a mulher que parou Felgueiras”, disseram-lhe, em tom de brincadeira. “Fiquei com uma dorzinha no estômago, só de recordar aquele vírus desconhecido que apanhámos, sem saber o que poderia acontecer”, conta.
O marido trabalhava na fábrica de calçado de Lousada onde apareceram alguns dos primeiros casos em Portugal, infetados durante a participação numa feira em Milão, em meados de fevereiro. Para Sílvia, com uma vida social muito ativa, a pandemia parecia algo distante. Durante aqueles dias, comemorou o Carnaval, fez a festa do 11º aniversário do filho mais novo, desdobrou-se em deslocações profissionais, participou em assembleias políticas locais. Os primeiros sintomas apareceram a 29 de fevereiro: a tosse, além da perda de olfato e de paladar, que ainda não se associava à Covid-19. Mas só a 5 de março são dados como positivos os empresários de Lousada e começa a correria aos testes no Vale do Sousa.
Uma a uma, surgiram as confirmações do vírus entre os membros da família de Sílvia e muitos ficaram internados no Hospital de São João, no Porto, nomeadamente o marido, com dores fortes. Como o filho mais novo estava negativo, Sílvia não tinha a quem recorrer e foi a primeira paciente a ser autorizada a cumprir o período de internamento no domicílio. Dividiu a casa, limpou-a de alto a baixo com lixívia e, durante duas semanas, mal se viram. O filho mais velho, estudante em Coimbra, não estava autorizado a regressar a Felgueiras.
Dia e noite, Sílvia reconstituiu os seus passos em conjunto com os delegados de saúde, em rastreios epidemiológicos intensos. Não teve tempo para pensar em si própria – “Fui buscar uma força surreal”, conta. Felizmente, ninguém da família sofreu consequências graves. Mas a mudança radical nas rotinas abalou-lhe os nervos. Há tempos teve o seu primeiro ataque de pânico e, nos últimos dias, a dormência numa das mãos trouxe-lhe uma preocupação acrescida. Aguarda a realização de exames para saber se está relacionada com a Covid-19. De qualquer maneira, garante, “está fora de questão perder a minha energia, tenho de ficar rapidamente boa”.
Alívio da fé
Quase um ano após a infeção, permanece um cansaço físico, sentido até em pequenas coisas. “Antes subia as escadas que separam a casa paroquial da igreja sem qualquer esforço, agora não”, exemplifica o padre Albino Reis, 59 anos, pároco em Vilar de Andorinho. Teve os primeiros sintomas a 14 de março: sonolência muito forte, cansaço e tosse. Mas desvalorizou. “No início da pandemia, ouvíamos os responsáveis da DGS a dizer que o vírus não chegaria a Portugal, o medo de o contrair ainda não existia”, sublinha. Julga ter sido infetado numa das suas rondas, enquanto capelão do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. “Apesar de já haver alguns infetados no internamento, quando os contactávamos só usávamos máscara e luvas… Para outras situações no serviço de infecciologia, vesti-me com equipamento mais exigente”, recorda.
Só teve a confirmação de que estava positivo a 19 de março. Dos contactos mantidos, julga não ter contagiado ninguém, embora tenha provocado o pânico em Vale de Penela, a pequena aldeia do concelho de São João da Pesqueira, donde é natural, com cerca de 40 habitantes, que teve de ficar em isolamento. Hipertenso e diabético, viveu com preocupação esse período. “Foi muito estranho o acompanhamento, ninguém explicava nada, durante os 31 dias de confinamento fui contactado apenas duas vezes pela Saúde 24, enquanto outras pessoas que referenciei eram contactadas diariamente”, diz. A ajuda de amigos médicos compensava a ausência do apoio oficial. Sozinho na enorme casa paroquial, passou por momentos muito difíceis. “Houve noites em que tive medo de adormecer, porque pensava que já não ia acordar. A falta de ar, associada à tosse, era muito aflitiva, até era complicado falar, a voz não saía”, conta o padre. Nunca chegou a ser internado.
O exercício da fé foi sublimado. “Tinha os meus rituais, a minha liturgia e até intensifiquei a leitura e a oração.” Nestes últimos meses, quase todos os dias celebra funerais e assiste a momentos de grande dor de quem tem de fazer o luto durante a pandemia. “Sinto-me impotente, não consigo acompanhar devidamente as pessoas neste momento tão difícil… Procuro não tirar dignidade ao momento e faço celebrações na igreja.” Há cerca de 15 dias, Albino Reis perdeu o pai, infetado por Covid-19 no lar onde residia. “Ainda tenho noites de insónia, angustiado pelo contacto que não tive”, confessa. O papel enquanto capelão no hospital ganhou ainda mais peso, nas ligações que estabelece entre doentes e família. “Tento levar palavras de conforto, para que não se sintam abandonados.”
Para José Artur Paiva, diretor de Medicina Intensiva do São João, foi “admirável a elasticidade, a complacência e a capacidade de resposta” que o Serviço Nacional de Saúde mostrou neste ano. “Vi uma dedicação extrema, numa doença que deu algum cansaço também pela dificuldade da interação entre profissionais, doentes e famílias. Esse isolamento a que os doentes eram votados e a dor que induzia, não só neles, mas também nos profissionais, foi a novidade na nossa vida. E só se consegue sublimar e enfrentar um cansaço extremo à custa dessa perceção da nossa missão social.”
O medo à solta
O quadro clínico de Júlia Landolt, 51 anos – sofre de doença de Crohn, faz terapêutica imunossupressora, é hipertensa e asmática –, levantava muitas preocupações. “Tinha a consciência de que era uma doente de risco e estava muito assustada, este vírus desconhecido deixava-me insegura”, conta a professora do terceiro ciclo.
Não faz ideia de como foi contaminada. Teve os primeiros sintomas a 11 de março e, a conselho do seu médico assistente, não foi trabalhar. Os contactos com a Saúde 24, para a realização de um teste à Covid-19, foram infrutíferos. Por não saber se tinha contactado com alguém infetado, não reunia os critérios. Relatou os sintomas, mais de uma vez: tosse, pieira, frio, febre, dores de cabeça e musculares, sono e prostração. “Nunca me senti tão perdida. O sistema não estava a funcionar. A linha de Saúde 24 tinha inúmeras lacunas, não existiam testes disponíveis e estava a proceder-se a um racionamento dos mesmos”, defende.
Optou por mentir no Hospital de São João, para onde se dirigiu a conselho do seu médico, no dia 17, e disse ter tido um contacto de risco. O teste veio comprovar as suas suspeitas. Felizmente, aquele que era o seu maior receio, o do agravamento dos sintomas, nunca aconteceu. Fez a recuperação em casa, no Porto, onde vive sozinha, sem grandes sobressaltos. Como manteve o isolamento, ao longo de 17 dias, não contagiou ninguém.
Por essa altura, já o funcionamento do HSJ tinha sido alterado. “Antes da declaração da pandemia e do primeiro caso em Portugal, começámos a preparar-nos, à espera do que sabíamos que ia existir”, recorda José Artur Paiva. O impacto inicial da primeira vaga foi, precisamente, na Região Norte. Durante este ano, “expandimos os cuidados intensivos, chegámos a passar de 62 para 116 camas, funcionou muito mais a integração com outros serviços, tivemos outras pessoas que nos vieram ajudar e isso foi muito importante para a capacidade de resposta”, relata.
O grande défice era, precisamente, o de médicos e de enfermeiros. “Éramos dos últimos países da Europa em termos de recursos humanos em medicina intensiva. Foi feito um esforço enorme, maior em equipamentos, porque é mais fácil. Houve um concurso para colocação de cerca de 40 médicos especialistas, o número de enfermeiros aumentou um bocadinho, mas continuamos com défice. Deve haver outro concurso médico à escala nacional”, defende o intensivista.
Em termos de tratamento da doença, pouco mudou durante este ano. “É verdade que há fármacos que reduzem a inflamação provocada pelo vírus, como a dexametasona e o tocilizumabe, que se dirigem à resposta exagerada do hospedeiro contra o vírus e que tentam mitigá-la. Mas ainda não temos uma arma etiotrópica, um antiviral que mate eficazmente o vírus numa fase precoce e evite que passe para doença grave”, lamenta.
Sublinha, contudo, os progressos extraordinários da comunidade científica e clínica. “Em menos de um ano, conseguimos uma série de vacinas com uma efetividade e uma segurança muito grandes. Isso é fabuloso e muda o curso da história da doença”, aponta o médico.
Um ano passou desde a deteção dos dois primeiros casos em Portugal, a 2 de março. Cerca de 800 mil pessoas apanharam o vírus; mais de 16 mil morreram.