“A sensação mais presente era o medo. Tinha muito medo de os perder.” Emocionada, Maria Martins, 54 anos, recorda a angústia de ter visto o pai e o filho serem internados, devido às complicações provocadas pelo vírus SARS-CoV-2. Hoje, o seu pensamento soa-lhe profético. A enfermeira já estava em isolamento, a recuperar da infeção, quando ambos foram levados de ambulância, mas nunca antes se tinha sentido tão sozinha. Pelo meio do turbilhão de emoções que atravessava, atormentava-a uma ideia difícil de domesticar: “Eu trouxe o vírus para casa.”
Uma recriminação comum entre aqueles que se culpabilizam por terem transmitido a doença. “É natural sentirmos culpa quando prejudicamos ou magoamos alguém, inadvertidamente. Estranho seria não a sentir”, desmistifica o coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Tiago Pereira. Os problemas surgem quando esta culpa é não adaptativa, ou seja, “quando se torna exagerada e permanece, acabando por ter impacto na qualidade de vida da pessoa” .
O “balde de água fria” que gelou Maria Martins chegou através de uma chamada telefónica. Em meados de outubro, uma colega do hospital onde trabalha, na zona Norte do País, ligou-lhe a avisar de que estava infetada e aconselhou-a a fazer o teste. A enfermeira não tinha quaisquer sintomas; mesmo assim, resolveu autoisolar-se. “Já era demasiado tarde, o mal estava feito”, lamenta-se. Os sintomas surgiriam nos dias seguintes – os seus e os do pai e do filho, que viviam na mesma casa.
Como a febre teimava em não baixar, o rapaz de 22 anos foi admitido nos cuidados intermédios e precisou de receber oxigénio. O seu único fator de risco era a obesidade. Esteve hospitalizado nove dias. “É muito difícil saber que se tem um filho no hospital e não poder acompanhá-lo”, diz. Alguns dias depois, seria a vez de o pai da enfermeira ser internado, mas os seus 84 anos tornavam o prognóstico muito mais reservado.
Ao fim de mais de 20 dias, a enfermeira testou negativo. O filho também se viu livre do SARS-CoV-2; já o pai continuava a inspirar cuidados. O patriarca desenvolvera uma infeção urinária que não lhe dava tréguas.
Venceu o vírus, mas no dia seguinte a ser transferido para uma enfermaria comum, não resistiu mais. Após 16 dias de internamento, a 17 de novembro, Maria Martins recebeu a notícia da morte do pai.
“Não me parece que ele tenha morrido da Covid-19, mas a doença terá contribuído para o fragilizar. Provavelmente, sem ela, não teria apanhado a infeção urinária… Não me faz bem pensar se foi disto ou daquilo. Essa é uma incógnita que vai ficar”, resigna-se.
A falta da despedida
A dúvida nem sempre é boa conselheira e pode ser geradora do mesmo sentimento de culpa provocado pela certeza. “Se alguém for muito inseguro, perante a dúvida, pode assumir-se como culpado”, explica Eduardo Carqueja, diretor do Serviço de Psicologia do Hospital de São João, no Porto. “Mais do que ter sido realmente o causador do contágio, é a perceção de ter sido o culpado que destabiliza as pessoas”, reconhece o psicólogo.
O rapaz de 22 anos
foi hospitalizado e
precisou de receber
oxigénio. O seu
único fator de risco
era a obesidade
Durante o período de isolamento, Maria Martins sentiu-se invadida por uma profunda revolta interior. “Para quê tantos cuidados se eu fiquei doente e todos acabaram infetados?” A seguir, reconsiderava, e pensava que, se não tivesse tido precauções, tudo poderia ter corrido pior. “Mas não fiquei revoltada contra quem me contagiou. Ela não tem culpa”, afirma, apesar de nem sempre ter demonstrado a mesma empatia para consigo mesma. “Sentia-me responsável. No entanto, conseguia ter momentos de lucidez, em que pensava que não tinha feito nada com intenção e que tinha tido todos os cuidados possíveis”, racionalizava.
A enfermeira ainda não encontrou uma “arma milagrosa” que a ajude a ultrapassar o facto de não ter estado com o pai nos seus instantes finais. Contudo, tem-se esforçado por lembrar que esteve sempre presente ao longo da sua vida.
“A culpabilidade que já se sente habitualmente quando se receia ter infetado o outro, embora nunca se possa ter a certeza, ou por não se ter dito tudo o que se gostaria, agrava-se quando há uma morte e as pessoas não se conseguem despedir”, descreve Carlos Góis, coordenador da Consulta do Luto do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte. Esta “despedida incompleta” tem de ser retomada, aconselha o psiquiatra. “É muito importante ter a noção de que se deixou o outro partir e ritualizar a despedida, nem que seja virtualmente, repetindo o que se teria dito ou escrevendo uma carta. São momentos muito íntimos, que não são para ser feitos à pressa, e podem contar com o apoio de um terceiro elemento”, sugere.
“Tudo isto é muito recente. Não vou dizer que seja proibido falar sobre o que se passou, mas eu e o meu filho ainda não analisámos aqueles dois meses [outubro e novembro]”, confidencia Maria Martins. Tem-se vindo a apaziguar também graças ao apoio psicológico que foi posto à sua disposição. “É bom haver alguém que nos diz que estamos a pensar mal e que nos traz outras perspetivas.”
Contágios em família
“Ninguém quer ser o agente transmissor”, assegura o médico de saúde pública André Peralta Santos, antes de sublinhar a elevada infecciosidade da Covid-19. Em Portugal, nos poucos casos em que se consegue determinar a origem do contágio (apenas 20%), sabe-se que cerca de 60% acontecem no contexto familiar. O médico nota que o contágio no domicílio origina, habitualmente, pequenos surtos, com três a cinco casos confirmados.
Uma investigação divulgada pela prestigiada publicação científica The Journal of the American Medical Association analisou mais de meia centena de estudos relacionados com a transmissão da doença no domicílio. Ao todo, foram escrutinados dados de mais de 77 mil participantes. Concluiu-se que, quando um indivíduo está infetado, contagia, em média, 16,6% do agregado familiar – uma em cada seis pessoas. “É indicativo de que vale a pena protegermo-nos mesmo quando existe alguém doente na família”, congratula-se André Peralta Santos. Mas nem sempre é possível.
“Chegámos a pensar que podíamos perder o bebé.” Passaram mais de dois meses e Manuel Rodrigues, 42 anos, continua a ter dificuldade em proferir a frase. No início de novembro, a Covid-19 veio perturbar a felicidade de estar à espera do terceiro filho.
Quando surgiu a notícia de um surto no hospital do Centro do País onde o cardiologista trabalha, passou logo a andar de máscara em casa. Sem sintomas, foi submetido a um teste de rastreio. O resultado positivo chegou perto da meia-noite. No dia seguinte, seria a vez de a mulher, grávida de nove semanas, ser testada. Desta vez, o resultado positivo não era sinónimo de boas notícias. Vários estudos indicam que as grávidas infetadas com SARS-CoV-2 têm uma maior probabilidade de dar à luz prematuramente.
“Nos primeiros dias, senti muito o peso da responsabilidade de ter trazido o vírus para casa”, confessa o médico. “Desde o início dos sintomas até à reavaliação do bebé, vivemos quatro semanas de muita preocupação”, conta Manuel Rodrigues.
A angústia foi aliviando à medida que a evolução da doença se mostrava benigna para toda a família. As crianças, de 3 e 1 anos, manifestaram sintomas ligeiros. O cardiologista teve muita tosse e, apesar de sofrer de asma, Sofia Rodrigues só sentiu dores de cabeça. A tranquilidade regressou depois de a obstetra confirmar que estava tudo bem com a bebé. “Foi fundamental não ter havido consequências negativas para conseguir pôr um ponto final no processo. Se tivesse sido diferente, talvez tivesse implicado mudanças profissionais…”, admite.
“O desfecho não é o único fator de culpabilização, mas desempenha um papel”, corrobora o psicólogo Tiago Pereira. “Há situações que têm impacto nas pessoas devido à sua gravidade. Porém, dependendo das suas fragilidades, também há quem se sinta culpado à mínima coisa”, nota.
De acordo com o psiquiatra Carlos Góis, terão mais tendência para se sentir culpados aqueles que têm uma personalidade ansiosa. Também quem já sofreu de depressão corre mais riscos, assim como as pessoas mais inseguras e dependentes, que valorizam muito a aprovação dos outros.
A culpa é do vírus
Tinha acabado de confirmar que estava infetada pelo SARS-CoV-2, mas não seria esse o maior choque daquele longo dia da vida de Sara Sousa, 42 anos. Isolada numa sala de sua casa com duas paredes envidraçadas, viu o filho de 9 anos aproximar-se de outro lado do vidro para lhe dizer que estava com febre. “Foi o primeiro momento em que chorei”, recorda.
Sara Sousa é responsável pelo departamento de Recursos Humanos da Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso, que soma cerca de 400 trabalhadores e tem vagas para 350 utentes. Sentiu-se na obrigação de ajudar a realizar os testes de rastreio, que seriam fundamentais para controlar um surto numa das unidades da instituição. “Havia profissionais que não se podiam ir embora, e eu senti que tinha de estar ao lado deles”, justifica.
Algo não estava bem, mas o cansaço que sentia atribuía-o ao excesso de trabalho e ao stresse dos últimos dias. No início de abril, apareceram as dores de cabeça e a febre baixa. E, se inicialmente desvalorizou os sintomas, quando dois dias depois surgiram dores no corpo muito fortes, não teve dúvidas de que tinha sido infetada. Autoisolou-se imediatamente, ainda antes de receber o resultado do teste. “O meu maior receio era ter contagiado alguém e achei logo que seria uma grande sorte se não tivesse acontecido.”
Depois de confirmado o diagnóstico, é mais fácil reforçar os cuidados que previnem o contágio dentro de casa, mas, muitas vezes, a transmissão acontece antes disso, o que leva muitas pessoas a culpabilizarem-se por terem desvalorizado os sintomas iniciais. “Uma coisa é eu contagiar alguém sabendo que estava positivo; outra é eu infetar alguém sem saber que estava doente. Não é comparável”, afirma o psicólogo Eduardo Carqueja.
“No primeiro caso, a culpabilidade é real, porque não tomei medidas quando sabia que estava doente. Agora, quando as pessoas não sabem que estão infetadas, não há intencionalidade. O seu comportamento esteve de acordo com a informação de que dispunham naquele momento, que não é a mesma de agora”, esclarece.
Primeiro, revelou sintomas o filho de Sara Sousa; alguns dias depois seria a vez dos pais, ambos médicos. O pai, de 68 anos, apenas teve febre dois dias. A mãe, de 67, sentiu um cansaço “brutal” e teve febre alta. A falta de força física – até alimentar-se exigia um grande esforço – levou-a às urgências. A matriarca, que sofre de insuficiência cardíaca, passou o dia no hospital. “Foi a minha segunda grande quebra por me sentir a causa das coisas”, conta Sara Sousa, que vive com o filho numa casa ao lado da dos pais. Uma vez que estavam os quatro infetados, acabaram por ficar juntos na mesma habitação; os adultos só conviviam de máscara, e por breves momentos.
Existe o risco de quem contagiou acidentalmente alguém se sentir responsável pelas consequências da doença. “Parece que sou eu que estou a incutir sofrimento a alguém de quem gosto muito. Se a outra pessoa fica com falta de ar, sinto que a culpa é minha, mas não é. A culpa é do vírus”, enfatiza o psicólogo Eduardo Carqueja. “É preciso trabalhar essa distinção entre o eu que transmite a doença e o vírus que é o causador dos danos”, nota.
Durante todo o período de isolamento, mais de um mês, Sara Sousa manteve-se em teletrabalho. “Por um lado, foi bom, fez-me sentir presente e eu sabia que era necessária; por outro, talvez tenha comprometido um bocado a recuperação. Descansei muito pouco”, admite. Francisco ficou sempre junto da mãe. Sentiu febre, dores de cabeça e cansaço, o que o impediu de assistir às aulas à distância. Também perdeu o paladar e o olfato. Em pouco tempo, porém, recuperou totalmente.
Apesar de estar ocupada, não deixava de pensar: “O que fui eu fazer?” Sentia-se culpada por se ter infetado e também por não ter conseguido proteger os seus. Procurava encontrar lógica para tudo o que estava a acontecer. “Mas às vezes é impossível encontrar alguma lógica que nos traga conforto.”
À tristeza e à ansiedade que sentia juntava-se o medo do desconhecido. A angústia de não saber o que acontecerá a seguir é uma das sensações predominantes que o psiquiatra Carlos Góis identifica em quem vê entes queridos adoecerem. “Mesmo que a letalidade da doença seja baixa, quando se trata dos nossos, o que queremos é que a probabilidade seja zero”, ilustra.
“Não vivi a doença com o entusiasmo e a alegria do Cristiano Ronaldo [que esteve infetado em outubro]”, compara Sara Sousa. “Senti essa postura dele quase como desinformação, como se as pessoas que sofrem com a doença fossem fracas, o que aumenta a culpabilidade, porque põe-nos a pensar no que temos de errado para não sermos tão fortes”, reflete.
Eduardo Carqueja acredita que o estigma em relação às pessoas infetadas ou que transmitem o vírus tem vindo a diminuir porque “o círculo começa a apertar-se”. Agora, “já quase todos conhecemos alguém que teve a doença e que, se calhar, a transmitiu a alguém. Isso retira culpabilidade porque somos mais bondosos com as pessoas que conhecemos.”
Só em outubro, mais de seis meses após o diagnóstico, Sara Sousa deixou de ser ocasionalmente invadida por um cansaço excessivo, sem razão aparente. Tal como os pais, ainda sente algumas perturbações ao nível da memória, da concentração ou da tolerância à frustração. No entanto, conseguiu deixar o sentimento de culpa para trás.
Não ficar preso aos “ses”
A cuidar de doentes com Covid-19 desde março, Guilherme Magalhães, especialista em Medicina Interna, viu-se inesperadamente no lugar dos seus pacientes, em agosto. Agora, pode dizer-lhes: “Eu já passei pelo mesmo e sei que é frustrante, mas vai passar.”
“Sentia-me
responsável. Mas
tinha momentos
de lucidez, em que
pensava que não
tinha feito nada
com intenção”
Ao fim de uma semana de 80 horas de trabalho no hospital Curry Cabral, em Lisboa, pensou que era normal sentir-se tão cansado e acreditou que a folga do dia seguinte seria suficiente para recuperar. Porém, quando acordou, percebeu que aquele era um cansaço como nenhum outro. Decidiu fazer o teste. Seguiu-se “o pavor de ter infetado alguém”.
A mulher, enfermeira, soube que tinha sido contagiada pelo marido 48 horas depois. “E ficámos confinados em casa com três crianças em idade pré-escolar, cheias de energia”, remata o médico de 38 anos. Outra das suas preocupações eram os sogros, que mantinham contacto com os netos. “Questionei-me se não teria passado uma linha cinzenta ao ter estado com eles no fim de semana anterior…” O diagnóstico não se confirmou.
Ao fim de sete dias de isolamento, viu-se obrigado a ir ao hospital devido às dores intensas nas costas. A TAC revelou imagens sugestivas do início de uma pneumonia por Covid-19. E acabou por passar dois dias internado no hospital onde sempre estivera na linha da frente.
Esteve 15 dias em isolamento com a família e outros tantos sozinho, já que era o único que continuava positivo. Durante esse período, foi inevitável pensar no que teria falhado. “É típico dos médicos, porque somos um bocadinho obsessivo-compulsivos”, diz. Guilherme Magalhães não nega que se sente “um abalo quando algo assim acontece”, apesar de todos os cuidados. Por isso, reforça, “é fundamental ter o máximo de precauções, porque mesmo respeitando todas as medidas o contágio pode acontecer”.
“A oração ajudou-me imenso a ultrapassar a situação. E o mindfulness foi útil para perceber que os ‘ses’ são perigosos. Não devemos ficar presos no passado. Devemos olhar para o futuro e pensar no que podemos retirar da experiência que estamos a viver”, aconselha.
“A culpa do contágio não é de ninguém. O vírus é da Natureza, e não devemos piorar ainda mais a nossa situação com pensamentos negativos em relação a nós próprios. É natural que surjam, mas não devemos massacrar-nos com eles”, desdramatiza.
Regressar ao trabalho na enfermaria dos doentes com Covid-19 foi o que mais lhe custou. “Como nunca descobri como apanhei o vírus, fica sempre o receio de voltar a passar pelo mesmo.”
O psicólogo Tiago Pereira associa uma maior probabilidade de cometer erros à chamada fadiga da pandemia: “É natural que nos sintamos cansados deste processo e que possamos cometer mais falhas, porque estamos menos vigilantes do que em março, quando tudo começou.”
Desde o início da pandemia, Guilherme Magalhães já fez mais de 20 testes. E continua a fazê-los com regularidade, porque há sempre um ou outro colega que se infeta, “em regra, fora do hospital”. Conhece, até, quem faça o rastreio quinzenalmente. Um teste realizado no momento certo pode poupar muito sofrimento.
Um pesadelo com os mais queridos
“Quantos de nós estarão infetados?” A pergunta assinala o início do pesadelo vivido por Sofia Felicíssimo, 44 anos, e pela sua família.
Têm mais tendência
para se sentir
culpados os
de personalidade
ansiosa, assim como
quem já sofreu
de depressão
No início de junho, sentiu uma tosse que a fez pensar que algo de errado se passava. Imediatamente, decidiu isolar-se e telefonou para a linha SNS 24, que a pôs em contacto com a médica de família. As suas alergias teriam voltado a fazer das suas, e disseram-lhe para fazer a sua vida normalmente. Por isso, ao contrário do que fizera na noite anterior, Sofia Felicíssimo jantou com o marido e com os três filhos. No dia seguinte, como a avó de 94 anos tinha sofrido uma queda e estava completamente dependente, foi ajudar a sua mãe a cuidar dela.
O cansaço, a tosse e a falta de ar intensificavam-se. Foi a pé a um hospital privado próximo de sua casa, em Lisboa. “São as alergias”, voltaram a repetir-lhe, e disseram-lhe que não valia a pena fazer o teste de rastreio da Covid-19. Voltou para casa. Desde o início dos sintomas, não tinha regressado ao colégio de que é proprietária, que recebe crianças até aos 6 anos, nem à agência onde trabalha como agente imobiliária.
O estado de saúde da sua avó degradou-se – já não reconhecia ninguém, nem conseguia falar –, e Sofia foi acompanhar a mãe nesse momento de dor. Os tios também foram ao seu encontro. Acabou por ser necessário chamar o INEM para levar a idosa para o hospital. Seria a última vez que a viam.
Quando os médicos comunicaram a morte da matriarca, nesse mesmo dia, informaram que fazia parte do protocolo realizar um teste à Covid-19. O resultado chegou 24 horas depois. A avó estava positiva.
Sofia Felicíssimo apressou-se a falar das suas “alergias” e já nem precisava da análise para ter a certeza de que estava infetada, mas foi testada, tal como a restante família – a mãe, o marido, os três filhos e os tios. Todos estavam positivos, exceto o tio e os seus filhos de 12 e 18 anos. A sua casa ficou separada em dois. De um lado, ficava Sofia, o marido e a filha de 5 anos; do outro, os adolescentes.
Todos pareciam estar a evoluir favoravelmente. Só a tia Maria Emília Apolinário, 62 anos, começou a piorar e acabou por ser internada com uma pneumonia, no final de junho, no hospital de Santa Maria. Só teria alta 30 dias depois, 14 deles passados nos cuidados intensivos, onde chegou a estar ventilada.
“Achei que a minha tia podia não sobreviver”, reconhece Sofia Felicíssimo. Um médico disse-lhes para se prepararem para o pior e pôs-se a hipótese de Maria Emília ser ligada à ECMO, uma técnica de suporte vital extracorporal capaz de substituir o funcionamento do coração e dos pulmões. Melhorou antes disso e não foi necessário.
“No início, sentia-me muito culpada. Sentia que este caos tinha sido causado por mim, mas um médico amigo dizia-me que não tinha culpa nenhuma”, conta. Também a prima lhe disse que, acontecesse o que acontecesse à mãe, então ainda internada nos intensivos, não havia culpas a atribuir. “Uma coisa é sabermos racionalmente que não temos culpa, outra é o que sentimos”, diz Sofia Felicíssimo.
A mãe e o marido ficaram negativos ao fim de 14 dias. Já a agente imobiliária esteve 40 dias infetada, sempre acompanhada da filha mais nova. “Pareceram anos”, garante, antes de acrescentar: “Tentava dormir o máximo de tempo possível para ver se o tempo passava.” E era no banho que aproveitava para chorar sem os filhos verem. “A preocupação era muita”, diz.
A tia teve alta a 20 de julho. Só em outubro, quando lhe ligou para desejar feliz aniversário, teve coragem de lhe pedir desculpa por a ter contagiado. Do outro lado do telefone, a resposta veio em forma de raspanete: “Eu não quero que tenhas esses sentimentos. Tu fizeste tudo bem.”
Ter falado com a tia foi essencial para ultrapassar a culpa, mas durante quatro meses carregou-a sozinha. “É importante falar, procurar ajuda e não sofrer tudo sozinho”, aconselha.
Caminho para a depressão
Pedir desculpa é uma importante ação reparadora, apesar de haver outras formas de dar um propósito ao que se viveu – por exemplo, aumentando os cuidados preventivos ou ajudando outras pessoas que estão a viver situações semelhantes.
Hoje, Sofia já aceita que fez tudo o que podia, mas ainda não recuperou totalmente. “Já passei por situações muito complicadas na vida e sempre achei que não tinha tempo para depressões. Agora, tive de ter”, revela. Relaciona a depressão com toda a experiência traumática que sofreu. “Passei a andar sempre triste e nunca fui uma pessoa triste. A morte da minha avó já era anunciada e não era razão para uma tristeza tão profunda.” Por isso, aconselharam-na a procurar apoio psicológico.
Tentar ignorar o que se está a sentir não é solução. Não reconhecer, e aceitar, sentimentos como a culpa ou a vergonha pode dar origem a alterações de comportamento que refletem esse sofrimento latente, como insónias, tristeza ou irritabilidade. Se não forem enfrentados, sintomas como estes podem conduzir a quadros de ansiedade, depressão ou mesmo de stresse pós-traumático. Também o consumo de álcool, drogas ou medicamentos pode ser agravado neste contexto. Por isso, é fundamental agir antes de estas perturbações se instalarem.
Os familiares e amigos devem estar atentos a estas mudanças, e também a atitudes de isolamento ou a generalizações como “nunca faço nada de jeito” ou “nunca vou ultrapassar isto”. “O silêncio é difícil de quebrar e, se se mantiver, dificilmente se procura ajuda”, sublinha Tiago Pereira.
Também fisicamente Sofia Felicíssimo não se sente a 100 por cento. O pneumologista que a acompanha acredita que poderá ter desenvolvido asma na sequência da infeção. Continua a ter violentos ataques de tosse e o cansaço não se foi embora. A capacidade de concentração também ainda não é a mesma, nem a memória. Foi forçada a acalmar a sua rotina agitada.
O surto de Covid-19 impediu a família de estar presente no funeral da avó. Decidiram que só iriam ao cemitério, todos juntos, depois de recuperarem, o que aconteceu três meses após a morte da matriarca. “É um luto mais difícil porque não pudemos despedir-nos da pessoa de que gostávamos”, explica. Mas já consegue olhar para o futuro com esperança. “Houve momentos em que achei que não ia voltar a ser eu, e que a minha tia não ia recuperar. Agora, tenho a certeza de que vamos ficar bem. Só que vai demorar.”
Como lidar com a culpa
Existem várias estratégias que podem ajudar a ultrapassar a dor de ter contagiado alguém com Covid-19
ACEITAR E PEDIR DESCULPA
Quem tem empatia pelo sofrimento dos outros, é natural que sinta culpa por ter prejudicado alguém, inadvertidamente. Pedir desculpa pode ser importante para começar a pacificar-se com esse sentimento e, provavelmente, descobrir que a outra pessoa não o culpa.
RECONHECER A AUSÊNCIA DE INTENÇÃO
Lembrar que se fez o melhor possível, tendo em conta a informação disponível na altura, é um exercício de memória essencial para interiorizar que o contágio não foi deliberado.
PARTILHAR A DOR
É fundamental combater sentimentos de isolamento e solidão, verbalizando o que estiver a sentir com alguém de confiança. Essa partilha pode contribuir para travar pensamentos culpabilizantes recorrentes e trazer novas perspetivas.
MUDAR COMPORTAMENTOS
Passar pela experiência negativa de, eventualmente, ter contagiado alguém, pode ser uma oportunidade para alterar comportamentos, por exemplo, reforçando os cuidados preventivos, fazendo pedagogia junto dos outros ou realizando atividades reparadoras que ajudem a dar significado ao que está a viver.
ESTAR ATENTO AOS SINAIS
Não consegue explicar por que motivo passou a dormir mal? Sente uma tristeza que não percebe de onde vem? Irrita-se com mais facilidade? O seu apetite alterou-se? Esteja atento a estes e a outros sinais do quotidiano, que podem significar dificuldade em lidar com a culpa ou com outros sentimentos negativos.
PROCURAR AJUDA
Em alguns casos, pode ser importante conversar com um profissional de saúde para organizar mais facilmente o que estiver a sentir. A linha telefónica SNS 24 dispõe de um serviço de aconselhamento psicológico, gratuito e disponível 24 horas por dia, basta ligar 808 24 24 24.