É através da descrição de diversos casos que Cláudia Morais, psicóloga especialista em terapia para casal, tenta dar ferramentas para que cada pessoa consiga reconhecer e eliminar comportamentos tóxicos nas suas relações amorosas. A autora de Sobreviver à Crise Conjugal, O Amor e o Facebook, Os 25 Hábitos dos Casais Felizes e Continuar a Ser Família Depois do Divórcio divide o novo livro (€15,50, Manuscrito) em duas parte. O primeiro capítulo de O Problema Não Sou Eu, És Tu contempla exemplos específicos de comportamentos que podem ser rotulados de violência emocional para ajudar a identificar abusos emocionais e qual a forma mais adequada de agir em cada situação. Além disso, Cláudia Morais chama a atenção para seis pontos: O abusador e a vítima vivem em realidades distintas; Desencorajamento em vez de apoio emocional; Crítica em vez de admiração; Indiferença em vez de empatia; Instabilidade em vez de paz; Culpa em vez de responsabilidade.
A segunda parte do livro revela como a violência emocional pode estar presente noutras relações, as consequências dos abusos e como recuperar de um relacionamento emocionalmente violento, mas também a melhor forma de gerir a questão dos filhos e, em caso de rutura, como deverá entrar numa nova relação.
Teve mais pedidos de ajuda durante os meses de confinamento?
Os últimos meses foram muito intensos com um aumento significativo dos pedidos de ajuda clínica. Desde março, passei a realizar todas as consultas por videoconferência, o que me impossibilitou de responder a todos os pedidos. Atualmente estou a realizar algumas consultas presenciais por semana, procurando responder aos casos mais vulneráveis, nomeadamente, a situações de violência doméstica.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, durante o período de confinamento, o número de casos de violência doméstica na Europa aumentou 60 por cento. Em Portugal, no mesmo período, o número de pedidos de ajuda por via telefónica e digital teve um aumento de 180% face ao primeiro trimestre do ano. Não houve um aumento significativo de situações novas, mas houve uma agudização de situações de violência que já existiam.
Quantos casos relata no livro e quais os critérios de escolha?
São dezenas de casos com o objetivo de ajudar a explicar as diferentes formas que a violência emocional pode assumir. Como explico no livro, nenhuma relação abusiva assume todas estas formas. Quando ouvimos falar de abusos emocionais, associamo-los a determinados comportamentos. Quando estes não estão presentes numa relação, pode tornar-se mais difícil reconhecer que se trata de um relacionamento abusivo. Por exemplo, uma mulher pode sentir-se tranquila porque o namorado nunca a condicionou em relação ao dinheiro ou à forma de vestir, mas pode ser alvo de outras formas de violência, como a sabotagem, a chantagem emocional, a manipulação. Algumas pessoas associam a violência emocional aos insultos e às explosões, mas a verdade é que há muita violência a acontecer em voz baixa, de forma velada.
De que forma o confinamento contribuiu para agudizar situações de violência já existentes?
Ainda é cedo para tirar conclusões precisas, mas a prática clínica e a literatura mostram-nos de forma muito clara que o isolamento social é um alimento para a violência. Essa é uma das estratégias de muitos abusadores: enfraquecer os laços familiares e sociais da vítima e, assim, ter mais espaço para exercer o seu controlo. Infelizmente, durante este confinamento, fui confrontada com alguns pedidos de ajuda de mulheres cuja situação escalou precisamente neste contexto.
Acontece em todos os estratos sociais ou em algum em particular?
A violência emocional é transversal a todas as classes sociais. Nas mais elevadas, os abusos também podem acontecer de forma mais sofisticada, mais ardilosa.
Qualquer um de nós pode, de repente, passar a ser abusador ou vítima? Ou existem padrões que definem a atitude?
Qualquer um de nós pode assumir um comportamento abusivo, mas isso é bem diferente de ser um abusador. A chantagem emocional ou outras formas de manipulação nem sempre acontecem de forma consciente e muito menos com a intenção de exercer poder sobre o outro. Numa relação abusiva, costuma haver essa consciência e por isso é que também é usual haver uma diferenciação clara entre os comportamentos que ocorrem em público e aqueles que ocorrem em privado. Do mesmo modo, qualquer um de nós pode ser vítima de comportamentos abusivos, mas alguns de nós terão maior vulnerabilidade à existência de uma relação abusiva.
A literatura e a minha prática clínica mostram que é mais provável que uma pessoa que tenha sido exposta à violência interparental e/ou que tenha crescido com um progenitor abusivo venha a estar numa relação abusiva. Nos homens, aumenta a probabilidade de virem a assumir comportamentos abusivos; nas mulheres, aumenta a probabilidade de virem a ser vítimas de abusos.
A baixa autoestima e o isolamento social são fatores que aumentam a probabilidade de uma pessoa ser vítima de violência.
Quando crescemos com cuidadores que nos valorizam, que valorizam os nossos sentimentos e as nossas necessidades e que se respeitam entre si, é mais provável que construamos relações saudáveis, marcadas pela negociação, pela igualdade e pelo respeito e que nos afastemos relativamente cedo de quem nos faz mal.
As histórias de amor sem birras não são histórias de amor?
Depende daquilo que entendemos por birras. Todas as pessoas têm momentos de irritabilidade e descontrolo. Os adultos também fazem birras, sobretudo quando se sentem cansados, inseguros, assoberbados, mas há uma diferença substancial entre sermos capazes de pedir desculpa pelo momento em que perdemos a cabeça e assumirmos de forma recorrente que a pessoa que está ao nosso lado é a culpada de tudo. As vítimas de violência emocional costumam sentir-se obrigadas a ir ao encontro das necessidades do(a) companheiro(a) com medo das suas birras. Esse pode ser um sinal de que a relação não é saudável.
Numa relação saudável, os membros do casal importam-se genuinamente com os sentimentos um do outro e as duas pessoas sentem-se livres, amadas e seguras na maior parte do tempo. Não vivem com medo, não vivem com a sensação de que estão a pisar ovos, não estão em constante hipervigilância.
Em que momento é que as birras do dia a dia deixam de ser saudáveis e passam a ser doentias?
As birras deixam de ser saudáveis quando não há a capacidade para reconhecer o dano que se provoca ao outro. Quando as birras passam a ser uma forma de impor a própria vontade, é provável que se trate de uma forma de violência emocional. Quando um dos membros do casal vive com medo de desagradar e, sobretudo, quando há “dois pesos e duas medidas”, dificilmente estamos na presença de uma relação saudável.
Qual o peso de uma birra numa relação destrutiva?
As birras são formas de impor a própria vontade. Numa relação saudável, há espaço para a negociação. Para que ambos possam “ganhar” e usufruir de uma relação saudável, ambos têm de “perder” através de cedências.
Numa relação marcada pelo respeito, há genuína felicidade na felicidade do outro, há vontade de ver a outra pessoa crescer, alcançar os seus sonhos e objetivos e há uma comunicação marcada pelo respeito pela diferença.
Numa relação abusiva, as birras são frequentes e danosas. Poucas coisas nos fragilizam tanto como a retirada do afeto por parte da pessoa que amamos. Quando ele(a) se zanga, quando amua, sentimo-nos tristes e pode ser tentador querer fazer alguma coisa para que se sinta bem. Quando esta dinâmica se cristaliza e um dos membros do casal passa a ter a obrigação de fazer todas as escolhas para agradar ao outro, a relação torna-se profundamente assimétrica.
As relações amorosas são sempre uma relação de poder?
As relações amorosas passam por uma fase que pode ser descrita como uma “luta de poder”. Na prática, há uma altura (depois da intensa ativação fisiológica do início da paixão) em que precisamos de dar voz às nossas necessidades e queremos que a pessoa que amamos seja capaz de dar importância, de mostrar que se importa e, claro, que seja capaz de fazer cedências. É natural que algumas áreas da vida sejam mais sensíveis do que outras e que em relação a alguns assuntos possamos centrar-nos mais em nós do que na pessoa que está ao nosso lado. Os processos de negociação e crescimento a dois não são sempre marcados pela serenidade. As discussões também fazem parte das relações saudáveis. Mas, numa relação saudável, os membros do casal aproximam-se mais facilmente das soluções de compromisso porque desejam genuinamente a felicidade mútua.
Violência física vs. violência verbal/emocional – uma é mais condenável do que a outra? Ou violência é simplesmente violência?
A violência física está mais diretamente associada à escalada do medo e ao risco de vida. Contudo, infelizmente, a violência emocional também pode implicar um aprisionamento crescente e até o risco de vida. Há muitas vítimas de violência emocional que me dizem “Ele nunca me tocou, mas…”, referindo-se às ameaças que são feitas de forma implícita, aos olhares e gestos que amedrontam e que, quando são reproduzidos de forma contínua, alimentam a sensação de desamparo e desespero. Infelizmente, a violência emocional também diminui gradualmente a autoestima e o prazer de viver das vítimas, o que ajuda a explicar por que motivos elas têm tanta dificuldade em partir para uma rutura.
Porque tantas vezes a vítima perdoa, arranjando justificações para os atos do abusador? É manipulação?
A violência emocional é quase sempre intercalada por períodos de lua de mel, com comportamentos que aparentam ser manifestações de amor genuíno e que contribuem para que a vítima se sinta confusa. Por exemplo, se uma pessoa tiver ao seu lado alguém que lhe diga constantemente que a ama, que não há ninguém no mundo mais importante do que ela e que mostre esse amor através de grandes gestos românticos, é mais difícil perceber que quando esse companheiro diz “É para o teu bem”, não está a ser sincero. A verdade é que o “É para o teu bem” pode estar associado à sabotagem, ao isolamento, à humilhação e a outras formas de violência. Quando um abusador se sente inseguro com o crescimento profissional da pessoa que tem ao seu lado e a chantageia com frases como “Se tu gostasses mesmo de mim…”, não está a mostrar o seu amor, está a tentar impor a sua vontade.
Quando o abusador é confrontado com as queixas da vítima e, sobretudo, quando essas queixas configuram o risco de rutura, acaba por mostrar a sua genuína aflição. O medo da perda é real e os sentimentos que mostra também, mas o compromisso com a mudança é inexistente. Como a vítima está emocionalmente envolvida, toma a aflição do abusador como um sinal de que o futuro será diferente. Na realidade, esse recuo em relação à ameaça de rutura é uma forma involuntária de perpetuar os abusos.
Num casal há silêncios piores do que berros?
O tratamento do silêncio é uma forma de condicionar o outro retirando-lhe o afeto, é uma forma de violência emocional. Nem todos os berros são exercícios de violência. Quando gritamos no meio de uma discussão, há uma escalada que é alimentada dos dois lados e não há um que se sente amedrontado.
O mesmo abusador pode aplicar vários tipos de violência emocional? Ou para cada abuso há um tipo de pessoa?
Os abusos emocionais são formas de uma pessoa manter o controlo sobre a outra. Como estão profundamente associados à insegurança e às falhas de caráter do abusador vão tomando formas diferentes em função daquilo que o assusta, em função daquilo que lhe traz a sensação de perda de controlo. A mesma pessoa pode assumir diferentes tipos de abusos, mas cada pessoa tem a sua personalidade e as suas intenções. Alguns abusadores têm um perfil mais explosivo e outros têm um perfil muito mais controlado.
Quais são os mais comuns em Portugal?
Todas as formas de abuso emocional que identifico no livro são relativamente comuns: a chantagem emocional, a humilhação (nem sempre sob a forma de insultos), a ameaça (tantas vezes de forma implícita), a sabotagem, a manipulação, o controlo do dinheiro, o isolamento social e familiar.
Uma boa autoestima ajuda a tomar melhores decisões na hora de ficar ou não numa relação doente?
Uma boa autoestima é um recurso importante na construção de relações saudáveis. Como referi antes, quando crescemos com adultos que nos oferecem o seu amor de forma clara e consistente e que nos ajudam a olhar para nós como merecedores de amor, é mais provável que consigamos aproximar-nos de pessoas que genuinamente nos queiram bem. A baixa autoestima, a ansiedade e o isolamento aumentam a probabilidade de alimentarmos crenças irracionais sobre nós, sobre aquilo que merecemos e sobre as relações afetivas. Muitas vezes, a vítima está convencida de que não voltará a encontrar alguém que a ame e que a valorize.
Quais são os sinais de alerta a que a vítima deve estar atenta?
Os sinais de alerta estão na própria vítima. Quando uma pessoa passa muito tempo triste, insegura, amedrontada, sem saber se está a fazer as escolhas certas para agradar à pessoa que ama é provável que esteja numa relação tóxica. Quando se sente recorrentemente sem energia e com sentimentos de culpa, dificilmente estará numa relação saudável.
Na prática, uma relação abusiva é uma relação que não traz paz. A pessoa que é vítima de violência emocional vive, no máximo, numa grande intermitência. As coisas ora podem estar muito bem, ora podem estar muito mal. Há períodos em que se sente amada e acarinhada (quando não há nada no seu comportamento que contrarie a vontade do abusador) e há períodos em que se sente profundamente insegura, culpada, com a energia drenada.
De que forma a “metáfora da bússola” pode ajudar?
Explicando a assimetria destas relações. Como o ponteiro de uma bússola, cujo magnetismo está em sintonia com o magnetismo da terra, à medida que os abusos acontecem, a atenção da vítima vai estando progressivamente centrada nas necessidades do abusador. No início, a pessoa está instintivamente centrada em agradar – é isso que a explosão hormonal provoca no nosso cérebro apaixonado. Depois, é o abusador que vai alimentando esses comportamentos com frases como “Se tu valorizasses a nossa relação…” ou outras formas de manipulação. Aquilo de que a vítima nem sempre se dá conta é o facto de haver dois pesos e duas medidas, porque as obrigações e as culpas estão sempre do mesmo lado.
Um exercício simples que ajuda a reconhecer a assimetria das relações abusivas é a inversão de papéis. Quando pergunto a uma vítima “E se fosse ao contrário? E se fosse você a dizer/ fazer isso?”, oiço recorrentemente respostas como “Eu seria incapaz de dizer/fazer isso” ou “Ele(a) não o admitiria”. Se a pessoa que está ao nosso lado diz ou faz alguma coisa que seríamos incapazes de lhe dizer/fazer, o mais provável é que também não seja justo que isso aconteça na nossa direção. Se ele(a) não admite que lhe digamos/façamos aquilo que nos diz/faz, trata-se de uma relação assimétrica e, provavelmente, abusiva.
Seguir a intuição pode evitar chegar à violência doméstica?
Depende. É verdade que, quando vivemos com a sensação de que há algo de errado na nossa relação, o mais provável é que haja mesmo, mas as vítimas de violência emocional são levadas a acreditar que há algo de errado no seu comportamento, na sua personalidade. Muitas vezes, a pessoa está convencida de que precisa de mudar para que a relação prospere e isso não é saudável. Aquilo que pode evitar a violência doméstica é o autocuidado, a manutenção de outras relações de proximidade e a procura de ajuda externa quando, pelo menos, um dos membros do casal não se sente seguro.