Estava “descontraído” quando reportou às autoridades o suposto desaparecimento da própria filha. Terá esperado longas horas – quase um dia, possivelmente – até se deslocar ao posto da GNR e lançar o alerta. Durante os quatro dias em que se realizaram buscas para encontrar Valentina, em Atouguia da Baleia, perto de Peniche, o pai nunca se juntou às equipas no terreno. Em vez disso, andou por ali, perto de casa, foi ao café, falou com vizinhos. Limitou-se a perguntar, aqui e ali, como estavam a evoluir os trabalhos, por onde andavam a palmilhar, o que já teriam encontrado. Queria estar a par da investigação. E só quando percebeu que não conseguiria escapar partilhou indicações que permitiram à Polícia Judiciária dar com o corpo da criança de nove anos, coberto com uns ramos numa zona de eucaliptal e com sinais de violência. A poucas horas de o juiz de instrução decidir as medidas de coação a aplicar a Sandro Bernardo (e à companheira), o psicólogo forense Rui Abrunhosa Gonçalves traça o perfil psicológico do homem de 32 anos, principal suspeito do assassinato da filha.
Sandro Bernardo revelou sinais de uma perturbação da personalidade grave
Rui Abrunhosa Gonçalves, psicólogo forense
As ações do pai de Valentina nos últimos quatro dias revelam um “comportamento a todos os títulos suspeito”, compatível com uma “perturbação da personalidade grave”, considera Rui Abrunhosa, investigador da Universidade do Minho com anos de experiência em casos de violência no seio familiar, muitas vezes com desfechos fatais. Depois do choque com o desfecho do caso, com a detenção do casal, na manhã de domingo, a pergunta com que muitos se confrontam é esta: quem é e o que passa pela mente de um pai que tira a vida à própria filha e que, depois, ainda esconde o corpo e ilude as autoridades para tentar escapar à consequência dos seus atos?
O resultado preliminar da autópsia realizada ao corpo da criança revela sinais de violência: foram encontrados indícios de asfixia e lesões em várias zonas do corpo, inclusivamente na cabeça. E, de acordo com os dados recolhidos pela investigação, Valentina poderá ter sofrido agressões fatais na manhã de quarta-feira, 6. Esses dados levam Rui Abrunhosa a distinguir este de outros casos em que trabalhou e em que os pais são diretamente responsáveis pela morte dos filhos. Por exemplo, quando um bebé não pára de chorar e os progenitores vão ao berço, segurando-no no colo e, em desespero, dão um abanão que, em alguns casos, se revela fatal. “Nessas situações, vê-se que não há intencão” de provocar aquele desfecho, “há um desespero” que está na base da atitude dos pais. São casos limite, também, mas estão num campo distinto do de Sandro e Valentina. Aqui, pela forma como agiu depois da morte da filha, o pai mostrou uma clara “insensibilidade afetiva em relação à menor”.
A frieza da própria sobrevivência
Foi só na manhã do dia seguinte à morte de Valentina que Sandro reportou o suposto desaparecimento às autoridades. Quando os militares foram para o terreno, juntamente com elementos da Proteção Civil local e com populares que quiseram participar nas buscas, o pai manteve-se à distância. E quando a mãe multiplicava apelos nas redes sociais, na esperança de receber pistas sobre o paradeiro da criança, Sandro mantinha-se passivo. Essa “descontração” revelada pelo progenitor é, aos olhos de Rui Abrunhosa, absolutamente atípica. “Uma pessoa que lida com o desaparecimento da filha menor devia aparentar uma maior preocupação”, diz o psicólogo forense. Seria também “expectável” que participasse nas buscas para encontrar a menor. “É uma forma de se concentrar na ‘grande tarefa’ e evitar passar o tempo a pensar no assunto.” Isso nunca aconteceu.
Uma pessoa que lida com o desaparecimento da filha menor devia aparentar uma maior preocupação. Seria expectável que participasse nas buscas, porque é uma forma de se concentrar na ‘grande tarefa’ e evitar passar o tempo a pensar no assunto
RUI ABRUNHOSA GONÇALVES, PSICÓLOGO FORENSE
Mas Sandro mostrou interesse. Foi perguntando aos militares da GNR quais os locais já percorridos. Terá, até, dado pistas falsas na eventual expectativa de afastar as equipas do local onde tinha abandonado o corpo da filha. Quanto mais tempo passasse sem que houvesse resultados, maiores as probabilidades de o autor de um homicídio ser descoberto. “Num acontecimento, grave como o desaparecimento de uma filha, o estado de espírito oscila entre o ansioso e o deprimido”, diz Rui Abrunhosa. Pelo contrário, no caso de Sandro Bernardo foi sempre apresentado um “comportamento descontraído”.
Rui Abrunhosa distingue dois momentos neste caso que chocou um país ainda em grande medida confinado às paredes de casa, nos primeiros dias de um estado de calamidade recém-decretado.
O primeiro momento é da morte. “Pode acontecer no decorrer de uma discussão, com o tal descontrolo, e pode haver o exacerbar de uma descarga de raiva muito intensa”, explica o psicólogo. Em casos menos graves, “pode acontecer o progenitor perder a cabeça e dar um estaladão ao filho ou à filha”, mas, nessas situações, “a tendência é parar por ali e tentar resolver o conflito, chamar uma ambulância”. Os contornos da morte de Valentina que têm sido trazidos a público mostram um desenrolar diferente – e isso quer dizer muito sobre o perfil de Sandro Bernardo e da companheira, cuja intervenção no homicídio ainda não é clara.
As personalidades violentas não ficam assim de momento para o outro – há sempre uma história para trás
RUI ABRUNHOSA GONÇALVES, PSICÓLOGO FORENSE
Ao ocultar a morte e, depois, ao encenar o desaparecimento da filha, o homem, prestes a viajar para a Bélgica por razões profissionais, mostrou “frieza e desapego emocional” em relação à menor. Rui Abrunhosa conclui que Valentina “até pode ter morrido por um acaso, mas o risco que ela tinha na presença do pai era muito elevado, considerando que o suspeito nem demonstrou capacidade de interiorizar o mal feito e de tentar repará-lo”. É isso, na análise do psicólogo, que indicia a “perturbação grave de personalidade”.
Mas, alerta Rui Abrunhosa, traçar o perfil é sempre uma tarefa complexa. Os dados dos últimos dias permitem apenas elaborar um primeiro esboço. Para perceber em detalhe quem é Sandro Bernardo e o que o levou a tirar a vida à própria filha e a ocultar o corpo da menor, é preciso “cruzar várias fontes e pôr em prática procedimentos muitos diversos”. Analisar, por exemplo, o relatório da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, aberto depois de, há cerca de um ano, Valentina ter fugido de casa do pai para tentar ir ao encontro da mãe. Dessa vez, as técnicas não identificaram sinais de maus tratos em relação à menor e arquivaram o caso. Mas o psicólogo defende que se recuperem esses documentos para perceber se já aí haveria algum indício de violência que possa ter escapado. Até porque as personalidades violentas, com predisposição para praticar atos como um homicídio, “não ficam assim de momento para o outro – há sempre uma história para trás”.