Oficialmente, chama-se Urbanização do Vale de Chícharos, no Seixal, distrito de Setúbal. Em boa verdade são uns prédios inacabados, propriedade da Urbangol, sociedade sedeada num paraíso fiscal e com dívidas ao fisco. Na cintura da grande Lisboa, estão ocupados sobretudo por imigrantes dos países africanos de língua portuguesa. Uma maioria de gente sem condições mínimas para comprar ou sequer alugar uma casa. Muitos vivem ali há mais de 20 anos. E aguardam, desde então, pela promessa de realojamento por parte da autarquia.
Foi neste cenário que a Bloomberg mergulhou, muito longe do país seguro e bonito que o turismo quer vender lá para fora. Tal como o The Guardian fizera no ano passado. E ali se cruzou com Neide Jordão, de 35 anos, que vive com os cinco filhos, uma irmã e a mãe, de 63, num daqueles apartamentos de tijolo à vista. Sem espaço para poder ter camas para todos, a mulher dorme no sofá. E vai sobrevivendo a uma série de problemas respiratórios crónicos, causados pela humidade das infiltrações de água na construção. Em boa verdade, é tudo muito parecido à vida de pobreza e miséria de que Neide escapou em criança, quando ainda vivia em Africa. “Sinto que todos nós fomos esquecidos e é muito doloroso”, assume. “Quantas vezes não me pergunto se não estaríamos melhor em Angola…”
É um mundo secreto que Lisboa tem à frente e que foi recentemente exposto,. Falamos de um bairro que abriga 160 famílias e que raramente faz notícia de jornal por boas razões. Há um ano, as equipas de televisão visitaram a área depois de imagens de polícias a espancarem alguns moradores terem corrido as redes sociais. Agora, foi porque disparou o número de infetados por coronavírus. Mas quando se atentou às condições em que as pessoas vivem, logo se percebeu as razões disso.
Narrativa enganadora
“Até há muito pouco tempo, corria a narrativa de que os bairros de lata do país já tinham desaparecido”, diz Rita Silva, chefe da Habita. A organização remonta a 2013 e atua na gestão da habitação em Lisboa. “A pandemia acabou por desfazer esse discurso e esta realidade tornou-se evidente.”
Sobretudo desde que o aumento de casos por ali fez manchetes, no final de maio. Logo o governo veio sublinhar que reconheceu a gravidade do problema muito antes de tudo isto. Começou por recordar que está a realojar famílias desde 2018 e que o processo começou pelos prédios “estruturalmente perigosos”. “Está em andamento”, como disse àquela publicação Ana Pinho, secretária de Estado da Habitação. Mas também sabemos que o financiamento para programas de habitação pública foi reduzido, resultado das medidas da austeridade imposta em 2011.
Entretanto, o boom imobiliário transformou Lisboa num dos mercados mais procurados da Europa. Como quem diz, com o aumento de alugueres de curta duração para turistas e redução de casas a preços acessíveis para os residentes. Feitas as contas, a habitação social representa apenas 2% do número das nossas unidades disponíveis para alugar. Um valor muito mais baixo do que os 14% em França e mesmo os 4% em Espanha. “Houve um fracasso histórico do estado em Portugal em garantir aos cidadãos o direito à moradia decente”, assume Ana Pinho.
Um longo caminho a percorrer
É esse retrato que faz mais detalhadamente a socióloga Cristina Roldão, quando diz que o país ainda tem um longo caminho a percorrer para acabar com a discriminação racial. “As minorias negras ainda lutam para subir na escada da habitação e não têm acesso a empregos que sejam mais bem pagos.” O pior? “Grande parte do racismo que existe em Portugal é dirigida a negros que são portugueses”, remata a especialista.
O discurso oficial fez muito pela ideia feita que já não havia bairros de lata no país, por efeito do Programa Especial de Realojamento, lançado em 1993. Mas há um ano, a contabilidade foi feita de novo e apontou que há pelo menos 13 bairros destes escaparam à demolição. A lista de candidatos a casas novas também nunca parou de crescer.
De acordo com Simone Tulumello, professor de geografia do Instituto de Ciências Sociais, são cerca de 14 mil as famílias que vivem em condições inadequadas na região de Lisboa. “Não é tão mau como nos anos 1990, mas o problema continua a existir. E pode piorar por causa da crise que se avizinha como efeito da pandemia”. O facto, sublinha Tulumello, é que “Portugal nunca realmente teve uma política universal para fornecer casas aos mais pobres. “Na maioria das vezes conta com os municípios para fazer esse trabalho.”
Burocracia e aumento dos preços
Recorde-se que, em 2018, quase 200 moradores do dito bairro da Jamaica foram transferidos para novas casas fora dali. O município prometeu realojar mais 74 famílias no ano passado, mas o processo foi atrasado. Salimo Mendes, chefe da associação de moradores, atribuiu a culpa “à burocracia e ao aumento dos preços dos imóveis.”
Neide Jordão, a tal mulher que vive com os cinco filhos, a irmã e a mãe num apartamento mínimo, é uma das pessoas que consta da lista de espera. “Prometeram à minha família que seríamos dos primeiros a mudar, logo em 1994. Ainda estou à espera.”