Caminhar foi a alternativa encontrada por Inês Espada Vieira, 44 anos, para, durante os meses de confinamento, ir à rua e assim praticar um pouco de exercício de baixo impacto. “Juntei a caminhada à ideia de saúde mental, para apanhar ar e sair de casa”, conta a professora universitária. Uma família de cinco pessoas e três computadores para partilharem levaram Inês a madrugar e, no meio de Lisboa, a seguir sempre por ruas diferentes,. “Não é meditação, mas caminhar, tropeçar e ver as flores nascerem tornou-se uma liturgia.” Inês não conta os quilómetros, preocupa-se mais com o tempo, em fazer entre 30 e 45 minutos, quatro vezes por semana, num ritmo acelerado. “Encontrei um espaço só meu em que gosto de ir a ouvir podcasts. Quero manter a disciplina, mas não a pressão. Tenho todas as condições logísticas e horários flexíveis para manter a regularidade”, garante.
Fazer exercício físico aumenta não só a esperança média de vida, mas também melhora a qualidade de vida durante esses anos. Não há dúvida de que a corrida e a caminhada têm um efeito protetor na saúde cardiovascular, reduzem o risco de hipertensão arterial, de diabetes tipo 2, de excesso de peso, de cancros do colo do útero e da mama e de mortalidade precoce. Na saúde mental, melhora o humor, a qualidade do sono e reduz a ansiedade, devido à libertação de hormonas e neurotransmissores associados ao bem-estar (serotonina, dopamina, endorfinas).
“Os benefícios do exercício são enormes. Se fosse um medicamento, seria uma cura milagrosa”, escreve Steve Haake, professor de engenharia desportiva da universidade Sheffield Hallam, no Reino Unido, na revista New Scientist. Mas o especialista, que sempre detestou as aulas de Educação Física na escola, questiona-se sobre uma atividade que desde o século XVIII, com a Primeira Revolução Industrial, tem vindo a perder lugar entre os hábitos humanos. Antes da industrialização, a maioria das pessoas trabalhava no campo com grande solicitação energética.
A ideia de que correr é o melhor exercício para os humanos tem muitos defensores. Entre eles, Daniel Lieberman, da Universidade de Harvard, que sustenta que o Homem evoluiu para percorrer longas distâncias. O professor de Biologia Evolutiva garante que o nosso talento agora inexplorado para a caça persistente em condições quentes nos dá uma vantagem sobre outros animais e moldou a nossa história evolutiva. Uma série de adaptações – como glândulas sudoríparas e pele sem pelos, para ajudar no arrefecimento, o equilíbrio correto dos vários tipos de músculos e um ligamento especial para manter a cabeça estável durante a corrida – significam que, em longas distâncias, quase podemos superar qualquer outro animal. “Graças à nossa história evolutiva, todos temos a anatomia e a fisiologia necessárias para andar e correr – supondo que não estamos deficientes. No mundo de hoje, medicalizamos e tornamos num bem comercializável o exercício físico, mas, na sua essência, é algo que evoluímos para fazer”, sublinha o especialista.
Dores que sabem bem
Na adolescência, Bruno Rodrigues corria para perder peso e fazia meias-maratonas. Hoje, aos 39 anos, o geólogo, guia de caminhadas e ultramaratonista desafia os limites ao organizar a Algarviana Ultra Trail, a prova de ultra trail mais longa de Portugal. São 300 quilómetros num tempo-limite de 72 horas, no sobe e desce das serras do Caldeirão, Espinhaço de Cão e Monchique. “Gosto da sensação de gostar da dor, do prazer que é atingir o objetivo. São dores que sabem tão bem… É por isso que aumentamos os desafios”, explica o atleta, que nas ultramaratonas para gerir o esforço, ora corre, ora caminha.
Quando é guia de caminhadas, Bruno sabe bem como é difícil convencer alguém a correr. “É mais fácil cativar a caminhar e, se for para descobrir sítios onde só se chega a pé, melhor. Basta ir para o meio da Natureza e, depois, torna-se viciante. Queremos ultrapassar os nossos recordes, fazer mais em menos tempo.
Desde março que os finais de tarde de Paulo Madeira, 54 anos, passaram a ser feitos entre os recantos verdes dos Olivais, em Lisboa. Os cinco quilómetros, em 75 minutos, são agora percorridos com facilidade por quem sempre odiou caminhadas e, na primeira semana de exercício, nem se mexia a cada manhã seguinte.
Sem ninguém nas ruas, durante os meses de confinamento, Paulo passou a distrair-se com os cheiros, os pássaros, o ar mais respirável e até um marco geodésico. Sedentário, já tinha perdido massa muscular, mas com a caminhada perdeu peso. No entanto, o principal atrativo foi, sem dúvida, descobrir a Natureza – que, afinal, sempre esteve ali – e desligar-se dos problemas à medida que se focava no movimento do corpo. Agora, só vai ao ginásio para umas enérgicas aulas de bicicleta.
Na Universidade de Coimbra, Alain Massart, professor da Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física, juntamente com Filipa Godinho e Marianna Cardoso, delineou o Plano de Marcha e Corrida, um programa de iniciação com três níveis, para as pessoas que estavam no confinamento terem a possibilidade de fazer algum exercício físico, com orientações. “Correr está reservado a quem tem boa condição física. Muitas vezes, quando iniciam a corrida, os músculos, os gémeos por exemplo, não estão habituados e as pessoas ficam com dores e desencorajadas. Por isso, quem não tem hábitos desportivos deve começar com a marcha. Só depois, de forma intermitente, deve passar à corrida”, explica Alain Massart.
Recomendações totalmente ignoradas por Marcos Cagido, 44 anos, formador numa companhia aérea, e Joana Morato Rosado, 33, piloto da TAP. Com ele em teletrabalho, ela em layoff e os ginásios fechados, o casal começou a ver vídeos motivacionais e a sonhar em fazer uma prova de “swimrun”, só nadar e correr, sem o ciclismo da Iron Man, competição de triatlo mais famosa do mundo. Seguiram os tutoriais encontrados na internet, “porque nem correr” sabiam.
Sem método nenhum, foram descobrindo planos de treino e, em março, começaram com dois quilómetros. Agora, alcançam dez. Já não fazem só o piso regular da ciclovia do Guincho, em Cascais – arriscam em terreno fora de pista, ali para os lados da praia do Abano e Sintra. “A dificuldade e o esforço desses trails obrigam a usar outras técnicas e a maior desgaste.” Hoje, Marcos e Joana dizem-se “viciados”.
Para muitos, a dúvida poderá ser: o que conta, afinal, como exercício moderado e vigoroso?
Ganhar anos de vida
No final dos anos 80, Bill Haskell, da Universidade de Stanford, na Califórnia, fez a mesma pergunta e apresentou uma medida para comparar exercícios com estar calmamente sentado. Quando sentados, gastamos cerca de uma quilocaloria (kcal) por hora por cada quilograma de massa corporal. Haskell e os seus colegas apelidaram essa fórmula de equivalente metabólico, ou 1 MET (Metabolic Equivalent Task). Para uma pessoa de 80 kg, essa taxa metabólica em repouso representa cerca de 1 920 kcal por dia. Todas as atividades físicas passaram a poder ser expressas em MET, e o Compêndio de Atividades Físicas usa esse sistema.
A transição para a corrida em torno dos sete quilómetros por hora é quando o exercício entra na categoria vigorosa. Uma caminhada realmente rápida e uma corrida lenta são praticamente o mesmo, em termos de esforço e calorias queimadas. Mas serão equivalentes no que diz respeito aos benefícios para a saúde? Ou será que a corrida leva alguma vantagem?
Um estudo feito no início deste ano analisou 138 corredores estreantes na maratona e descobriu que treinar e completar os 42 quilómetros, mesmo num ritmo lento, equivale a uma redução de quatro anos na idade do sistema cardiovascular, ou ainda mais para aqueles que são mais velhos e estão em inferior condição física. Outra investigação corrobora a ideia de que os benefícios para a saúde, a longo prazo, observam-se com menos de 60 minutos de corrida por semana, tempo bastante razoável de encaixar nos hábitos sedentários das populações.
Nos EUA, Paul Williams e Paul Thompson, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, testaram a saúde de cerca de 16 mil caminhantes e 33 mil corredores ao longo de seis anos. Comparados aos caminhantes, os corredores tiveram um risco 38% menor de tensão arterial alta e um risco 71% menor de diabetes tipo 2. Quando os investigadores controlaram o gasto de energia e a diferença de peso entre os grupos, os benefícios de caminhar e correr já foram comparáveis. Mais tarde, Williams analisou os dados de cancro da mama e do cérebro, e as reduções no risco de morte por corrida ou caminhada foram, novamente, semelhantes.
Os ganhos significativos para a saúde são visíveis até em pequenas quantidades de exercício. Em 2011, uma investigação acompanhou mais de 400 mil pessoas em Taiwan, na China, durante cerca de oito anos, observando os seus hábitos de exercício e o número de mortes por causas diferentes. Isso mostrou que apenas 15 minutos diários de exercício moderado, como caminhada rápida, foram suficientes para reduzir o risco de morte em 10%, em comparação com os participantes pouco ativos.
“Não se pode dizer que correr é melhor do que caminhar, ou o contrário”, assegura Alain Massart. “O critério é a capacidade de esforço de cada um. Para que a saúde de uma pessoa beneficie e aumente a sua condição física, tem de treinar com o mínimo de intensidade. Alguns atingem esse mínimo com a marcha; outros de condição física superior têm de marchar a grande velocidade ou correr”, exemplifica.
Prós e Contras
Os benefícios de correr e de caminhar compensam largamente os riscos
(+)
. Melhora a saúde cardiovascular
. Reduz o risco de hipertensão arterial, de diabetes tipo 2 e o excesso de peso/obesidade
. Previne cancros do colo do útero e da mama
. Reduz a mortalidade precoce
. Melhora o humor e a qualidade do sono
. Reduz a ansiedade, graças à libertação de hormonas e neurotransmissores associados ao bem-estar (serotonina, dopamina, endorfinas)
. Aumenta a esperança média de vida, melhorando a qualidade de vida durante esses anos
(-)
. Risco de lesão muscular e de entorse articular
. Risco de lesões de sobrecarga como as tendinopatias (no tendão de Aquiles ou no rotuliano, por exemplo)
. Pode danificar articulações, joelhos e ancas, sobretudo entre os principiantes
. Pode desencadear artrite e osteoartrose
Lesões, o maior risco
Os benefícios de correr e de caminhar são superiores aos riscos de lesões, que nunca devem ser descartados. Sendo a corrida uma atividade de alto impacto, quando o pé atinge o chão, uma força equivalente a duas ou três vezes o peso empurra o corpo. Ossos, articulações, músculos e ligamentos devem absorver essa força. A questão é se isso desgasta as articulações, como muitos temem.
Alister Hart, cirurgião ortopédico do Royal National Orthopaedic Hospital, em Londres, estudou, juntamente com outros colegas, o impacto de uma maratona nos joelhos. Recrutaram 82 corredores, que participaram, pela primeira vez, numa maratona, todos com mais de 40 anos. Através de ressonância magnética, os joelhos dos corredores foram examinados seis meses antes da prova e, novamente, algumas semanas depois. Surpreendentes, os resultados revelaram que os principais compartimentos de sustentação do joelho – as partes com maior probabilidade de desenvolver artrite a longo prazo – tornaram-se mais fortes como resultado da preparação para a maratona. Só a rótula mostrou danos e mesmo esses foram revertidos seis meses depois. Correr longas distâncias pode trazer benefícios a longo prazo para os joelhos.
A dupla Paul Williams e Paul Thompson também analisou o desgaste dos ossos, a osteoartrose, causada pela quebra de ossos ou cartilagem nas articulações. Descobriram que correr mais ou andar realmente reduzia o risco de osteoartrose e a necessidade de usar uma prótese na anca. A ideia de que correr desgasta o corpo é um mito, afirma Daniel Lieberman. “Muito pelo contrário. A corrida ajuda a ativar todos os tipos de mecanismos de reparação e manutenção”, acrescenta.
No que toca ao risco de distensões e entorses, há boas notícias para quem caminha. Um estudo dos hábitos de exercício de mais de 14 mil graduados espanhóis descobriu que caminhar resultou em 40% menos lesões do que correr com o mesmo gasto de energia. Ainda assim, a taxa de lesões na corrida foi menor do que a do futebol, vela e artes marciais e semelhante à do esqui e ténis.
Para se entrar no grupo Correr Lisboa só há uma condição: ser capaz de correr 40 minutos seguidos. Tudo começou há sete anos, quando Bruno Claro, 40 anos, desenvolveu o software de uma aplicação para se encontrar um amigo para correr. Rapidamente evoluiu do digital para os encontros reais – reunia facilmente uma centena de pessoas – com treinos em vários dias da semana, espalhados por diversas zonas de Lisboa (Monsanto, Parque das Nações e Cidade Universitária). “Quando comecei, a crise económica tinha levado muita gente a abdicar do ginásio e a correr na rua. Agora, com a crise de saúde pública, o boom de corredores repete-se”, garante Bruno Claro.
Nos últimos tempos, tem aumentado a procura por parte de mulheres. Mariana Soares, 68 anos, e a filha Joana Jesus, 32, são presenças assíduas. Há dois anos, juntaram-se ao Correr Lisboa quando a mais velha dava os primeiros passos na caminhada e a mais nova acelerava nas primeiras corridas. Mas Mariana evoluiu de uma forma impressionante e tornou-se vice-campeã nacional de veteranos. “Quando corro, sinto-me mais nova”, resume.
Entrevista Rita Tomás
Existem benefícios cardiovasculares que podem ser atingidos apenas com a caminhada
Quais as diferenças no nosso corpo ao praticar corrida ou caminhada vigorosa?
São atividades de intensidade diversa e com sobrecarga diferente para o nosso corpo. Na corrida, há uma maior exigência cardiorrespiratória, em que a frequência cardíaca e respiratória aumenta mais. Devido ao esforço físico e à contração muscular do exercício, é gerado um excesso de calor, que tem de ser libertado através da produção de suor. Também o impacto nas nossas articulações é maior, já que a corrida implica uma maior carga nos membros inferiores e na coluna vertebral. Quando corremos, o tempo de contacto do pé com o solo é mais curto do que na marcha, e as forças transmitidas ao longo de todo o membro inferior e coluna são superiores às da marcha. A intensidade e velocidade da contração muscular dos músculos envolvidos também é superior. Se existir algum problema articular, no joelho ou na coluna lombar, por exemplo, o impacto causado pela marcha pode não originar queixas, mas uma pequena corrida pode despertar alguma dor.
Pode o alto impacto reduzir o risco de osteoartrose?
A corrida fortalece sobretudo a musculatura dos membros inferiores, como os flexores e extensores do joelho. A musculatura da anca também é muito importante para a estabilidade do joelho. Assim, a corrida tem um efeito positivo e protetor das articulações. O que ainda não se sabe é qual a carga (intensidade e duração) a partir da qual o impacto da corrida pode ser nocivo. Dos poucos estudos que existem com corredores, os atletas principiantes têm maior risco de lesão do que os de elite. Este aspeto pode dever-se à menor qualidade no treino.
É possível alcançar os benefícios da corrida só a caminhar?
Existem benefícios, nomeadamente cardiovasculares, que podem ser atingidos apenas com a caminhada. No entanto, para estes serem maximizados, é necessário haver intensidades de exercício mais vigorosas.
A vantagem de correr é que permite gastar o mesmo, mas em menos tempo?
Se olharmos estritamente para o gasto de calorias, sim. Mas não se pode pensar somente em calorias e tempo despendido. A corrida não é só uma “caminhada concentrada”. Mas também não podemos encarar a caminhada como um exercício “menos completo” do que a corrida. Há pessoas que não gostam ou não podem correr e, para essas, a caminhada pode ser uma ótima alternativa. Caminhar é melhor do que estar parado. Um estilo de vida ativo é sempre de valorizar, seja alguém que caminhe todos os dias, ande de bicicleta ou faça jardinagem.