Até há poucos meses, a epidemiologia era uma especialidade desconhecida para a maioria dos cidadãos. Com a chegada da pandemia provocada pela Covid-19, telejornais, redes sociais, comunicações políticas e conversas de café encheram-se de terminologia científica, nem sempre utilizada da forma mais correta.
Ao serem confrontados com leituras imperfeitas de conceitos complexos, os especialistas do senior board da Associação de Escolas de Saúde Pública da Região Europeia (ASPHER) decidiram organizar um prontuário que explica, com linguagem simples e terra-a-terra, os termos epidemiológicos mais usados nos últimos tempos.
Nos cafés, quem antes discutia futebol passou a discutir epidemiologia, fazendo um uso muito criativo dos termos
henrique lopes – senior board aspher
“Curiosamente, sendo esta uma crise de saúde pública, de uma forma geral em toda a Europa, quem foi chamado a dar resposta pública não foram os especialistas da área, mas matemáticos, estatísticos, programadores informáticos e até contabilistas. Nos cafés, quem antes discutia futebol passou a discutir epidemiologia, fazendo um uso muito criativo dos termos”, refere Henrique Lopes, membro do Senior Board da ASPHER e um dos autores do documento.
Apesar de algumas das propostas de análise de dados, que têm surgido em áreas matemáticas, serem consideradas “brilhantes” pelo presidente da ASPHER, John Middleton, no prefácio do prontuário, Henrique Lopes alerta para outras situações em que, “certas pessoas não percebiam qual a preocupação com uma doença que só matava 1% dos doentes”. Além de considerar a percentagem alta, tendo em conta tratar-se de vidas humanas, o especialista refere ainda estudos franceses, ingleses e alemães que projetam um cenário onde não tivesse sido tomado nenhum tipo de precaução, revelando, “na melhor das hipóteses teríamos tido o triplo das mortes e o triplo do número de infeções”.
Traduzido em 10 línguas, o documento destina-se, em primeiro lugar, a políticos e jornalistas que, pela natureza da profissão, são obrigados a usar certos conceitos epidemiológicos, comunicando-os a muita gente. Mas também a comentadores e ao público em geral, “que tantas vezes debate o tema nas redes sociais”.
Alguns conceitos
Epidemia, Pandemia e Surto
São conceitos distintos, que nunca podem ser utilizados como sinónimos uns dos outros. Uma epidemia é uma ocorrência, numa comunidade ou região, de casos de uma doença claramente acima da expectativa normal. Já a Pandemia ocorre à escala mundial (e não local como a epidemia) ou numa área muito ampla, atravessando fronteiras internacionais e geralmente afetando um grande número de pessoas. O surto é uma epidemia limitada a um aumento localizado da doença, por exemplo, numa vila ou numa cidade, como aconteceu na zona de Lisboa e Vale do Tejo ou em Reguengos de Monsaraz.
Isolamento e Quarentena
Por vezes, estes conceitos podem ser confundidos. O isolamento prende-se com a separação de pessoas doentes com uma doença contagiosa das pessoas sem essa mesma doença. Por exemplo, ao testar positivo num teste à Covid-19, o doente deve isolar-se imediatamente dos co-habitantes até estes serem testados. Se estes co-habitantes decidirem continuar a viver na mesma casa do infetando, ainda que não tenham testado positivo, terão de cumprir o período de quarentena juntamente com ele.
A quarentena dura o mesmo número de dias do período máximo de incubação da doença. Segundo um estudo da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, publicado na revista Annals of Internal Medicine, a COVID-19 tem um período médio de incubação estimado entre 2 a 14 dias. 97,5% das pessoas desenvolvem sintomas dentro de 11,5 dias após a exposição; portanto, o período recomendado de quarentena de 14 dias é uma quantidade razoável de tempo.
Período de Incubação
O período de incubação é o tempo entre as exposições ao agente causador (vírus) e o início dos sintomas. Acredita -se que o período de incubação do COVID-19 se estenda até 14 dias, com um tempo médio de quatro a cinco dias a partir da exposição até ao aparecimento dos sintomas.
Rastreamento de Contactos
Os contactos são indivíduos que entraram em contacto com uma pessoa infetada, durante o período de incubação ou o estágio sintomático da doença, tendo, assim, o potencial de serem infetados. Uma parte importante do processo de vigilância epidemiológica consiste em rastrear os contactos das pessoas infetadas, recolher informações sobre o estado atual da infeção e acompanhar as mesmas para registar o início de qualquer sintoma.
Em Portugal, este trabalho está a cargo da Saúde 24 e dos sistemas de saúde pública. Ao identificar um caso positivo de Covid-19, a saúde pública pede-lhe uma lista dos contactos que teve nos últimos catorze dias antes do aparecimento dos primeiros sintomas. Apenas os contactos de alto risco (pessoas que não cumpriram a distância de segurança, nem usaram máscara junto do infetado) serão contactados a fim de se conferir a presença ou não de sintomas. Em alguns países o rastreamento já é feito através de uma app, enquanto que, no nosso país, ainda se processa de forma manual. Há, no entanto, uma aplicação a ser desenvolvida pelo INESC TECH, tendo em vista esta finalidade.
R0 e Rt
É um dos indicadores mais vezes mencionado de forma errada, alertam os especialistas. “Até há pouco tempo existiam autoridades de saúde e políticos ainda a falar de R0 nacional. Esse é um ótimo exemplo do que temos ouvido e não devíamos ouvir”, explica Henrique Lopes, acrescentando “o R0, como o nome indica, refere-se ao início, ao R relativo à primeira pessoa que traz o vírus para um país ou localidade, onde a restante população ainda é totalmente suscetível. Isso já não é uma realidade quando falamos a nível nacional”

O especialista esclarece que o R é um indicador que mede o número médio de novos casos de infeção gerados por um indivíduo infetado. Uma epidemia apenas se desenvolve se cada pessoa infetada, em média, infetar mais do que uma nova pessoa.
Através da introdução de medidas preventivas e com o crescimento de imunidade, este R0 inicial, ou seja, a probabilidade de uma pessoas contagiar outras, tende a diminuir e passa a chamar-se Rt. O Rt representa portanto a taxa de transmissão real do vírus, num dado momento, tendo em conta uma série de fatores e medidas tomadas no local em questão (que alteram a capacidade inicial do vírus de propagar).
Imunidade de Grupo
O prontuário da ASPHER explica que a imunidade de grupo pode ser alcançada com a infeção de uma parte relevante da população ou através de campanhas de vacinação. Ainda sem uma vacina a circular no mercado, a questão da imunidade de grupo assume uma maior relevância. Os investigadores têm apontado para uma percentagem de 60% a 70% de população com anticorpos para que possa existir um efeito de imunidade de grupo, no entanto, segundo os resultados de um estudo publicado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, apenas 3% da população portuguesa tem anticorpos contra a Covid-19.
Achatar a curva
Foi provavelmente uma das medidas mais explicadas por políticos e jornalistas. O prontuário das ASPHER afirma que se trata se trata de uma estratégia de saúde públi ca para reduzir o número de novas infeções por COVID-19 a um nível dentro dos limites de capacidade de um sistema de saúde. Quanto mais rápido a curva epidémica aumenta, mais rápido pode um sistema de saúde ser sobrecarregado e atingir os seus limites de capacidade. Para evitar este cenário, é necessária uma curva epidémica mais plana, que pode ser atingida através de de medidas de contenção e mitigação (distanciamento físico uso de máscaras, comportamento de higiene pessoal, confinamento, etc.), que atrasam a propagação do vírus. O mesmo número de pessoas ainda pode ficar doente, mas o número de casos é distribuído por um período mais longo, reduzindo o número de pacientes a precisar de cuidados de saúde ao mesmo tempo.

Incidência e Prevalência da doença

“A incidência de uma doença corresponde ao número de novos casos e só tem sentido lida num espaço temporal, normalmente de um ano. Numa situação pandémica até pode ser lida numa semana, ou mesmo diariamente, como acontece nos boletins da DGS”, afirma Henrique Lopes. A prevalência de uma doença corresponde aos casos ativos da mesma, descontando os que se curaram e os que morreram. “A DGS tem dado mais destaque ao número de casos totais acumulados do que ao números de casos ativos. Esta pode ser uma estratégia que leva a leituras erradas, por parte dos outros países, e desmotiva o turismo”, refere o especialista. Segundo Henrique Lopes o destaque dado aos quase 50 mil casos acumulados desenha um retrato pouco fidedigno da realidade portuguesa, que conta com pouco mais de 13 mil casos ativos, e assusta quem vem de fora.
Sensibilidade e especificidade dos testes
Os testes para detetar a presença de Coronavírus no corpo humano têm de cumprir certos padrões e avaliam-se pelo seu grau de sensibilidade e especificidade. A sensibilidade mede a probabilidade de um teste identificar a presença de coronavírus sem erros (sem dar falsos positivos ou falsos negativos). “Os fabricantes são obrigados a indicar, em percentagem, o grau de sensibilidade dos testes que produzem. É por esta razão que há testes mais caros e testes mais baratos”, explica Henrique Lopes. Já a especificidade prende-se com a capacidade que o teste tem em perceber se o coronavírus identificado é o SARS-CoV-2 ou outro tipo de coronavírus.

Tanto a zaragatoa como o teste serológico devem apresentar estes dois indicadores, apesar de procurarem coisas diferentes. “A zaragatoa procura a presença do vírus e o teste serológico a produção de anticorpos”.
Rastreio
O rastreio é uma estratégia que consiste em testar grandes populações para encontrar infeções não conhecidas. A prática de rastrear milhões de pessoas de uma vez só foi observada em algumas regiões da China. Em Portgual, após apresentar sintomas, o indivíduo entra em contacto com a equipa de saúde pública da zona que gerirá a situação. “Se for algo muito ligeiro, a pessoa é encaminhada para o médico de família, se for mais complexo será gerido a nível hospitalar”, explica Henrique Lopes