Paulo Pimenta já conhecia o mito de que empresas como o Facebook e a Google ouvem as conversas dos utilizadores para mostrar publicidade personalizada, mas um dia decidiu fazer um teste. “Comprámos um smartphone novo e pusemo-nos à volta de uma mesa”, começa por contar à VISÃO. Primeiro, visitaram sites aleatórios e sem relação com o que viria a ser o tópico principal da conversa e do teste: cartões bancários Revolut. “Depois, falámos do cartão, abrimos de novo o browser e alguns sites, andámos a navegar e a publicidade [ao cartão] apareceu.”
Este relato não é feito por um utilizador de serviços online como tantos outros – Paulo Pimenta é diretor executivo do KuantoKusta, um portal comparador de preços e uma empresa que investe “milhares de euros por dia” na compra de publicidade nas plataformas do Facebook e da Google. Com dois milhões de produtos listados e cinco milhões de utilizadores mensais, conhece e domina o conceito de publicidade direcionada – mas isso não o impediu de ficar surpreendido com o que aconteceu. A justificação? “A Revolut podia estar a fazer muita publicidade.”
Tanto o Facebook como a Google negam ouvir as conversas dos utilizadores para direcionar publicidade – ou seja, mostrar conteúdos específicos para aquela pessoa. Em resposta à VISÃO, o Facebook remete para uma publicação, de 2016, no blogue da empresa, na qual afirma, de forma taxativa, que “o Facebook não usa o microfone do smartphone para publicidade ou histórias do feed de notícias”. Mais recentemente, em 2018, numa audição no Senado norte-americano, foi o próprio criador da rede social, Mark Zuckerberg, quem negou que o Facebook ouve as conversas dos utilizadores para lhes mostrar publicidade.
Já a Google, em resposta por email, sublinha que “a Google não usa o som ambiente de nenhum dispositivo para direcionar anúncios”. Então, qual a explicação para o mito? A resposta está nos dados, mais concretamente no grande volume de informações que os gigantes da internet têm sobre os utilizadores.
“Ouvir” passos e cliques
“Nós, como indivíduos, somos brutalmente atingidos nas redes sociais e no mundo digital por campanhas de marketing que nos mostram vários anúncios com características parecidas com o que acabamos de procurar. O que permite esta situação é toda a informação recolhida por diversas empresas e o ecossistema que se criou à volta delas”, explica Eliano Marques, vice-presidente de Analítica e Inteligência Artificial da Protegrity, empresa norte-americana especializada em ferramentas de proteção de dados e privacidade empresarial.
Há empresas que têm acesso ao microfone do seu smartphone – por exemplo quando instala um jogo novo e lhe dá permissão
Estes dados agregados – que vão desde o histórico de pesquisa, de interações, de localização e até de compras feitas em lojas físicas – são depois disponibilizados aos anunciantes para que consigam fazer chegar mensagens personalizadas aos utilizadores. “A Google tornou isto automatizado graças à Inteligência Artificial. Agora, posso ser genérico ou ser mais específico na personalização. Mas quanto mais específico sou, mais caro é [o anúncio] e maior é a probabilidade de converter [a publicidade numa compra]. Cada vez mais consegue-se atingir o que queremos”, acrescenta Paulo Pimenta.
Resumindo: é uma questão de analítica e de estatística, já que, na prática, o que estas empresas sabem é que existe uma maior ou menor probabilidade de estar interessado num produto, tendo em conta o registo de interações e pesquisas que têm do utilizador. As grandes tecnológicas “ouvem” aquilo que diz – não através das conversas propriamente ditas, mas por meio do rasto digital que deixa na utilização de serviços online. “Têm informação sobre o meu telefone, a minha localização nos últimos cinco dias e as últimas pesquisas mais relevantes. Se juntar essas três variáveis, criam uma quarta variável, que, por sua vez, me associa a um conjunto de produtos para os quais faço parte do público-alvo”, explica Eliano Marques.
Já Paulo Pimenta dá um exemplo: se alguém for ao KuantoKusta pesquisar sobre o preço de fraldas para recém-nascidos, então daqui a um ano esse comprador vai precisar de fraldas maiores – nessa fase, o sistema “lembra-se” desta informação e vai comprar anúncios à Google e ao Facebook de fraldas para crianças de 1 ano, para mostrar ao utilizador. E qual é a probabilidade de, nessa altura, comentar com alguém que precisa de comprar fraldas para a criança de 1 ano
“Temos de ter a noção de que não se pode apontar apenas o dedo à monopolização da recolha da informação ou da criação da informação, porque a economia global beneficia dela. Agora, temos que ter mais ferramentas que nos dão uma melhor perceção de como é que aqueles dados estão a ser utilizados, dando ao utilizador final maior transparência e maior poder de decisão”, sublinha o executivo da Protegrity. Tanto o Facebook como a Google já disponibilizam ferramentas que permitem ao utilizador interagir com um anúncio e saber “por que razão está a ver esta publicidade”.
O teste do algodão
Em 2019, a tecnológica Wandera analisou e comparou a quantidade de dados que era transferida por diferentes aplicações, com acesso ao microfone do smartphone, em salas de isolamento sonoro e em ambiente de conversa – chegando à conclusão de que o tráfego gerado por essas apps era residual (60 kilobytes) e semelhante em ambos os cenários. Já quando era ativado o assistente digital do sistema operativo, como a Siri, o tráfego aumentava.
Apesar desta análise técnica, importa perceber que há empresas que têm acesso ao microfone do seu smartphone – quando instala um jogo novo e lhe dá permissão, por exemplo. E também importa perceber que, em casos específicos, o microfone está sempre a ouvir o que diz. A Google tem um assistente digital que é ativado pelo comando de voz “Ok Google”. Sempre que usa este comando, o assistente “acorda” e regista o que lhe diz – mas para conseguir “acordar”, tem de estar sempre à escuta. Mas também aqui a gigante norte-americana garante que “esses dados não são usados para personalização de anúncios”. São, isso sim, usados para treinar a eficácia do próprio assistente. “Para ajudar a melhorar o processo de análise de áudio da Google, uma amostra dos recortes de áudio é desassociada das contas Google durante a revisão. Em seguida, revisores treinados podem analisar o áudio para anotar a gravação e verificar se as palavras ditas foram compreendidas com precisão pelas tecnologias de reconhecimento de áudio da Google”, explica a empresa.
Traduzindo por outras palavras, alguém pode vir a ouvir o que disse, mas sem saber quem realmente é.