Sabe-se hoje que o I Governo Provisório, chefiado pelo advogado Palma Carlos – o qual tomou posse menos de um mês após o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que derrubou a ditadura do Estado Novo –, teve a tentação de abafar a divulgação de um grave surto de cólera que surgira nos bairros pobres que à época circundavam Lisboa. Quem no executivo de Palma Carlos defendia aquela posição argumentava com o propósito de “não causar alarme público” e de prevenir danos económicos no turismo.
Mas a liberdade de expressão e de informação recém-conquistada, depois de quase cinco décadas de autocracia e de censura, desfez num ápice os planos governamentais de guardar segredo. Especialistas em Saúde Pública, conhecedores da gravidade do surto e que previam já a epidemia que se seguiria, protestaram nos jornais contra a anacrónica política do secretismo.
Ainda a polémica decorria e no terreno já estava, qual formiga incansável, o então diretor-geral da Saúde, Arnaldo Sampaio. Pai de Jorge Sampaio, que viria a ser Presidente da República de 1996 a 2006, e do psiquiatra Daniel Sampaio, aquele eminente professor de Saúde Pública foi um dos raros diretores-gerais a passar ao lado do tsunami de saneamentos após a “Revolução dos Cravos”.
Arnaldo Sampaio era o homem certo no lugar certo. Em 1971, quando uma epidemia de cólera atingiu o País, o então ministro da Saúde, Baltazar Rebelo de Sousa (pai do atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa), nomeou-o comissário nacional da campanha contra a doença. No ano seguinte, ascendeu a diretor-geral da Saúde, cargo que ocupou até 1978, e que deixou de exercer por ter atingido o limite de idade (70 anos).
Tudo isto para dizer que, no meio da euforia da revolução, foi uma sorte haver um Arnaldo Sampaio (também considerado o “pai” da vacinação em massa no nosso país) para coordenar o combate à epidemia de cólera de 1974, detetada em maio e dominada em setembro. O diretor-geral, com a experiência de 1971, já tinha preparado médicos e enfermeiros nos hospitais, e montado uma rede de delegados de saúde, semelhante à que existe hoje.
De maio a setembro de 1974, registaram-se mais de 1 600 casos de cólera nos bairros pobres da Grande Lisboa
À imagem de Sherlock Holmes, Arnaldo Sampaio e a sua equipa investigaram com minúcia e descobriram em Chelas, nas hortas cultivadas pela população mais pobre de Lisboa, o epicentro da epidemia. Os legumes eram regados com água não potável, contaminada com a bactéria da cólera.
Dava-se, de seguida, aquilo que em linguagem epidemiológica se chama “transmissão fecal-oral”: a bactéria é eliminada pelas fezes e acaba depois por ser sobretudo ingerida através da água e dos alimentos que estejam contaminados com o bacilo. A cólera, além de ser uma infeção do intestino delgado, é uma doença da pobreza – e, por isso, atingiu os numerosos bairros de lata que à época rodeavam a capital, desprovidos de água potável, redes de esgotos e recolha de lixo.
A estirpe era virulenta e começaram a aparecer nos hospitais pacientes com manifestações agudas da doença, dos vómitos à febre, e principalmente com diarreias aquosas, as quais, se não forem rapidamente tratadas, conduzem a um estado de desidratação fatal.
BENDITA LIXÍVIA
Jovem médico então em início de carreira, Francisco George apanhou em cheio com a epidemia, no hospital Curry Cabral, em Lisboa. “A pressão de doentes, oriundos de bairros pobres e de zonas rurais, era permanente”, recorda o discípulo e aluno de Arnaldo Sampaio que, muito mais tarde, de 2005 a 2017, o sucedeu como diretor-geral da Saúde.
Francisco George prescrevia a reidratação e, consoante os casos, também um antibiótico. Mas é claro que, bem ensinado por Arnaldo Sampaio, não se ficava pelo receituário. “Dava conselhos de higiene, para cortar a transmissão da doença, esclarecendo que era um contágio com início nas fezes, as quais tinham de ser eliminadas em instalações adequadas, não podiam depois pelas escorrências da gravidade ir para junto de poços, cuja água as pessoas bebiam”, lembra. “Tudo isto era explicado minuciosamente, por vezes até em grupos que reuníamos para esclarecimentos, e os técnicos de saúde ambiental ajudavam os médicos, colocando lixívia nos poços para desinfetar a água”, diz Francisco George
A lixívia era o remédio amplamente distribuído às populações atingidas pela epidemia. E era também um dos itens do “grande esforço de educação sanitária” que o psiquiatra Daniel Sampaio se lembra de o seu pai fazer, com sucessivas aparições na RTP, a única estação de TV então existente.
Em frente das câmaras, Arnaldo Sampaio (que morreu em 1984, aos 76 anos) não deixava nada por dizer. Além de explicar ao pormenor tudo sobre a cólera, dava conselhos muito específicos: ferver sempre a água; pôr as saladas cruas em banho-maria, com duas gotas de lixívia, durante 30 minutos; cozinhar bem os alimentos; na água para beber, colocar duas gotas daquele desinfetante por cada litro, para evitar a transmissão hídrica, e lavar as mãos depois de evacuar.
Francisco George considera que “o serviço público de saúde conseguiu responder à epidemia, embora com a dificuldade de se tratar de um contágio ligado à pobreza e à miséria, e à falta de infraestruturas municipais”. Dos mais de 1 600 casos registados resultaram 41 mortes.
E, logo no ano seguinte, 1975, Arnaldo Sampaio e a sua equipa enfrentaram outra epidemia de cólera – esta bem menos grave e rapidamente controlada. As aprendizagens anteriores deram maior eficácia à intervenção da Direção-Geral da Saúde, que tinha já todas as medidas profiláticas instaladas no terreno.
Mas o povo tem sempre uma palavra a dizer. Às tantas, nos bairros de lata, começaram a aparecer potes de barro, com a boca tapada por cortiça, pendurados por uma corda e mergulhados nas águas dos poços. Os potes continham o chamado cloreto das lavadeiras, em pó – ou cloreto de cal, usado para branquear a roupa e como desinfetante. Pelos poros da cerâmica, o cloreto ia sendo libertado para as águas onde estava imerso. O engenho português nunca falha.