Esta é capaz de ser a história mais feliz com o final mais triste. Começou em 2014, quando a filha de Raquel caiu de uma cadeira de baloiço. No dia seguinte, como ganhara um alto na testa, a mãe levou-a ao médico. O veredicto foi quase imediato: aquele hematoma não podia ser um acidente. Em menos de nada, os serviços sociais ingleses levaram Audrey e entregaram-na a uma família de acolhimento.
Raquel só conseguiu recuperar a filha oito meses depois, após uma intensa luta nos tribunais ingleses que passou até por vindas a Portugal, buscas de registos médicos antigos e consultas de genética. Foi assim que descobriu que sofria de uma síndrome rara (síndrome de Ehlers-Danlos) que causava fragilidade dos tecidos e hematomas recorrentes – e que havia uma forte probabilidade de a filha o ter herdado. Apesar de tudo, parecia uma descoberta feliz: graças a isso, conseguia provar que não tinha maltratado a bebé e que não merecia ficar sem ela.
Raquel foi uma das mães retratadas em maio de 2016 numa reportagem da VISÃO sobre as famílias portuguesas que tinham perdido os seus filhos – temporária ou definitivamente – para os serviços sociais do Reino Unido. Em muitos casos, por um simples mal-entendido, uma denúncia falsa, uma injustiça num sistema ultra-zeloso de proteção de menores, em que um risco hipotético de danos emocionais futuros é suficiente para retirar uma criança aos progenitores.
Quando falou com a VISÃO em 2016, Raquel não tirava as mãos de um álbum de fotografias da filha, decorado com um laço rosa, que contava a história daqueles oito meses em que não pôde ser mãe. Dizia que o que mais lhe custava era todos esses momentos que tinha perdido, como a primeira vez que Audrey gatinhara. Andava a mil, esforçando-se por ser mais rápida do que as horas, a tentar recuperar esses momentos. Não sabia – ninguém sabia – que a doença rara que a levara a ficar oito meses sem a filha, a mesma doença que depois lhe tinha permitido recuperá-la, levaria ao mais injusto dos finais.
Em julho deste ano, Raquel morreu. Tinha 35 anos. A mulher que era uma esperança para as mães portuguesas que lutavam nos tribunais ingleses para recuperarem os seus filhos não resistiu a um aneurisma. No dia mais triste daquele mês, no quarto mais vazio do hospital, os médicos desligaram as máquinas. Raquel não conseguiu sobreviver para contar às filhas, de 6 e 5 anos, o tanto que batalhara por elas. Uns dias antes, tinha publicado fotos das meninas a chapinharem no mar, numas férias com a família alargada. Estavam felizes.
405 casos contra pais portugueses
Durante os tempos de guerrilha, Raquel tinha visto de tudo: “Foi uma brutalidade. Conheci pessoas que não viam os filhos há dez anos, que tiveram depressões enormes, que enlouqueceram.” Talvez por isso fosse especialmente ativa na ajuda a outros pais que estavam a passar pelo mesmo. O que lhe aconteceu, aconteceu também a Iolanda, a Paula, ou a Rita, num país onde as estatísticas mostram que a cada 15 minutos uma criança é retirada aos pais.
De 2014 a 2019, foram registados nos consulados de Portugal em Londres e Manchester 405 casos de mães e pais portugueses que viram os seus filhos serem levados pelos serviços sociais britânicos. A tendência tem sido crescente: segundo a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, em 2017, foram registados nos consulados 69 casos, mas, em 2018, já houve 89 processos movidos contra famílias portuguesas e, em 2019, os números dispararam ainda mais: 95 casos.
Em maio de 2016, quando a VISÃO fez a primeira reportagem sobre o tema, os consulados de Portugal em Inglaterra não sabiam dizer quantas famílias portuguesas tinham ficado definitivamente sem os filhos, porque os processos não eram acompanhados até ao fim. Desde então, algo mudou. Desta vez, a Secretaria de Estado apresentou esses números e garantiu que os casos têm sido “monitorizados com proximidade”. Na maioria dos que foram arquivados, os tribunais decidiram entregar as crianças à família alargada, no Reino Unido ou em Portugal. Em 40 processos, os menores foram entregues para adoção.
A realizadora Ana Rocha de Sousa conheceu alguns destes pais quando preparava a sua primeira longa-metragem, Listen. O filme, premiado em Veneza, é inspirado precisamente no drama de uma família portuguesa que tenta recuperar a guarda dos seus filhos, injustamente retirados pelos serviços sociais do Reino Unido, por suspeitas de maus-tratos. Ana Rocha de Sousa não quis falar desses casos à VISÃO por não querer que o seu filme fique “colado a uma história concreta”, mas contou em entrevista que o que descobriu “é muito mais violento do que o filme retrata”.
Raquel, que viveu na pele essa violência do sistema, dizia sempre que era preciso dar o benefício da dúvida aos pais. Afinal, a técnica dos serviços sociais também lhe tinha dito que ela magoara a filha porque estava deprimida e consumia drogas – e todos os exames provaram que não. Quando Iolanda Menino, outra das mães visadas na reportagem, começou a ser crucificada nas redes devido a uma atitude mais agressiva, Raquel defendeu-a: “Não consigo deixar de pensar no que ela está a passar. Não deixa de ser uma mãe que perdeu um filho.” Iolanda perdeu o bebé aos nove dias de vida, e nunca mais o recuperou.
Dias depois de Santiago ter nascido em casa, em Southampton, uma enfermeira tocou à campainha. Iolanda não sabia que essas visitas eram obrigatórias no Reino Unido. Não abriu a porta e isso foi suficiente para os alarmes soarem. Com a intervenção da polícia, os serviços sociais retiraram-lhe o filho. Em março de 2016, ela e o pai da criança, Leonardo, viram Santiago pela última vez. Viajaram para Lisboa e criaram uma página no Facebook: Our Baby Was Snatched by The Social Services (“O nosso filho foi roubado pelos serviços sociais”). Apesar de aconselhados a manterem alguma reserva e a apresentarem-se nos tribunais ingleses, não quiseram calar a injustiça que diziam estar a sofrer e foram por outro caminho. “A Iolanda transformou isto numa guerra contra o Estado inglês, não percebendo que primeiro tinha de recuperar o filho e depois então partir para a guerra”, comenta uma das pessoas que tentou orientá-la naquela época.
Passaram-se quatro anos e meio e aquela mãe nunca mais viu o filho. Quando a VISÃO quis saber o que tinha acontecido desde aqueles meses, Iolanda disse que nunca tinha desistido da luta e mostrou as bolsas que andava a bordar à mão, com o rosto do seu bebé, para tentar chamar a atenção para a sua história. Uns minutos depois, apagou todas as mensagens que enviara. Apesar das insistências, não voltou a responder.
Santiago foi dado para adoção em junho de 2016. Iolanda tinha falhado cinco sessões em tribunal – contra os conselhos até de Ana Gomes, hoje candidata à Presidência da República e na altura eurodeputada, que se interessara pela causa e tentara envolver os avós maternos na solução.
Governo português foi a Inglaterra
Na sequência da exposição pública destes casos, cerca de 50 pais e mães portugueses reuniram-se, em janeiro de 2017, no Consulado Geral de Portugal em Londres e no de Manchester com diplomatas e vários membros do Governo português. Às tantas, os ânimos exaltaram-se: muitos queixavam-se de que o consulado os tinha deixado à sua sorte. “O consulado só fazia isto: dava-lhes uma lista de advogados que falavam português e aos quais podiam recorrer, desde que pudessem pagar cerca de cinco mil libras à cabeça”, conta o advogado Pedro Proença, que nos últimos anos tem estudado o sistema de acolhimento e adoção de menores no Reino Unido e esteve presente numa dessas reuniões como porta-voz das famílias portuguesas.
Agora, a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas afirma que faz mais: “Garantimos que as famílias portuguesas têm o mesmo tratamento que as britânicas, apoio judiciário, obrigatório neste tipo de processos para quem tem dificuldades financeiras, e tradutor, se não dominarem a língua inglesa.” Em fevereiro de 2017, foi colocada uma adida jurídica e social no Consulado de Londres para acompanhar especificamente estes processos, incluindo as audiências nos tribunais.
No encontro de Londres, Pedro Proença também sugeriu o que parecia ser óbvio, mas não estava a ser feito: era preciso explicar à comunidade portuguesa que algumas práticas toleradas em Portugal não eram admissíveis no Reino Unido. “Muitos destes casos aconteciam porque um pai tinha dado um estalo ao filho. Lá são imediatamente acionados os serviços sociais.”
Paula e Rita sabem bem as consequências que uma denúncia destas pode ter. Paula Oliveira, há 12 anos a viver em Cardiff, no País de Gales, nunca escondeu que tinha dado uma estalada ao filho. João contou-o na escola e, a 21 de julho de 2014, Paula ficou sem ele. Ficou também sem Neuza, a outra filha. Durante oito meses, os dois irmãos estiveram separados, a viver com duas famílias de acolhimento diferentes. A mãe só tinha direito a vê-los duas vezes por semana. Paula estava a recuperar de um cancro e ainda hoje não consegue calar esse trauma. “Num ano foi cancro, cirurgia, depressão, medicação, a retirada dos meus filhos e o desemprego. Ainda estou a pagar por isso, porque o meu corpo não aguentou. Só tenho a sorte de os ver crescer felizes.”
Rita viu cinco filhos serem arrancados dos seus braços, num dia de abril de 2013, depois de o mais velho se ter queixado de que o pai lhe batera. Para conseguir ficar com três, assinou um papel a consentir a adoção dos outros dois. Hoje, o S. e o P. têm 11 e 9 anos, e trocam cartas com a mãe. “E tratam-me como mãe”, orgulha-se Rita, ao mesmo tempo que alimenta a ideia de que um dia, quando forem maiores de idade, vão querer voltar para casa.
Os números
O drama não é exclusivo dos portugueses. O que aconteceu a Iolanda, a Raquel, a Paula ou a Rita, acontece todos os dias no Reino Unido, com pais de diversas nacionalidades.
- A cada 15 minutos, uma criança é colocada sob a guarda do Estado.
- O sistema inglês tem hoje 78 mil menores ao seu cuidado. O número representa um crescimento de 28% em uma década.
- Em mais de 90% dos casos, as crianças são adotadas sem o consentimento dos pais.
Pedro Proença, advogado português que tem estudado o tema desde 2016, explica assim o problema: “O sistema de acolhimento e adoção de crianças no Reino Unido é privado e esse potencial lucrativo é perverso: A Childen Act, aprovada em 2009, diz que um técnico dos serviços sociais pode intervir e retirar uma criança aos pais com base num risco futuro. E isso é tão dúbio que faz com que mulheres com depressões pós-parto ou vítimas de violência doméstica percam os seus filhos, mesmo que nunca os tenham maltratado.” A Legal Action for Women fez um estudo que mostra que esse “risco de dano significativo” no futuro tem penalizado sobretudo as famílias mais pobres.
Como funciona o sistema
Profissionais que trabalhem em escolas, creches ou hospitais seguem um protocolo caso detetem sinais de maus-tratos numa criança.
- Há uma equipa que faz a avaliação do risco.
- O assistente social tem dez dias para fazer um relatório. Ou fecha o caso, ou passa-o para as equipas Child in Need, que trabalham com as famílias a longo prazo, ou aciona a Child Protection, pela existência de indícios perigosos. É feito um relatório.
- As provas são apresentadas em tribunal. A criança pode ser devolvida aos pais, entregue a familiares, ficar à guarda do Estado ou seguir para adoção.
- No Reino Unido, uma criança pode ser retirada aos pais pelo receio do que venha a suceder no futuro. Acontece, por exemplo, quando há violência doméstica no seio familiar ou as mães têm depressões pós-parto.