Um cartão de residência com todos os campos por preencher, mas já assinado por uma inspetora coordenadora superior, foi guardado num dos cofres da Direção Regional do Norte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). O documento foi ali depositado depois de ter circulado entre alguns funcionários, que lançaram o alarme por temerem que outras autorizações de residência, assinadas em branco, pudessem não ter sido detetadas internamente e estivessem a ser usadas por pessoas que não cumpriam os requisitos legais para permanecer em Portugal. A inspetora coordenadora superior do SEF que assinava o documento, a que a VISÃO teve acesso, era Cristina Gatões, a diretora desta força policial que esta quarta-feira se demitiu na sequência das pressões sobre a morte de um cidadão ucraniano no Aeroporto de Lisboa. Esta responsável era, à data da publicação da história na VISÃO, em 2018, diretora nacional adjunta do SEF.
Trata-se do cartão de residência nº 88679. A numeração indica que terá sido assinado pouco tempo antes de a inspetora ser nomeada, para o atual cargo, pela então ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, a 17 de outubro de 2017 (justamente na véspera de a ministra se demitir do cargo). Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra, Cristina Gatões vem da carreira de investigação e fiscalização do SEF. Na data em que foi assinado o cartão em branco, era diretora regional do Norte.
Vários funcionários do SEF confirmaram à VISÃO que o documento é autêntico. Cristina Gatões foi confrontada com estas informações, mas a resposta veio em nome da direção nacional. Esta confirmou que “o original” do cartão de residência se encontrava “inutilizado” dentro de um cofre da Direção Regional do Norte. Questionada sobre se entendia estar em causa um procedimento que punha em risco a segurança nacional, a direção desta polícia criminal desvalorizou, respondendo que “a situação foi desde logo detetada, tendo sido cumpridos todos os mecanismos instituídos de controlo e segurança na emissão de documentos, nunca tendo o referido documento saído do controlo e posse do SEF”.
As respostas confirmam a existência do cartão e não negam que a assinatura fosse da então diretora nacional adjunta. Em nenhum momento a direção do SEF esclareceu por que razão Cristina Gatões assinou aquele documento, antes de estar preenchido com os dados pessoais, fotografia e impressão digital da pessoa que o requeria. Certo é que o caso levantava questões sobre as motivações por detrás de tal ato, que poderiam ir do simples desleixo a ações mais gravosas. Apesar de poderem estar em causa indícios criminais, a situação não foi reportada ao gabinete de inspeção do SEF para que este investigasse se era a primeira vez que Cristina Gatões alegadamente violava as normas ou quais os motivos para o fazer. A informação também não foi partilhada com o Ministério Público. “Tendo sido cumpridos os mecanismos de controlo e segurança internos, não houve lugar à abertura de processo de averiguação”, justificou a Direção Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Também o ministro da Administração Interna desvalorizou o incidente. Já depois dos esclarecimentos daquele serviço, Eduardo Cabrita respondeu ter “plena confiança na Direção Nacional do SEF no exercício das suas competências próprias”.
Para que serve o cartão
Há diversos tipos de autorizações de residência – temporárias ou permanentes. Um cartão como o que está agora guardado num dos cofres do SEF destina-se a um cidadão europeu que queira continuar em Portugal depois de cinco anos a viver no País; ou a um cidadão extracomunitário que seja ascendente, descendente direto ou casado com um cidadão da União Europeia residente em Portugal. Um europeu terá de pedir este cartão decorridos cinco anos da chegada ao País, uma vez que, durante esse primeiro período de permanência, precisa apenas de um certificado preenchido pela Câmara Municipal.
Já um cidadão extracomunitário deverá fazer esse pedido no SEF antes de expirar o prazo do visto de entrada em Portugal. O interessado terá, depois, de apresentar à mesma polícia uma série de documentos que comprove que vai viver no País, que o familiar direto está mesmo a residir cá ou que, por exemplo, não se uniu a um residente comunitário através de um casamento de conveniência. A partir daqui, o processo segue para um instrutor, a quem compete verificar, no prazo de 90 dias, se aquele cidadão preenche os requisitos para viver em Portugal. Só depois da conclusão dessa investigação, o cartão é assinado e dado a quem o pediu – tendo depois de ser renovado periodicamente. A partir daí, o seu titular passa a poder circular livremente pelo espaço Schengen.
Segurança nacional em causa
Neste caso, a então Direção do SEF respondeu que o cartão era de um cidadão britânico, “com residência em território nacional desde 1996”. No entanto, na mesma resposta, a direção nacional referiu que o cartão não estava a ser usado. A forma como o então diretor, Carlos Moreira, terá lidado com o incidente com a sua número dois causara indignação entre alguns funcionários do serviço que se mostravam preocupados com a possibilidade de haver uma rede de corrupção no SEF, semelhante à que alegadamente terá sido montada entre aquele serviço e o Instituto dos Registos e Notariado no caso Vistos Gold (em que, entretanto, quase todos os arguidos foram absolvidos em julgamento). “E se este cartão não foi o único? Isto é como ter um passaporte em branco. Não se sabe para quem vai”, intrigava-se uma fonte, que pedia o anonimato. Por“razões de segurança acrescida”, esclarecia o SEF, estes cartões passaram a ser produzidos na Imprensa Nacional Casa da Moeda, à semelhança do que já acontecia com as outras autorizações de residência.
“Isso é muito grave. Não se pode facilitar nestas questões de segurança interna. Não só pelo terrorismo, mas também pela criminalidade organizada. Isto ou nos deixa nervosos ou em pânico.” Foi assim que o professor José Manuel Anes, membro de diversos organismos ligados à segurança e criminalidade, reagiu ao saber da existência de um cartão de residência assinado em branco no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. “Espero que a Direção Nacional dê uma resposta apropriada porque a questão é, no mínimo, preocupante”, acrescenta o ex-presidente do Observatório para a Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), sublinhando que uma situação como aquela não podia deixar de dar origem “a um processo disciplinar” e a “uma eventual suspensão”.
O general Garcia Leandro, que também presidiu ao OSCOT, dizia nem precisar de ver o cartão em causa para poder dizer: “É evidente que só pode ser assinado depois de tudo estar preenchido”: “Nestas coisas da segurança não pode haver favores, nem falhas, nem distrações.”
Manuela Niza, presidente do Sindicato dos Funcionários do SEF, não quis comentar. Apenas lamentou que, havendo “tantas e tão boas razões” para se falar de um serviço de “excelência” apesar dos seus “fracos recursos”, “sejam estas as notícias que chegam ao público”.
Acácio Pereira, presidente do Sindicato da Carreira de Inspeção e Fiscalização do SEF, não esconde a surpresa: “Não é prática um documento ser assinado em branco. O correto é ser assinado após as menções variáveis (o nome e os restantes dados) terem sido postas.” Embora tenha sido cauteloso nas palavras e tenha reconhecido que pode não ter havido “uma utilização abusiva”, também admitia que o ato era censurável: “Se me pergunta se eu o faria, não o faria. As minhas intenções até podiam não ser más, mas há sempre o risco de outro funcionário se poder servir daquela assinatura para pôr lá o nome de quem quiser.”
Líbios em parte incerta
O episódio do cartão em branco não foi o único a fragilizar a então diretora-adjunta do SEF, que viria a ser nomeada diretora daquele serviço e a desempenhar esse cargo até à presente demissão. Cristina Gatões foi investigada pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Coimbra, por suspeitas de, enquanto diretora regional do Centro, ter usado o carro de serviço para fins pessoais. Se esse processo acabou arquivado em 2015 – porque o Ministério Público não conseguiu provar que as paragens que fazia para levar e deixar os filhos na escola, por exemplo, fugiam ao percurso normal entre a casa e o trabalho, ou significavam quilómetros a mais na viatura de serviço –, havia, pelo menos, outra decisão sua, enquanto diretora regional do Norte, a levantar suspeitas internamente.
Em outubro de 2015, Cristina Gatões concordou com o indeferimento de dois pedidos de autorização de residência, em Portugal, feitos por dois jovens de nacionalidade líbia. Tinham sido encontrados fortes indícios de que não vnham estudar em qualquer estabelecimento do ensino superior português, ao contrário do que alegavam. Depois, em agosto de 2016, a atual diretora-adjunta do SEF voltou atrás e deferiu o pedido. Em resposta à VISÃO, a direção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras alega que, depois de o primeiro pedido ter sido indeferido por não estarem reunidas “as condições”, “os cidadãos estrangeiros fizeram o pedido de visto adequado à finalidade da estada em Portugal, reunindo a documentação exigida para a concessão da autorização de residência”, pelo que aí já foram atendidos.
De acordo com informações recolhidas pela VISÃO, entre um pedido e outro terá havido uma série de reuniões com uma escola de aviação para onde, supostamente, Mohamed e Muaad iriam estudar. Quem estava com o processo não quereria dar a autorização para os líbios entrarem em Portugal, mas Cristina Gatões assim o terá decidido. Hoje, Mohamed e Muaad estarão em paradeiro incerto, de acordo com fontes ouvidas pela VISÃO, que pediram o anonimato. Sobre isto, a direção do SEF respondeu apenas que “essa matéria” era “de conhecimento reservado às autoridades competentes”