O que fazer quando se está “de cabeça cheia”, à beira de explodir? Embora se diga que agir a quente não é a melhor maneira de lidar com esta emoção básica e espontânea que nos assola em momentos adversos, as “salas da raiva” – “smash rooms” ou “rage rooms” –, criadas para partir tudo o que lá estiver dentro e, dessa forma, descarregar tensões e frustrações acumuladas, estão a conquistar uma popularidade crescente, deixando o instinto animal falar mais alto.
Em poucos minutos, é possível destruir material informático à paulada, bater num boneco ou atirar-lhe coisas imaginando tratar-se da pessoa a quem apetece dar socos, partir garrafas, loiça, peças de mobiliário e, até, pianos. Tudo com a finalidade de extravasar más energias e obter um efeito catártico, a par de uma sensação de empoderamento.
Nos Estados Unidos da América, o sucesso é garantido. Em Nova Iorque, existe o “Clube da Demolição”. Em Los Angeles, a “Sala da Raiva”. Perto de Atlanta, na Geórgia, é possível ir ao “The Break Room” aliviar a “panela de pressão” sem culpas e sair de lá mais leve do que quando se entrou.
Na última década, o fenómeno da “destruição recreativa” em espaços próprios chegou ao Canadá, à Ásia e à Austrália. Em Sydney, no “Smash Brothers”, quem chega é equipado com um fato, luvas e viseira e tem direito a escolher a banda sonora apropriada à ocasião. Depois, é só deixar vir à mente uma das muitas contrariedades que servem de pretexto para detonar a raiva, fazer saltar a tampa e passar à ação.
O colete de forças imposto pela pandemia – há quem se refira à máscara protetora como um açaime – poderia fazer aumentar ainda mais a procura destes serviços lúdicos, não fosse o facto de terem de suspender a atividade desde março, até virem melhores dias. Assim aconteceu, também, na “Smash It”, em Lisboa, que abriu há dois anos. Com seis menus disponíveis, tem sido procurada por pessoas com idades entre os 25 e os 35 anos, para despedidas de solteiro e team buildings. César Lemos, um dos sócios, afirmou à VISÃO que o “demolition” (45 euros) foi o mais solicitado, tendo à disposição equipamento informático e garrafas, “por serem muito duras e não partirem à primeira”, e loiças para arremessar à vontade. “Já cá vieram casais, amigos, pai e filho, avô e neto e, curiosamente, 60% são senhoras.” Uma delas, com 50 anos, “veio por recomendação da psicóloga e disse que a ajudou a aliviar o stresse”. César recorda ainda “um rapaz revoltado que perdera o pai na semana anterior e chorou, tendo dito à saída que ali deixou muitos demónios”. Ou o “team building, em que o patrão trouxe a foto dele para pôr no boneco que ia ser alvo dos ataques”.
Até que ponto as “salas da raiva” são benéficas para o ego e eficazes a reduzir níveis de stresse através da catarse?
Destruir como escape
A investigação disponível não é conclusiva. Um estudo realizado há 11 anos e publicado no Journal of Personality and Social Psychology mostrou que esmurrar um saco aumentava os níveis de raiva em pessoas que foram induzidas a crer que tal iria diminuí-la, além de aumentar a probabilidade de dirigirem a sua hostilidade a quem estivesse por perto, validando a máxima “comportamento gera comportamento”.
Em 2013, os psicólogos norte-americanos Konrad Bresin e Kathryn Gordon descobriram que praticar a agressividade depois de ser provocado tendia a reduzi-la, com um senão: a propensão a comportar-se desse modo no futuro aumentava, e nem todos os indivíduos que exerceram os seus impulsos agressivos reportaram que sentiam menos raiva. Um estudo relacionado, referido no site de saúde mental Very Well Mind, demonstrou que analisar a causa dessa emoção era suficiente para ela se dissipar, pelo menos em parte.
“Faltam estudos que comprovem que as ‘smash rooms’ são realmente benéficas no alívio do stresse”, avança o psicólogo e psicanalista João Pedro Dias. “A ideia de escoar a agressividade através de passagens ao ato destrutivo é, na melhor das hipóteses, inócua; na pior, e dependendo da personalidade de cada um, pode implicar uma reintrojeção da agressividade e reforçar mecanismos psicopáticos de regulação das emoções.” E remata: “Tanto a descarga (acting-out) como a ‘sublimação’ da violência, em vez de construir e enriquecer, nada mais fazem do que empobrecer a vida mental relacional.”
Como se explica, então, o fenómeno que continua em alta nos Estados Unidos da América? “Pode fazer sentido por questões culturais e valer a pena em cenários de team building, mas tenho dúvidas de que seja saudável partir coisas em vez de canalizar a raiva”, afirma o psicólogo desportivo Jorge Silvério. Tomando o exemplo do atleta que se enfurece com a decisão do árbitro, agredi-lo não é o caminho.
Negar que esta emoção básica existe também não é uma opção. Eduardo Ramadas da Silva, diretor clínico do centro de tratamento de adições Villa Ramadas, explica porquê: “Todos temos o direito de sentir raiva; reprimir, negar ou evitá-la leva a que nos transformemos numa ‘bomba-relógio’ sem hora marcada para explodir.” Na sua prática clínica, o psicólogo tem-se dado conta de que este é um problema “muito frequente em camadas mais jovens, oriundas de famílias em que os pais têm regras e limites muitos restritos com os adolescentes”.
Por tratar-se de uma resposta adaptativa a um mal-estar prévio à conduta agressiva, “se for direcionada de forma positiva, a raiva pode funcionar como um catalisador energético que contribui para o nosso conhecimento profundo”. A questão é como fazê-lo.
O confinamento trouxe um aumento dos níveis de ansiedade generalizada e de stresse e “grande frustração, porque muitos deixaram de fazer desporto e de realizar as atividades normais do dia a dia, com prejuízos na sua saúde física e mental”. As salas de destruição de objetos permitem, continua Ramadas da Silva, “experienciar outras sensações e expulsar temporariamente emoções negativas, mas não atuam na identificação e origem da raiva, nem ajudam as pessoas com dificuldades em controlá-la” – essencial quando se fala em promoção de bem-estar duradouro.
Uma emoção adaptativa
Num artigo recente da Psychology Today, assinado pelo psicólogo Stephen Diamond, refere-se que, há mais de um século, os médicos vienenses Josef Breuer e Sigmund Freud já haviam documentado o valor terapêutico da catarse, mostrando, logo depois, que a chamada “cura pela palavra” podia ser igualmente eficaz. Para quê acumular tensão corporal na vida quotidiana e descarregá-la de tempos a tempos, sem orientar o fogo de forma consciente?
“A raiva tem semelhanças com outras experiências primárias humanas, como a tristeza, a ansiedade ou o impulso sexual”, pode ler-se no artigo. Nessa medida, a satisfação obtida a esmurrar almofadas ou outros alvos e a destruir coisas equipara-se à da masturbação: é uma válvula de escape que, a médio prazo, será contraproducente e pode mesmo agravar perturbações existentes, como as do controlo dos impulsos (pensemos nos viciados em jogos).
Outras formas de deixar a raiva à porta
Atirar bolas à parede
O vizinho pode não gostar, mas a garagem ou o muro do jardim público não se queixam. Já na Antiguidade Clássica, Hipócrates usava peles de animais empalhadas que os pacientes arremessavam com intuitos “medicinais”
Correr até cansar
Fazer um bom sprint dissipa pensamentos e emoções negativas, oxigena o corpo, “queima” o stresse e combate a neura. O livro Curar, do médico David Servan-Schreiber, tornou-se popular pelo capítulo “Prozac ou Adidas”
Jogar com a força
Os treinos intervalados de alta intensidade (HIIT) e as aulas de body pump geram a libertação de endorfinas (“hormonas da felicidade”) e são uma opção para escoar tensões acumuladas e melhorar o sistema cardiovascular
Reajustar o mindset
Para quem não aprecia o estilo “duro”, a gestão da raiva pode ser conseguida através de uma prática zen, como o ioga, em que as posturas combinadas com a respiração permitem descontrair e mudar a “vibração” mental num dia mau
Maria Barroso, fundadora da Somatic – Escola de Psicoterapias Corporais, segue a abordagem desenvolvida pelo psicólogo norte-americano Peter Levine, especializado em trauma, em que a meta é aceder à emoção a partir das sensações físicas sem ficar inundado por elas. “Não é, de todo, o que acontece nas ‘salas da raiva’, onde se liberta carga instintiva que se transforma em ira, ou fúria, numa intensidade mais difícil de conter e dissociada da consciência”, esclarece, referindo o trabalho desenvolvido com agressores, em que veteranos de guerra e pessoas que exercem violência doméstica batem numa almofada as vezes que forem necessárias até tomarem consciência do movimento corporal e o integrarem na consciência. Só depois podem fazer um uso construtivo e saudável da agressividade, sem resvalar para a violência e já com a noção do impacto que a descarga tem em si e nos outros.
Aceder à raiva, ou seja, identificá-la e aceitá-la, aprender a contê-la e expressá-la em práticas que envolvam o movimento do corpo e tragam a sensação de mestria e bem-estar, é a via recomendada para não correr o risco de ter “birras” no contexto errado. A cada um a sua raiva e a melhor maneira de conduzi-la: o verdadeiro desafio no dia a dia, com todas as vicissitudes e descobertas que traz.
Lutas que fazem bem ao corpo e à cabeça
Em tempos de frustração, tende a aumentar a procura de modalidades desportivas que combinam força e relaxamento. Não só libertam tensão como melhoram a autoestima. Conheça algumas:
Boxe
Praticada por ambos os sexos, alivia a ansiedade e a frustração e é boa para melhorar a circulação e perder peso. Há quem use um saco em casa como “terapia” caseira, imaginando-se a desferir aquele soco que tinha mesmo vontade de dar
Taekwondo
Por envolver “golpes” com as pernas, esta arte marcial e desporto de combate ajuda a conhecer e a canalizar tensão, ao mesmo tempo que mantém o corpo em forma e treina o equilíbrio na ação
Krav Maga
Técnica de defesa pessoal desenvolvida em Israel, permite ganhar resistência, agilidade e força. Esta prática de contacto possibilita a explosão de energia, e muitos também encontram nela uma forma de empoderamento