A Comenda é um local tão belo que chega a parecer irreal. Como se flutuasse nas margens de um outro mundo, onde o tempo desacelera e as perturbações da civilização vizinha não têm forma de entrar.
É num promontório sobre o rio Sado que se ergue um palácio com cinco pisos e 26 quartos, desenhado pelo arquitecto Raul Lino, em 1903, para servir de residência de veraneio ao Conde D’Armand, ministro de França.
Tem uma praia privada e das grandes janelas e varandas que rasgam a fachada avistam-se apenas as matizes de azul do estuário, do mar e do céu. Recortada contra o horizonte, como que à deriva, a ilha de Tróia. Nas traseiras da Comenda, e em toda a envolvente, estende-se “outro mar”, em tons de verde: 600 hectares de floresta, em zona de reserva integral do Parque Natural da Serra da Arrábida.
Foi ali que Jacqueline Kennedy se refugiou, logo após o assassínio do presidente JFK, em 1963. A princesa Lee Radziwill, irmã mais nova de Jackie, era amiga da família D’Armand, e já tinha passado alguns dias inesquecíveis de verão no palácio português – numa das ocasiões levando consigo o escritor Truman Capote, um dos seus confidentes mais próximos.
Alguns anos antes da tragédia, as duas irmãs viajaram juntas pela Europa e voltavam frequentemente às águas quentes do Mediterrâneo, mergulhando nas ilhas gregas ou na francesa Cote D’Azur. Mas era ali, na Arrábida, que estava o que Jackie Kennedy precisava naquele momento de luto: o mar, sempre o mar, mas também paz e silêncio, longe dos holofotes do mundo.
Jackie e Lee, bem como outras figuras da alta sociedade e realeza europeia, foram as últimas personalidades a frequentar a casa de veraneio dos nobres franceses, que a venderiam poucos anos depois.
O construtor português António Xavier de Lima tornou-se proprietário da Casa da Comenda a partir dos anos 1980 e com a sua morte, em 2009, os herdeiros colocaram-na à venda. Foram precisos 11 anos para aparecer o dono certo para o palácio: alguém que, além de pagar 50 milhões de euros, aceitasse preservar as características do edifício histórico e manter intocados os 600 hectares de terreno em volta.
À partida é um local que parece perfeito para um hotel de charme, mas sem autorizações para construir naqueles terrenos de reserva integral tornar-se-ia difícil obter retorno num investimento tão avultado. Surgiram vários interessados ao longo dos anos e, em três ocasiões, ofereceram até “valores superiores ao solicitado”, revela Filipe Lourenço, CEO da Private Luxury Real Estate, que realizou a venda deste palácio.
O palácio da Comenda precisa de obras profundas, no valor de vários milhões de euros, depois de anos de abandono. As estruturas principais estarão preservadas, mas o telhado desabou parcialmente, há zonas do chão dos pisos superiores que cederam, todas as portas e janelas estão partidas, as paredes foram grafitadas e os painéis de azulejos roubados.
Como foi possível deixar ao abandono um edifício como este, ninguém sabe. Certo é que se arrasta desde 2004 um processo de classificação do imóvel, primeiro no IPPAR, depois na Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), estando neste momento “em vias de classificação”.
Esse estatuto, obtido em 2017, já lhe confere alguma proteção, no que a intervenções arquitectónicas futuras diga respeito. Mas o Estado não podia intervir numa propriedade particular, pelo que a Comenda teve de ficar à espera que um “príncipe” a resgatasse da morte certa a que parecia condenada.
O casamento foi oficializado em dezembro de 2019, como confirma Filipe Lourenço à VISÃO, depois de três anos e meio de namoro. Mas a Private Luxury Real Estate mais não diz sobre os compradores, nem sobre os planos destes para a Comenda.
Ao que a VISÃO conseguiu apurar, e pelo que foi comunicado à Câmara de Setúbal, virá a ser a residência privada de um casal de milionários, que prefere manter o anonimato.
Segundo o jornal Diário da Região Setubalense, na última reunião pública camarária foi comunicado que o Parque da Comenda e o estacionamento e acesso à praia de Albarquel, que fazem parte da propriedade privada, poderão vir a manter a utilidade pública, mas as negociações com os novos proprietários não se avizinham fáceis.
O parque de estacionamento já está inacessível (o jornal Setúbal Mais noticiou que foi “destruído”) e o Parque da Comenda, que foi alvo de profundas obras de melhoramento realizadas pela Câmara de Setúbal, poderá ter de encerrar ao público até final deste ano. A autarquia estará ainda a tentar negociar ainda a livre passagem nos trilhos para caminhadas, nomeadamente naquele que integra a rota do Caminho de Santiago.
À VISÃO, fonte do gabinete da presidência do município disse apenas que “a situação está a ser acompanhada de perto”.
De torre medieval a “prémio” para Vasco da Gama
Este local encerra uma história que começou, pelo menos, nos tempos do império romano. Como explica Isabel Sousa de Macedo, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, no trabalho A Casa da Comenda de Raul Lino: de torre medieval a residência de veraneio, “se, no dealbar do século XX era o lugar de implantação de uma estância de veraneio aristocrática, quinze séculos antes, em pleno domínio romano, servia de cenário a um complexo industrial” e, “pelo meio, foi palco de importantes episódios na história da nação”.
Ali se fixou a Comenda de Mouguelas, pertencente à Ordem de Santiago, que construiu a “torre” ou “fortaleza” de Mouguelas, conjunto edificado que, mais tarde, no âmbito das obras de reforço defensivo da Restauração, foi transformado na plataforma de S. João da Ajuda.
O mestre da Ordem de Santiago doou mais tarde a Comenda a Pedro Salgado, tesoureiro-mor de D. Dinis, que, durante mais de 20 anos recebeu os rendimentos da propriedade que, nesse início do século XIV, incluíam “uma torre-fortaleza, casas, vinhas, gado, entre outros bens de natureza agrícola”.
Em 1495, o notável cavaleiro da Ordem de Santiago, Vasco da Gama, é agraciado com a Comenda de Mouguelas por D. Jorge de Lencastre, filho ilegítimo de D. João II, duque de Coimbra e governador da Ordem de Santiago. A propriedade ficará na sua posse até 1507.
Segundo documentação encontrada por Isabel de Sousa Macedo, em 1506, enquanto a Comenda se encontrava ainda sob a posse de Vasco da Gama (agora já feito almirante após uma bem sucedida segunda viagem à Índia (1502/1503), D. Manuel I convocou vários elementos das autoridades municipais de Lisboa, para uma “reunião secreta”, no dia 4 de maio, em Mouguelas.
Uma epidemia de peste assolava Lisboa, determinando a mudança da corte para locais não contagiados. A rainha, Maria de Aragão e Castela, encontrava-se recolhida em Abrantes, enquanto o rei se encontrava em Setúbal. “Daí que fosse natural que, necessitando o rei de se reunir para tratar de algum assunto, convocasse os intervenientes para junto de si, evitando deslocações maiores do monarca”, diz a investigadora. Em Mouguelas “existia acomodação na torre de vigia e demais dependências que aí se localizavam, e seriam dignas para a “aposentadoria” dos visados.
Transformada em fortaleza de São João da Ajuda depois de 1640, a Comenda de Mouguelas permaneceria propriedade da nobreza portuguesa até 1848, quando foi vendida pela Rainha Dona Maria II ao rico comerciante Agostinho Rodrigues Albino, que detinha o monopólio do tabaco.
A propriedade viria a ser comprada pelo conde D’Armand em 1872, por cinco contos de réis. Ernest Armand tinha sido chefe de Gabinete do Ministro dos Negócios Estrangeiros de França e assumido vários postos diplomáticos na Europa. Foi após a sua “valorosa prestação” em Roma, junto à Santa Sé, que o Papa Pio IX lhe conferiu o título de conde, em 1867.
Em 1870 foi colocado em Lisboa, arrendando um palácio em Santos, usando depois a Comenda como retiro de fim de semana. Em 1898 a casa foi herdada pelo filho varão do conde, Abel Henri Georges Armand, militar de carreira, que ali decidiu realizar obras profundas, para criar uma residência de verão onde pudesse passar férias com os seus cinco filhos e convidar membros das famílias reais europeias com quem privava.
Em 1903, o n.º 104 da revista de arquitetura A Construção Moderna apresentava a futura “Casa do Ex.mo Sr. Conde de Armand”, desenhada pelo jovem arquitecto Raul Lino:
A construcção é feita num pequeno promontório, de luxuriante vegetação, sobranceiro ao rio Sado, em Setúbal, posição extremamente pictoresca, como podem attestá-lo aquelles que tem visto as ridentes margens do bello rio, junto à linda cidade de Bocage.
No citado promontório existe actualmente uma velha casa, cujas paredes, em parte, se aproveitam pois foram levantadas sobre as muralhas de um antigo forte. As grandes varandas da nova construcção deitam para sobre o rio.
O sr. Conde d’Armand entendeu, e muito bem que, no meio de uma paisagem caracteristicamente clássica, em qua abundam as oliveiras, os pinheiros, as agaves, figueiras da Índia e palmeiras, cyprestes, etc., não se deveria collocar um edifício que não fosse de uma grande simplicidade, com grandes superfícies lisas, não regulares e com uma silhueta serena, que esteja em harmonia com aquelas amenas paisagens.
Raul Lino dizia, a propósito do projecto:
[...] |As obras de arquitectura são o produto de um consórcio entre o arquitecto e a entidade que as encomenda. Se se entendem bem, a criação sai escorreita; quando não há entendimento, o resultado é defeituoso se não mesmo aleijado.
[…] o que me surpreendeu foi o Conde Armand dizer-me que não desejava que eu fizesse um só traço do projecto sem ter primeiro gozado uma noite de luar no sítio onde tencionava fazer a sua casa.
[…] o resultado lá está; e percebe-se no todo o gosto académico e meridional que agradava àquele francês civilizado.
No final da obra, em 1908, Raul Lino escreveu ao conde, agradecendo a confiança:
“Foi uma homenagem que prestou à classe dos architectos portugueses, confiando a um d’elles a dispendiosa edificação da sua nova casa da Commenda. Suspeito que não terá de arrepender-se. [Mas] algum portuguez talvez haja, que, no seu caso, tivesse mandado vir […] architecto francez.“