Maria Francisca tem a cara de um sorriso de boca aberta. Não sabemos se sempre foi assim, de se rir por tudo e por nada, ou se anda só mais feliz desde que há uns dias teve uma surpresa: os netos que vivem em França vieram vê-la pela primeira vez em muitos meses. Se ela ainda tivesse a lucidez e as palavras que os anos lhe roubaram, poderia ter-lhes contado como era isso de enfrentar duas pandemias numa vida. Haveria de lhes contar como nasceu em plena gripe espanhola, ali numa terra encostada ao Guadiana. Depois de uma longa temporada sem se conseguir expressar, com a fala e a cabeça a falharem-lhe cada vez mais, depois de uma longa quarentena sem visitas ou chamadas, Maria Francisca, 100 anos, conseguiu reconhecer os netos. Nunca se sabe quando os milagres acontecem. “Ela ficou tão emocionada de os ver, tão feliz, que quase chorámos todos”, conta Rita António, que há oito anos é diretora técnica do Centro Social dos Montes Altos, a IPSS do concelho de Mértola que acolhe Maria Francisca e outros 26 utentes. António Sotero, fundador e vice-presidente, põe-se à frente, atira uma piada sobre um “gato marafado” e Maria Francisca, a sorridente, abre a boca, naquele riso de bebé que deixa qualquer um feliz.
Noémia teve uma semana boa, mas hoje é um dia mau. Ao fim de cinco dias de visitas, a sua única e inseparável filha está de partida para Lisboa. Conversam no pátio exterior do lar onde a mãe reside há nove meses, separadas por uma mesa, cada uma no seu banco, numa despedida prolongada. Elas, que sempre foram tão pegadas, agora só podem ter isto: estarem unidas por dois metros de distância, numa luta interior para que as saudades não comprometam a batalha contra o vírus e não lhes escape um passo a mais, uma festa no cabelo ou um abraço involuntário.
Neste último dia de visitas em agosto, a mãe pede-lhe que vá com cuidado, a filha levanta-se, manda-lhe beijinhos com o corpo inteiro e suplica-lhe “Não chore, mãe, senão eu também choro.” E ficam ali de pé, a controlar com os olhos os dois metros não medidos pela fita métrica, de coração embrulhado. Ali de pé a mandarem beijos e abraços uma à outra como num filme mudo, com as lágrimas a tremerem-lhes nas pestanas, e a convencerem-se de que o que têm agora, comparado com os dois meses em que não se puderam ver uma única vez, é afinal tão bom.
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