Quando tudo isto acabar – o confinamento, o medo do contágio e a abertura aos outros sem limitações físicas – como é que vai ser envolver-se fora do ecrã, sem receios nem a sensação partirem da estaca zero nas artes da aproximação corpo a corpo? Antes da pandemia, já era suficientemente assustador para muitos voltar a entrar no mercado do amor, seja porque saíram de uma experiência que deixou marcas e “gato escaldado de água fria tem medo”, por se sentirem inábeis em matéria de sedução após terem estado “fora de circulação” ou simplesmente por lhes faltarem competências sociais para avançarem com a confiança necessária nos jogos amorosos, onde a competição não é pouca.
A chegada do SARS-CoV-2, esse visitante indesejado que se instalou nas rotinas de todos por mais tempo do que o aceitável, convertendo o espaço íntimo numa espécie de cativeiro, tanto para os que coabitavam e ficaram sem margem para desanuviar com outras pessoas do seu círculo social como para os solteiros, divorciados e viúvos, para quem aventurar-se no desconhecido passou a ser sinónimo de perigo de contágio, doença e morte.
O “jejum”, outrora associado a programas dietéticos em abono da saúde ou a rituais religiosos, insinuou-se na vida sexual por tempo indeterminado. De um lado, o fastio, de outro a impossibilidade do sexo pela ausência de protagonismo além das apps e de outras plataformas virtuais que interditam o beijo e o encontro de pele com pele. Estamos neste cenário há praticamente um ano, com folgas entre confinamentos, é certo, mas nem por isso “à vontadinha” para dar largas à verve como antes. Se, há bons anos, o imperativo do preservativo podia ter um efeito dissuasor, hoje a parada é outra e não faltam obstáculos, ou dúvidas, a pairar nas cabeças: desde o “com ou sem máscara?” ao “vale a pena por em risco os pais, ou à avó, por esta aventura?” passando pelo “não há-de ser nada”. Descalçar esta bota sem ficar bloqueado é o desafio no “normal” pós-pandemia.
Tendência com nome “feio”
Retomar os treinos pode causar tanto nervosismo que muitos correm o risco de sucumbir ao medo de voltar a namorar (“fear of dating again”, cujo acrónimo tem uma conotação marota na língua portuguesa: F.O.D.A.). A tese é do jornal britânico Metro e consta num artigo publicado em janeiro, sobre o estado da arte no mercado do amor (só no Reino Unido já se contam três confinamentos), com base num inquérito conduzido pela plataforma de encontros e de relacionamentos Hinge. Os resultados indicam que o digital é o que está a dar: quase metade dos utilizadores tiveram um encontro por videochamada, a maioria (81%) não achou estranho e, para um em cada três, era preferível ao registo face-a-face (mais difícil de organizar). A “hora do encontro” aconteceu, em média, à noite, entre as 21 e as 22 horas.
Em face destes dados, a cientista comportamental Logan Ury, ex-colaboradora da Google e, atualmente, consultora da app de namoros, considerou que a melhor coisa a fazer nesta fase do campeonato é admitir que estamos todos ansiosos e assumi-lo no primeiro “date”: mais do que impressionar, a prioridade é acalmar-se. Aos primeiros sinais de insegurança, pode ser útil focar-se no outro e comentar algo que aprecie nele: isso ajuda a descobrir se há reciprocidade (Ver Caixa). E o resto (as hormonas aos saltos ou o seu oposto, a ausência da sensação de ter borboletas na barriga)? Ury comenta: “Algumas das melhores ligações não começam pela faísca e avançam em combustão lenta.”
Tolerância ao risco
No site da Ordem dos psicólogos a evidência recolhida até ao momento permite afirmar que no último ano houve uma diminuição no número de parceiros sexuais, na frequência, desejo e satisfação sexual, a par do aumento da masturbação e da deterioração das relações com os parceiros. Quem não os tinha, viu as oportunidades para socializar e ter novos encontros sexuais limitadas e “a pandemia contribuiu para exacerbar estilos de pensamento pré-existentes face à sexualidade e maximizou preocupações estéticas e inibições relacionadas com o corpo”, o que explica as dificuldades em iniciar ou manter a atividade sexual. com o corpo que funcionam como distrações das funções corporais”.
Entre as recomendações sugeridas a este respeito, importa que os potenciais parceiros conversem para saber se estão alinhados em matéria de tolerância ao risco. Patrícia Pascoal, presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica e uma das autoras do documento, salienta a necessidade de “fazer uma avaliação precisa do risco de contágio percebido e qual o nível que se pretende aceitar em pleno consentimento”. A definição de regras no contacto virtual também conta, uma vez que as questões da privacidade não devem ficar à porta.
Atenção aos acordos tácitos
“Sejam presenciais ou virtuais, não há encontros de risco zero”, esclarece o psicólogo e sexólogo João Taborda. Esse risco existe, seja através da contaminação ou contágio como como pela via do sexting. Basta pensar nas conclusões do estudo “Cyberbullying em Portugal durante a pandemia”, do Centro de Investigação e Intervenção Social do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa: na amostra de 485 alunos do ensino básico, secundário e superior de todos os distritos do país, mais de 60% foram vítimas de bullying online, com 41% dos inquiridos a assumir ter sido agressor – pelo menos por uma vez durante o confinamento – “por brincadeira”, “por vingança relativamente a outros episódios que aconteceram” ou “porque quiseram afirmar-se.” Uma realidade a ter em mente, na medida em que as potencialidades do digital permitiram a muitos “descobrir formas de prazer gratificantes, como a prática da masturbação simultânea”.
Mesmo que o advento da vacina venha a debelar parte dos medos, “a história de vida e a estrutura da personalidade podem aumentar a vulnerabilidade se ela já lá está, como sucede em perfis quadros fóbicos, obsessivos e ansiosos”, adianta João Taborda. A variável “idade” também pesa na equação: “Será mais difícil à medida que as pessoas ficam mais velhas; se perdem uma relação de longa data e tiverem menos manejo das tecnologias ou deixarem de contar com os bailaricos e convívios do género, pode ser complicado.” Porém, não é o fim, desde que estejam dispostas a assumir riscos calculados, na hora de pensarem numa vida nova.
Aprender a lidar
Para os adolescentes e jovens adultos – os “pandemials” (pandemia e millennials) – o problema coloca-se a outro nível. A psicóloga clínica Ana Rita Almeida apoia-se nas conclusões do estudo Global Risks Report 2021, que refere este grupo como o mais exposto às implicações do novo coronavírus, porque privados da socialização com os pares e das vivências íntimas quando ainda estão a construir a sua identidade. “Eles saem duplamente prejudicados pois, ao contrário de um adulto médio que já teve algum amadurecimento neste campo, num jovem representa uma inibição do desenvolvimento daquilo que seria esperado na sua faixa etária.”
Ana Rita Almeida antevê um período de transição no pós-pandemia, até porque, “mesmo com um risco percebido diminuto, a maioria desabituou-se, por exemplo, do cumprimento com os dois beijinhos”. O mesmo para a abstinência sexual, que tem custos para a saúde mental. Ainda que não haja uma “resposta certa” para uma transição favorável, ela passa por “fazer um balanço entre prós e contras, que varia de pessoa para pessoa”. Ainda é cedo para fazer prognósticos, mas é de admitir que “depois de tanto tempo limitados aos ecrãs, tenham algumas dificuldades em saber estar e alguma imaturidade na vivência sexual com o outro, mas há que esperar para ver. “
O que ter em conta para um encontro virtual bem-sucedido e nos que se seguem…
- Preparar-se para a ocasião como se fosse um encontro presencial (aparência, indumentária)
- Realizar atividades a dois encontro seguinte: partilhar playlist musical, uma receita, um jogo
- Evitar conversa de circunstância, bem como o registo da entrevista de recrutamento
- Centrar-se em três aspetos que considere interessantes no outro e falar disso com ele
- Colocar de lado a tentação de fazer comparações com base em experiências prévias
… e como voltar aos namoros depois de ter tido experiências menos positivas
- Curar as feridas: procurar consolo noutro amor não é um bom começo
- Fazer as pazes com o passado: aceitar o que foi vivido e fechar etapas de vida
- Manter a mente aberta: estar recetivo aos outros e deixar-se surpreender
- Apreciar a vida a solo: estar bem na própria pele é crucial para estar bem com outros
- Comprometer-se: encontros em que não se está 100% dificilmente dão frutos
Seja qual for a idade ou o estado civil, todos temos o direito de recomeçar, de aventurar-se respeitando os limites pessoais num dado momento. O fim conturbado de um romance, a perda de alguém, o medo da rejeição ou do compromisso e o cansaço das tentativas falhadas são razões de sobra para que haja algum constrangimento em iniciar novos relacionamentos.
Restaurar o equilíbrio emocional pode implicar o ter de fazer as pazes com o passado e reconhecer a sua quota parte no processo, aceitar a sua história e superar receios e crenças pessoais limitadoras, com a ajuda de amigos ou de um profissional de ajuda. A partir daí, é provável que despertem, de novo, a curiosidade e capacidade de confiar, atributos comuns à maioria de nós.