Covid-19: Isto já não é um restaurante, mas uma cozinha que serve centenas de sem-abrigo

Covid-19: Isto já não é um restaurante, mas uma cozinha que serve centenas de sem-abrigo

Mal entramos no número 56 da Rua de São José, nesta tarde chuvosa, o choque é brutal. Estivemos aqui há sete meses, num ameno jantar, a provar as delícias cozinhadas por David Jesus, enquanto conhecíamos o recém-inaugurado projeto Isto é Um Restaurante. Além das quatro paredes e da cozinha, pouco está como dantes. Até mesmo o princípio com que a associação Crescer desenvolveu esta espécie de escola de preparação para a vida real se encheu de máscaras e luvas de usar e deitar fora.

Se abriu para ser um restaurante em que os sem-abrigo servissem a comunidade – coisa que nasceu da cabeça de Américo nave, 49 anos, diretor-executivo da Crescer – agora fechou para se transformar numa cozinha que prepara diariamente comida para levar aos sem-abrigo. E se antes se serviam cerca de 40 jantares saborosos, hoje enchem-se mais de 200 caixas de refeições preparadas com a mesma dedicação. A ementa continua a ter a curadoria do chefe Nuno Bergonse, sempre ladeado por David Jesus. E os ajudantes também se mantêm, depois de chegarem aqui em dezembro, vindos de uma nova leva do estágio na Escola de Turismo de Lisboa, um dos 17 parceiros do Isto É um Restaurante. Ninguém abandonou o barco à deriva e não há layoff por aqui.

“Com esta crise, várias pessoas perderam os seus empregos e passaram a ter de recorrer a ajuda, outras foram mesmo para a rua. Ao mesmo tempo, e por falta de voluntários, algumas associações deixaram de fornecer comida. Por todas estas razões, achámos que não deveríamos enveredar pelo take away, mas fazer a diferença”, nota Nuno Bergonse, 31 anos, no intervalo do sobe-e-desce de escadas entre a cozinha e o conjunto de mesas onde se alinham as caixas de alumínio que guardarão as refeições.

De roda desse alinhamento, meia dúzia de pessoas dão vazão ao “empratamento”, já que o “mise en place” está pronto a ser distribuído – garfo e faca de plástico branco, enrolados num guardanapo de papel. Os pesados tabuleiros de bifinhos de frango, com cogumelos, legumes e natas saem do forno diretamente para a sala. Com a ajuda de uma enorme colher espalham o molho bem quente por cima das batatas fritas em cubos que já estão nas caixas, a fazer a cama.

Antes de aqui entrarem, e de acordo com os turnos estipulados para os 14 funcionários, num horário que está na parede, medem-lhes a febre, mandam calçar outros sapatos e dão-lhes luvas e máscaras descartáveis. O resto das medidas de desinfeção já as praticavam, de acordo com as normas de segurança alimentar europeias.

Hoje, a juntar a estas 250 refeições quentes, ainda se fez tortilha que foi cortada em 200 pedaços e 250 sandes, feitas com um fiambre que ofereceram e que estava mesmo em fim de prazo. Há um panelão de sopa de legumes em cima do fogão e também será guardada em tupperwares individuais para servir de aconchego. A cozinha é mínima e só se pode imaginar o exercício de criatividade obrigatório para se conseguir produzir aqui centenas de refeições, conjugando isso com as dádivas que entregam no restaurante. “Chegou na hora do relax, já todos trabalhámos bem”, lembra Bruno Delgado, 28 anos, de jaleca vestida, antes de se preparar para ir na carrinha da distribuição.

Por enquanto, estão bem de mantimentos, mas se quiser ajudar a que a coisa não descambe, pode fazer uma transferência – PT50 0018 0003 4831 1690 0204 8
ou
MBWAY 965 063 318

Encostados às paredes da sala de jantar, arrumam-se como se consegue todos os víveres que recebem de empresas, como batatas, enlatados, fruta, farinha, legumes. Também há frigoríficos para os bens perecíveis, mas o espaço já não é muito. Por enquanto, estão bem de mantimentos, mas se quiser ajudar a que a coisa não descambe, pode fazer uma transferência para o IBAN PT50 0018 0003 4831 1690 0204 8 ou através do MBWAY 965 063 318. Américo Nave, 49 anos, o diretor executivo da associação gere esses donativos para as compras de alimentos. “Nunca vimos uma situação tão desesperada como esta na rua. E são as pessoas mais vulneráveis que estão a fazer parte da solução”, nota.

São às centenas

São sete da tarde, hora de deixar a Rua de São José à procura daqueles que precisam desta comida para ultrapassarem mais um dia do estado de emergência sem fome. Os últimos números da Câmara e da Misericórdia de Lisboa davam conta de 2200 em situação de sem-abrigo, onde se incluem os que não têm realmente teto (361) e os outros que estão em quartos, albergues ou pensões.

Martinho Dias, 41 anos, que normalmente faz parte das equipas de rua da associação Crescer, por estes dias tem assumido a condução da carrinha Fiat Doblo cinzenta. Desta vez seguem consigo José Brás, 48 anos, e Bruno Delgado, 23 anos. Entre os três, aprenderam a gerir muito bem a forma como distribuem a comida por entre o cada vez maior número de clientes: 3 caixas de esferovite para Santa Apolónia, 2 para o Rossio e 1 para a Almirante Reis. E depois ainda há a sopa, as sandes e as tortilhas que saem quando já não há mais nada. “Tentamos organizar a volta de acordo com as horas em que as pessoas aparecem nos diferentes sítios”, explica José, com a máscara a meio gás, para conseguir matar a sede numa lata de refrigerante.

Quando chegamos a Santa Apolónia, junto ao largo da estação de comboios, já se formou uma fila com centenas de pessoas, que eles despacham num quarto de hora. Junto ao Museu Militar, também lá está outro aglomerado, para receber uma fruta, um leite com chocolate e duas sandes do Exército. E muitos saltam de uma para outra a ver se guardam comida suficiente nos sacos que carregam.

“Tentamos organizar a volta de acordo com as horas em que as pessoas aparecem nos diferentes sítios”, explica José Brás, funcionário do Isto é Um Restaurante, depois de ter saído da situação de sem-abrigo

Lucinda Neves, 71 anos, desceu das ruelas de Alfama, onde vive numa “casita muito pequenina”, para se abastecer, como faz normalmente, pois a sua reforma de 400 euros só dá para pagar a renda e as contas da luz e da água. Já conhece alguns companheiros de infortúnio, alguns até começam logo a comer o que recolhem, enquanto põem a conversa em dia.

Aqui vê-se de tudo. Novos, velhos, com cães, bem vestidos, maltrapilhos, diferentes etnias e nacionalidades, com máscara, sem máscara, de óculos escuros apesar de o sol já estar quase no horizonte, com cachecóis a tapar a boca ou a carregar sacos de variados tamanhos – alguns arrumam uma vida lá dentro. Uns aproximam-se, “não tenho nada para esconder”, outros fogem a sete pés da máquina fotográfica. E entretanto, acaba a sopa. E mudamos de sítio.

A segunda paragem é mais personalizada. Atendem as pessoas que se abrigam em quatro tendas no túnel ao lado da discoteca Lux, do outro lado da Infante Dom Henrique. Antes, nunca poderiam estar aqui, porque os carros não deixavam, mas agora que a cidade está mais por conta deles, preferem estacionar a sua casa portátil por estas bandas, pois sempre há mais sossego. Mais à frente, no sítio do costume, ainda encontramos mais gente e os acessórios que vemos, como carrinhos de supermercado, cadeiras, muros de cartão, deixam adivinhar uma existência demorada neste poiso. Em inglês, um emigrante indiano confirma-nos que mora junto à linha do comboio há um ano e meio.

Camas de cartão

Debaixo das arcadas da Almirante Reis, mais ou menos a meio, no lado direito de quem desce, convive uma pequena comunidade de sem-abrigo, com camas e tendas a servir de casa. Vítor Silva, 74 anos, ex serralheiro naval, é o anfitrião, desejoso de se fazer ouvir e contar a sua história de 14 anos na rua, 14 meses neste cantinho. Mas é o seu amigo Pedro, 49 anos, que mais nos impressiona. Está sentado numa cama feita de cartão, mas com tudo arrumado e começa logo a jantar assim que recebe a sua dose. Conta que veio de Inglaterra em fevereiro, onde trabalhava como cozinheiro, para visitar o filho, e depois, com isto tudo, não pode voltar. Tinha alguns trocos que lhe permitiram sobreviver por uns dias, esteve num hostel outros quantos, mas mandaram-no embora e ficou à sua sorte. “Tenho cá família, mas não querem saber de mim. E com os restaurantes fechados, onde vou arranjar emprego?”, desabafa.

A pergunta fica sem resposta, até porque nos chamam para prosseguirmos viagem. Urge partir para o Rossio, para não deixarmos as outras pessoas sem comida. Antes, só uma paragem estratégica junto de uma cama. Bruno abre a porta e deixa lá a refeição.

No Rossio, estacionamos quase na curva de acesso às Portas de Santo Antão. A massa de gente que nos espera, qualquer coisa próxima da centena, corre atrás da carrinha até que ela trave. Mas a confusão é muita. José manda-os formar uma fila ordeira e esperar pela sua vez. Aqui não sairão bifinhos de frango, só tortilha e sandes. Ainda assim, a maioria agradece e deseja boa noite, Só de vez em quando se ouvem comentários laterais, do tipo “é só isto?”. Note-se que param no Rossio mais veículos de outras associações, como a Vida e Paz ou a Mão de Fátima, e há que dosear para chegar para todos.

No Rossio, a massa de gente que nos espera, qualquer coisa próxima da centena, corre atrás da carrinha até que ela trave. Mas a confusão é muita. José manda-os formar uma fila ordeira e esperar pela sua vez.

Cláudia Teixeira, 21 anos, vem abrigada atrás de uma máscara fashion. É de pano, às bolinhas prateadas, e a do namorado de um tecido preto acetinado. Começou a fazê-las com a mãe, que se desloca de muletas, e agora vende-as a €2,5 cada (928136216). Desde que o Estado de Emergência atirou o pai, mecânico e única fonte de rendimento da família, para o layoff, que se viram obrigados a ir buscar comida a Santa Apolónia. Hoje, atrasaram-se e então vieram ao Rossio para ainda apanhar qualquer coisinha para os quatro. Qualquer pessoa pode recorrer a esta ajuda, sem ser preciso estar referenciado.

Junto à igreja de Arroios parece que não se passa nada. Mas basta a carrinha da Crescer abrandar em cima de uma passadeira para aparecerem dezenas de pessoas a apanhar a comida. Estavam sentadas na escadaria do edifício moderno que serve de casa do Senhor e é para lá que voltam quando já têm o que comer. Cinco minutos depois, já estamos de novo a andar. Mas há que parar uns metros à frente porque uma senhora e um senhor atrasaram-se e também têm direito à vida.

Um Ferrari, um casal de manta e uma caixa onde vive alguém

Mais à frente, ao lado de um stand de automóveis que mostra um potente Ferrari na montra, um casal senta-se num banco à entrada do supermercado, de manta nas pernas. É para lá que Bruno e José se dirigem, mas já não foi preciso servi-lo – acabaram de jantar há pouco. Mesmo ao lado, numa caixa de cartão escondem-se umas pessoas e essas aceitam a oferta.

Na Estefânia, é um toca-e-foge. Martinho estaciona junto a uma paragem de autocarro, por onde não parece passar ninguém, os funcionários do Isto é Um Restaurante fazem um sinal de chamamento e, num instante, forma-se uma fila sem grande interação, e são aviados uma dúzia de pessoas que estavam abrigadas no jardim Constantino. Logo de seguida, esse mesmo grupo de pessoas regressa ao seu ponto de partida, cada um com uma sandes e uma dose de bifinhos de frango na mão.

A última paragem é a mais emotiva, porque foi aqui que José Brás viveu até há pouco mais de dois anos. Estacionamos junto a uma garagem desativada no Regueirão dos Anjos, aonde o grafitti impera. Garantem-nos que estão aqui 10 pessoas, mas não os vemos a todos. Alguns estarão abrigados nos bunkers de guarda-sóis, mantas e cartão, outros andarão por aí a ver se arranjam uns trocos. É Nuno, 41 anos, que nos recebe, estacionado há quatro anos junto a uma placa que avisa da “entrada e saída permanente de automóveis”. Mas não há qualquer movimento a registar, a não ser a agitação da sua cadela, de dois anos – tornou-se a mascote da rua.

“Agora passam aqui quatro ou cinco carrinhas de comida. É demais, porque depois estragam-se as refeições”, lamenta. Os três voluntários, que acabam assim a distribuição, ouvem, atentos, mas nada podem fazer para que a coisa seja mais bem dividida por todos.

Agora passam aqui quatro ou cinco carrinhas de comida. É demais, porque depois estragam-se as refeições

Nuno, sem-abrigo a viver no regueirão dos anjos

Há tempos, numa das suas voltas à procura de sucata, Nuno encontrou um quadro com a pintura de um solar, daqueles que se vêem muito pelo norte e centro do País. Pendurou-o junto à sua tenda e todos os dias sonha com aquele desenho, esperando que um dia a realidade seja mais parecida com ele ou com qualquer coisa que se assemelhe a uma casa.

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